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Da mandioca não se faz só farinha, se faz tapioca!

Este artigo, escrito em duas mãos, traz consigo uma abordagem saudosista de vínculo afetivo que mostra nosso pertencimento. As mãos que o construíram pertencem a uma nutricionista e a uma socióloga, ambas completamente interessadas em comida e cada uma a seu jeito faz e escreve além dos registros sensoriais, memórias, emoção e reflexão.

00_tapioca_caseira.jpgTapiocas gostosas, quentinhas, com café! Hummm! "É bom demais!" É assim que o cearense da capital ou do sertão expressa o seu gosto.

O que é tapioca, de onde vem, como é que faz e como se come? Essas são algumas perguntas que serão aqui respondidas em "fogo lento".

Ano de 2012, século XXI, em alguma rua de Fortaleza ouve-se o refrão: Alô dona de casa! Vai passando na sua rua a bicicleta da tapioca. Tapioca saborosa! Só trinta e cinco centavos por cada uma.

Esse é o refrão comercial que inicia por volta das 6h30min da manhã, horário do café da manhã, e retoma às 15 horas, horário da merenda em um bairro de classe média em Fortaleza.

Uma bicicleta, um homem, uma radiadora. Na frente um depósito com as deliciosas tapiocas e, atrás, uma garrafa de leite de coco para os que preferem a tapioca quente e molhada numa combinação entre produtos da praia e sertão.

A tapioca, antes feita pelas manhãs, nas cozinhas, está "ganhando o mundo".  Feita da goma, amido da mandioca, o trigo sertanejo, é opção que substitui o pão.

Nas memórias e histórias ouvidas e vividas, diz-se que avós do sertão pegavam a goma seca, despejavam numa vasilha, salpicavam pitadas de sal e, com um saber próprio, "molhavam a goma". As mãos habilidosas iam juntando água e amassando com as mãos, sentindo a maciez da goma que rangia nas mãos e, aguçando os sentidos, o tato, molhavam-na a vão, sentindo "o ponto", a umidade necessária para tornar a levá-la ao cozimento. Punham a caçarola no fogão, retiravam com a mão um punhado de goma molhada e colocavam no centro da frigideira de alumínio grosso, pra não queimar, e em movimentos circulares iam fazendo um caracol com os dedos tensos, até as beiras. Logo se sentia no ar o cheiro de goma torrada, era hora então de virar. Com habilidade, lançavam-na ao ar, de modo a virar de lado e ser apanhada com destreza, na frigideira.

Desse modo, continuava-se. Após assada, punha-se noutra vasilha ou prato e aí vinha a invenção; passava-se manteiga, que ia derretendo com o calor da tapioca e, fazendo-se pequenos "canudos" enroladinhos, acomodavam-se as tapiocas lado a lado. Servida quente ou fria, com café preto, café de leite, leite quente, cortada com os dentes ou com as mãos.

As iguarias que antes eram feitas nas cozinhas de casa tornam-se "meio de vida", provocando os cearenses para que, de retorno da praia, seja do leste ou do oeste, façam uma paradinha para experimentar as delícias, grossas ou finas, redondinhas, com coco e sem coco, seca ou molhada, vão sendo inovadas. Refinando-se com recheios de carne de sol, queijo, ovos e mudando das de sal para as de doces. Em analogia, é a panqueca cearense e/ou a pizza do nordestino.

Os tipos são redonda alta de goma grossa, mais carroçada, dobrada tipo beiju e a enrolada fininha, esta à moda de minha avó Clara. Acompanhando a evolução da tapioca, também tem o tipo hóstia: finíssima e molhada, servida nas comunhões.

Montanari (2008) diz que tradição é a inovação que deu certo. Assim, a tapioca tornou-se meio de vida para mulheres e homens que, em barracas perfiladas de um lado e outro da antiga rodovia BR que dava acesso a Messejana, ganhou um lugar próprio, organizado por associativismo. Hoje, além da gente do lugar, experimentam a iguaria, inovada com recheios, comensais regulares e turistas que visitam a terra de Iracema.

O oficio é feminino dentro de casa, mas às vezes o negócio recebe o nome do homem, mesmo quando há a figura feminina por trás.

Compilando os versos de Dalinha Catunda, de Ipueiras, no Ceará, pode-se ver a herança da terra.

