Mandioca, macaxeira, aipim

Raiz nativa do Brasil, de alto valor nutricional e presente no território de todos os biomas. A valorização da mandioca, alimento constante na mesa dos brasileiros, é um caminho para uma alimentação mais saudável de verdade. 

A diversidade das cozinhas e tradições da cultura alimentar brasileira é enorme, assim como a extensão territorial do país. Mesmo assim, há alimentos e técnicas de preparo que com pequenas variações estão presentes na mesa de brasileiros, de norte a sul do país. Nenhum deles supera a mandioca e a variedade de receitas – de pratos a sobremesas, passando por bebidas – feitas a partir do beneficiamento da raiz e do uso de seus derivados nas culinárias do Brasil. 

A raiz é nativa da região amazônica do Brasil. Ao longo de milhares de anos se espalhou por todo território do país e diversas novas espécies e variedades surgiram a partir da interação com povos indígenas e populações de agricultores imigrantes de outros lugares do mundo. A mandioca marca presença como alimento cultural, e cultivo tradicional, em todo país. 

“Meu avô espanhol se fixou com a família no interior de São José do Rio Preto [em SP], logo resolveram plantar para o sustento e lá tinham animais, plantavam café, arroz, frutas e mandioca. A mandioca estava presente na mesa em pratos, tanto quanto em receitas de doces e salgados e, ainda, era importantíssima para a alimentação dos animais. Assim, ela inspira boas lembranças, sabor e a memória da infância.” O relato é de Ana Tomazoni, professora universitária, cozinheira, pesquisadora e educadora alimentar. Ana, que é membro da Comunidade Slow Food Mandiocas do Brasil, mantém há quarenta anos uma escola de gastronomia na Grande São Paulo, em São Bernardo do Campo, onde ensina a comida de raiz brasileira. Práticas educativas a partir do alimento, baseadas nos usos tradicionais e na culinária típica, são o princípio para ensinar desde profissionais da cozinha até estudantes e aposentados. Desde 2010, realiza ações formativas em diversos lugares do Brasil sempre em celebração ao dia 22 de abril, dia nacional da mandioca. 

Ana Tomazoni comemora o Dia Nacional da Mandioca desde 2010. foto: acervo pessoal

“No Brasil, a mandioca é uma marca fundamental (e nativa!) da organização de vários sistemas alimentares. A raiz da mandioca é utilizada para elaborar uma série de produtos amiláceos, farinhas e amidos naturais ou modificados. A fração amilácea extraída proporciona a fécula, de consumo direto em alimentos (biscoitos, bolos, pudins, molhos) ou industrial (amidos, têxteis, papel, tintas, medicamentos).” Explica Ana Tomazoni. 

É inegável que a mandioca é um dos alimentos mais populares do Brasil, presente como acompanhamento do prato do almoço, nas versões frita e cozida ou, ainda, como farinha! Nas porções em bares de norte a sul: frita, com manteiga de garrafa, acompanhando carnes ou ainda como caldo em festividades. Além disso, está na base da maior parte das preparações e comidas típicas e tradicionais de várias cozinhas nacionais. Por meio de produtos derivados como de bebidas a farináceos: tucupi, pajuaru, cauim, polvilho azedo, polvilho doce, amido, puba e as farinhas de mandioca. Entre as receitas mais típicas de diferentes regiões do Brasil, a mandioca está na origem como ingrediente. Tapioca, pão de queijo, biscoitos e quitandas à base de polvilho e fécula de mandioca, bolo de puba, bolo de macaxeira, pudim de tapioca, sagu, bobó de camarão, tacacá, pirão, farofas, feijão tropeiro, bolinhos fritos, sonso, açaí com farinha de mandioca, taiada, pé-de-moleque de mandioca e beijus, para citar alguns exemplos. Dentre todos os derivados, a farinha tem destaque porque existe em todo o território, com características regionais próprias, e diariamente acompanha a mesa de milhões de brasileiros, em especial no norte e nordeste do país. 

Clássica mandioca frita. foto: Alexandra Duarte

Em 2020, durante o evento on-line, Terra Madre Brasil, o Slow Food criou a exposição virtual Casa de Farinhas. A exposição, ainda disponível online, é uma forma imersiva de viajar pelo universo multicultural da mandioca e conhecer as variedades de farinhas, já catalogadas, e seu modo de preparo. Outra maneira de conhecer mais da potência desse alimento é percorrer as publicações do projeto Arca do Gosto.

Em 2023, o país ainda atravessa séria crise alimentar alavancada pela pandemia da Covid-19, refletida no número de brasileiros em situação de fome e na políticas agrárias e agrícolas que, ainda, privilegiam grandes extensões de terras de monocultivo de commodities e intensivo uso de agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas. No final de março de 2023, organizações da sociedade civil lideradas pela Articulação Nacional da Agroecologia (ANA) entregaram ao governo federal um ofício de mais de 100 páginas apontando os perigos da liberação do cultivo e importação do trigo transgênico HB4, repudiando a então decisão da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). O trigo presente na nossa alimentação diária, em pães, bolos e biscoitos já é em grande parte consumido em produtos industrializados. Sendo assim, a introdução da variedade transgênica (HB4) produzirá uma cascata de graves consequências ao meio-ambiente e à saúde, aumentando a crise atual. O trigo transgênico também é assunto de uma das moções políticas apresentadas no último Congresso Slow Food.

O cultivo milenar da mandioca pode ser forte aliado na luta pela superação dos sistemas alimentares e agrícolas hegemônicos do Brasil, por serem verdadeiramente sustentáveis e produzirem derivados de usos semelhantes aos do trigo. Se o consumo de trigo fosse revisto, medidas como a liberação da semente transgênica seriam menos justificáveis. O convite dessa coluna mensal é, portanto, repensar a nossa relação enquanto consumidores. Da comida do dia-a-dia à gastronomia dos restaurantes precisamos valorizar práticas, técnicas e receitas tradicionais da cultura alimentar brasileira. 

É urgente redefinir o conceito de sustentabilidade como respeito à realidade biológica de cada ecossistema. A mandioca nativa do Brasil deve ser priorizada como cultivo nas políticas agrícolas. Na contramão, ocorre a liberação do trigo transgênico com a desculpa que é preciso suprir a necessidade de consumo de trigo. Por outro lado, do ponto de vista das políticas ambientais são criados selos e certificações que de tão frágeis coexistem com a liberação cada vez maior de agrotóxicos e de sementes transgênicas em nosso território. Criar soluções isoladas para um tema sistêmico como a crise climática que está diretamente relacionado à maneira como socialmente nos alimentamos e consumimos não vai adiantar. Esse sistema tem se provado cada vez mais falho pois ao isolar problemas ambientais do sistema de produção de alimentos vigente, só consegue criar pseudo soluções.

No 22 de abril de 2023, a saudação à mandioca parece mais importante do que nunca. O Slow Food Brasil possui um grupo de trabalho dedicado à mandioca que reúne cozinheiros, pesquisadores, agricultores e farinheiros de todo país. Pessoas que se dedicam à conservação de espécies, variedades e modos tradicionais de cultivo e também à difusão e valorização de receitas que são patrimônio imaterial e a expressão cultural mais forte de certas populações, como as farinhas de Bragança no Pará. Trabalhos como o da chef Ana Tomazoni que somam educação e cultura alimentar são fundamentais para que a mandioca tão brasileira retome seu lugar na mesa dos brasileiros em grandes centros urbanos. É claro que esse trabalho de conscientização leva tempo, por isso, insistir na celebração do tema mandioca durante, ao menos, todo mês de abril é tão fundamental.  

Para celebrar e saudar a mandioca e a cultura alimentar brasileira, a chef Ana Tomazoni criou uma receita especial para essa edição da coluna Nas voltas do Caracol com farinha de mandioca e um pescado local que pode ser substituído por aquele que seja de mais fácil acesso ou mesmo por algum vegetal ou outra carne. Afinal, saber cozinhar implica em saber se adaptar e improvisar! Além disso, deixamos abaixo um guia de textos já publicados a respeito da mandioca em nosso site. 