É uma herança indígena,
Derivada da mandioca.
Guloseima que os índios,
Comiam em suas ocas.
E o nordestino adotou,
Por certo ele aprovou,
Em sua mesa a tapioca.
*
Quem jamais provou,
Precisa experimentar,
A tapioca de goma
Feita no meu Ceará.
Presença confirmada
Em todas as camadas,
Das terras de Alencar.
*
Há quem use na tapioca,
Novos ingredientes.
Recheada e colorida,
Com sabores diferentes.
Mas eu amo a tradicional,
Feita em minha terra natal,
Com sabor da minha gente.
*
Feita com a goma molhada.
E temperada apenas com sal.
Depois de úmida e peneirada
Dá-se continuidade ao ritual.
Com a frigideira bem quente
Destas que tem antiaderente
Conclui-se a receita afinal.
*
Frigideira estando no ponto,
Preste bastante atenção:
Coloque no fundo dela
Uma pequena porção
Da goma bem espalhada,
Que em seguida será virada
E está pronta a produção.
*
Mas tem só uma coisinha:
Eu não cheguei a explicar.
É que a boa tapioqueira
Sempre vira a tapioca no ar.
Se você não tem boa mão,
Nem quer sujar seu chão,
Invente seu jeito de virar.
*
Com um café quentinho
Eu comia em meu sertão,
Tapioca com muita nata,
Como manda a tradição.
E para ser muito sincera,
Tendo manteiga da terra,
Eu até dispensava o pão.
*
A tapioca é uma iguaria
Da culinária Nordestina.
Mas hoje já se espalhou,
Pois também é peregrina.
E percorre nos alforjes
Do nordestino que foge,
Buscado uma melhor sina.

 Depois desta amigável descrição das tapiocas, na atualidade ela vem com novos significados que escondem, no cotidiano de seu consumo no Ceará, uma história essencialmente feminina de luta pela sobrevivência. As precárias condições de vida de muitas famílias que residiam na região da Paupina, bairro de Messejana, motivaram a transformação de um prato diário e frugal em mercadoria geradora de renda. Nos meados do século XX, filhas, mães e avós madrugavam na quentura dos fornos a lenha, nas cozinhas de suas próprias casas, assando grossas e compridas tapiocas que eram depois banhadas em leite de coco e enroladas na palha de bananeira, para só então, no lombo de jumentos, organizadas em caixotes de madeira, seguirem em direção aos maiores mercados de Fortaleza da época – o Mercado São Sebastião, o dos Pinhões e o de Messejana. Tal distribuição era feita, na maioria das vezes, pelos homens da casa que estavam sem trabalho. Com o dia ainda clareando, aproveitava-se para oferecer o produto também nas casas de família que estavam no caminho, entoando na passagem um "Olha a tapioca!" que ainda hoje se escuta com certa frequência nas ruas da capital – muito embora a bicicleta seja, atualmente, o meio de transporte mais comum para esse tipo de venda ambulante.

01-_tapioqueira_da_tia_nelma_na_av._baro_de_aquiraz_na_paupina.jpgOs frutos dessa lida familiar diária foram, aos poucos, materializando-se (na conquista ou na reforma de moradias próprias, por exemplo) e beneficiando também vizinhos e amigos. Na medida em que crescia a demanda, outras famílias da região entravam no mesmo ramo, inspiradas na experiência exitosa dos vizinhos, que aos poucos iam deixando de fornecer tapiocas para revenda nos mercados e fixavam suas vendas em pontos improvisados na varanda de suas casas, chamados genericamente de fornos. Quando os anos 1980 chegaram, juntamente com o desenvolvimento acentuado da prática turística litorânea no estado, aquele conjunto de fornos às margens da Av. Barão de Aquiraz (que dava acesso às praias do litoral leste) era já conhecido, nacionalmente, como o Ponto das tapiocas do Ceará. Na década de 1990, somavam quase 20 pequenos comércios ao longo dessa avenida. Dada a marcante presença feminina nestes estabelecimentos, os pontos passaram a ser chamados de tapioqueiras, assim como o ofício dessas mulheres. Dar uma "paradinha" ali, no começo da manhã ou no fim da tarde, na ida ou na volta das praias, virou costume.

02-_tapiocas_assando_no_forno__lenha_em_um_dos_pontos_de_venda_da_av._baro_de_aquiraz_na_paupina.jpgO novo formato comercial (fixo) e a crescente procura pela tapioca como opção de merenda – termo utilizado, frequentemente, em equivalência ao café da manhã ou lanche -, inspiraram a invenção de novos formatos e a inserção de outros sabores. A fim de promover certa padronização ao produto, de modo muito engenhoso, as latas de goiabada transformaram-se em fôrmas pela simples retirada da tampa e do fundo. Depois de décadas servindo apenas essa tapioca redonda feita com goma, sal e coco, uma pequena inovação trouxe diversidade ao "cardápio" das tapioqueiras: uma fatia de queijo coalho foi inserida entre duas porções de goma na hora de assar. A freguesia – que, nesta época, era constituída, essencialmente, de trabalhadores do entorno e moradores da periferia da cidade que participavam de piqueniques – aprovou de imediato a mistura. Para acompanhar a nova tapioca, no entanto, o velho cafezinho ("pegando fogo") era ainda a única (mas nem por isso pouco valorizada) opção.

A relativa prosperidade dos pequenos pontos de venda de tapioca foi, todavia, severamente interrompida. No ano de 1998, o volume de carros (e de clientes em potencial) que passava todos os dias pela antiga Av. Barão de Aquiraz foi quase integralmente transferido para a recém duplicada Av. Washington Soares, que se tornou a principal via de acesso às praias do litoral leste do Ceará. As vendas no fim de semana caíram, segundo as próprias tapioqueiras, de 1000 unidades para 50. Tempos difíceis se estabeleceram. Nesta época, a boa rentabilidade dos pequenos negócios havia levado muitos maridos e filhos das tapioqueiras a deixarem seus empregos. Assim, famílias inteiras foram surpreendidas e prejudicadas com o deslocamento do fluxo de carros para a nova avenida.

Um movimento, junto ao poder público, em prol de uma "revitalização" do Ponto das tapiocas foi iniciado pelas próprias tapioqueiras. A reivindicação, que levantava como argumento a tradicionalidade da produção de tapioca por aquelas profissionais, foi bem recebida, até mesmo porque tal ideia parecia se ajustar às estratégias de desenvolvimento que norteavam a política estadual de então, cujo foco era a promoção do Turismo. Contudo, a proposta lançada pelo Governo do Estado previa a construção de um novo espaço de trabalho para aquelas mulheres na Av. Washington Soares, visando a inseri-las como atrativo na Rota Turística do Sol Nascente.

A ideia de mudança gerou grande resistência, inclusive porque muitas eram as condições para que a transferência se realizasse. O Shopping das Tapiocas, como foi inicialmente (e significativamente) chamado, exigiria das tapioqueiras uma nova postura profissional: por lá trabalhariam juntas, em associação, e produziriam sob o rigor dos padrões sanitários exigidos em lei. Para tanto, uma maratona de cursos foi oferecida pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o SEBRAE, incluindo formações nas áreas de gastronomia, segurança alimentar, técnicas administrativas, atendimento e cuidados pessoais. Dos velhos pontos da Paupina, elas só poderiam levar a habilidade que tinham adquirido no trato da goma e o discurso em torno da tradicionalidade do ofício de tapioqueira. Tudo mais deveria ser comprado para enquadrar-se aos padrões citados: dos talheres à geladeira. Embora a então formada Associação das Tapioqueiras de Messejana (ATP) viabilizasse empréstimos coletivos a juros mais baixos, a perspectiva de tamanho endividamento assustou muita gente. E havia, ainda, outro desafio que provocou grande estranhamento e desconfiança: para o cardápio, a sugestão do SEBRAE incluía a fabricação das chamadas tapiocas fino-recheadas. As antigas tapiocas fininhas e enroladas como charutos, sem coco, que aquelas mulheres viam suas mães e avós prepararem em frigideiras apenas para consumo familiar receberiam, agora, recheios sofisticados e diversos, salgados e doces, como morango com chocolate, banana e canela, camarão ao catupiry, carne de sol com queijo coalho, calabresa e mussarela, etc.