Aprofundando nossas raízes

No ceará, a história recente da popularização da tapioca e como essa mania se espalhou pelo Brasil.

Na Arca do Gosto, estão catalogadas as pesquisadas de sete alimentos tradicionais cujo principal ingrediente é a mandioca:

Hî-hî: bolinho à base de mandioca cuja técnica de preparo revela a importância da ancestralidade e sua curiosa história está relacionada à guerra do Paraguai.  

Farinha de Mandioca de Anastácio, também chamada farinha pulador, paraguainha, é típica dessa cidade localizada no Mato Grosso do Sul. 

Farinha de Mandioca de Bragança: método específico para o preparo da farinha de Bragança. Na cidade, existem mais de 50 tipos de mandioca (Manihot esculenta) utilizados pelos produtores rurais que recebem diferentes nomes como: aipim, jabuti, mirim, branco ouro, creme, areia, tomazia, gordura, branca, picui, entre outros.

Farinha de mandioca de Copioba: um tipo de farinha de mandioca artesanal caracterizada pela crocância e coloração amarelada, produzida tradicionalmente no Vale do Copioba, região do Recôncavo Baiano – Bahia.

Pé-de-moleque da Amazônia da região amazônica consiste em uma barra produzida a partir da massa da mandioca, e não do amendoim, como conhecido e produzido em outras regiões do Brasil. 

Farinha de mandioca de Furnas de Dionísio: farinha de mandioca desenvolvida unicamente pela comunidade quilombola Furnas do Dionísio, em Jaguari, região a 43 km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O grupo povoa a região desde o final do século XIX. 

Beiju sica: assim como demais receitas, a receita do beiju assado e crocante só é mantida em função de seu preparo ter relação direta com a produção tradicional de mandioca, realizada pelas populações caboclas e ribeirinhas na Amazônia. cultural com os povos da Amazônia, em especial das regiões do interior dos estados da Amazônia brasileira.

Bijajica: bolo cozido no vapor composto de massa de mandioca crua, amendoim e açúcar, aromatizado com erva doce, cravo e canela. De origem indígena, porém a receita atual é resultado da influência de famílias açorianas que migraram para o litoral do estado de Santa Catarina em meados do século XVIII.

Grude de Extremoz: alimento preparado com goma de mandioca e coco ralado, cozido sob tachos no fogo à lenha, usando formas de palha de coqueiro e folhas de banana. Faz parte da cultura e gastronomia de Extremoz, cidade localizada a 23 km de Natal, no Rio Grande do Norte.

Pajuaru: bebida alcoólica fermentada em um longo processamento (de pelo menos uma semana) de um tipo específico de mandioca brava manejada pelos índios Ticuna do alto Solimões (AM).

Tarubá: bebida leitosa preparada à base de mandioca, consiste em mais uma tradição dos povos indígenas da Amazônia. Possui aroma agradável e sabor levemente adocicado, e não tem relação com nenhum outro tipo de bebida conhecida.

Sequilho: biscoito doce feito com amido de mandioca ou de araruta, conhecido também como biscoito de goma, bolacha de goma ou de polvilho. É um alimento bastante difundido no Nordeste, nas regiões onde a mandioca é a base da cultura alimentar local, assim como em algumas localidades de Minas Gerais.

Arubé: concentrado de tucupi (sumo da mandioca) usado pelos indígenas para conservar as caças e que, com o passar dos anos, foi deixando de ser produzido e consumido na maioria das tribos. É conhecido, inclusive, também como mostarda indígena.

Livros e publicações para conhecer mais histórias sobre a mandioca: 

Farinha de Mandioca – os sabores brasileiros e as receitas da Bahia

Protocolo de Produção da Farinha e Derivados da Mandioca do Povo Kiriri de Banzaê

E-Book Memórias da Mandioca – produzido pelo Sustentarea, projeto de extensão da USP focado em alimentação saudável de verdade e acessível para todos.

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