03-_shopping_das_tapiocas.jpgMas tapioca com jeito de pizza, de sanduíche, parecia uma extravagância desnecessária e comercialmente improdutiva, especialmente aos olhos dos mais velhos, que acreditavam que os recheios encareceriam e "descaracterizariam" seu produto, anteriormente conhecido por seu preço popular e simplicidade. Contudo, quando o novo prédio foi entregue, somente dois anos após a formação da ATP, o público que passou a frequentar o então Centro das Tapioqueiras de Messejana (CETARME) já não era o mesmo, e a tapioca fino-recheada foi um sucesso arrebatador. Ali, as classes médias da cidade passaram a se identificar mais diretamente com a tapioca enquanto um produto que ultrapassava valores meramente comerciais. Apesar das muitas mudanças sofridas, aquelas mulheres eram apresentadas em campanhas publicitárias, patrocinadas pelo governo do estado, como portadoras de uma tradição antiga, de um saber-fazer que remetia a possíveis origens indígenas e, portanto, expressava raízes históricas de uma suposta "cearensidade". Em meio a esse intenso processo de resignificação, a tapioca grossa e redonda que era vendida na av. Barão de Aquiraz passou, então, a ser chamada de tradicional, uma forma de evidenciar seu status de primeira, original. Permaneceu no cardápio do CETARME, mas por lá teve de ganhar coberturas diversas (requeijão, doce de leite, etc.) para conseguir concorrer, minimamente, com a fino-recheada. 

05-_beiju.jpgSurpreendentemente (isto é, apenas em parte), aquilo que foi inicialmente planejado para atingir, de modo especial, turistas de outros estados e países, acabou conquistando o gosto do consumidor local, que hoje é quem assegura o rendimento anual do Shopping das Tapiocas do Ceará. Nas mãos habilidosas das tapioqueiras e sob as orientações civilizadoras do Estado, para utilizar o mesmo termo empregado por Elias (1999), a tapioca ganhou ares de iguaria fina; transformou-se em tradição sofisticada, "de raiz", que gera orgulho e identificação para cearenses de todas as classes. Em 2005, um importante jornal local afirmava que "de merenda de pobre, a popularíssima tapioca vem ganhando status, nos últimos anos, em Fortaleza". Quer nas padarias ou nos restaurantes caros da cidade, nas pequenas lanchonetes ou nos carrinhos de merenda, facilmente ela é encontrada no Ceará, banhada na simplicidade do leite de coco ou recheada de "tradição", de "identidade", de "distinção". Para acompanhar, o velho cafezinho, que ainda reina majestoso na preferência local, mas também os sucos naturais e os refrigerantes passam a compor opções desejadas, bem como a cajuína ou suco de milho, para os apetites mais apegados a um regionalismo alimentar. E há, ainda, a possibilidade de mordiscar pedacinhos de rapadura junto à maciez granulada da tapioca de coco, numa experiência agridoce ao mesmo tempo nostálgica e exótica.

No CETARME, assim como nos quatro cantos do Ceará, a criatividade (e a necessidade) renova a tradição tapioqueira, conquistando as novas gerações e atraindo os paladares mais curiosos e mais exigentes pelo mundo inteiro. Muitos cafés, no Ceará, são agora também (ou simplesmente) Tapiocarias, tamanha a força comercial desse produto. Nesse ínterim, a tapioca vai sendo projetada como símbolo cultural, saciando fomes diversas. Num plano simbólico, ela apaga as diferenças, inventa verossimilhanças, reúne e opõe… Assim, como dissemos anteriormente, a tapioca ganhou o mundo no gosto de quem a provou, mas a técnica e a habilidade do tipo básico continua a ser feita com gosto pelas avós. Sente o cheiro, cheiro que se confunde com o amor entre avós e netos comedores de tapioca. Grande diferença em comer uma tapioca de avó em relação àquelas modernizadas pelas imposições, padrões de segurança e atrativos turísticos.  Deixem a tradição a salvo! Afinal, temos que valorizar nosso patrimônio alimentar e culinário.


Referências

CATUNDA, Dalinha, Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Disponível em: <http://cantinhodadalinha.blogspot.com/>. Acesso: jun. 2011.

ELIAS, Nobert. O processo civilizador. v. 1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

LIMA, Maria de Fátima F. As tapioqueiras e a sua arte: mudanças e permanências no "shopping das tapiocas". Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007.

Montanari, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2008. 207 p.


06-_tapioca.jpg* Maria Lucia Barreto Sá ([email protected]) é nutricionista professora do curso de nutrição da UECE, mestre em educação e doutora em saúde pública, colaboradora do Projeto Comida Ceará.

* Maria de Fátima Farias de Lima ([email protected]) é socióloga, mestre em sociologia, pesquisadora do Memorial da Cultura Cearense (Centro Cultural Dragão do Mar) e do Projeto Comida Ceará.

Ambas tem interesse nos saberes e práticas alimentares das diversas regiões do Estado do Ceará.

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