Cultura alimentar indígena do sertão do Ceará é inventariada e registrada em publicações por meio do projeto Território e Cultura Alimentar no Ceará.
“Começou nas reuniões online do Slow Food, durante a pandemia. Nelas, a gente passou a ter esse olhar para desenvolver a guarda da nossa cultura alimentar, desses alimentos que estão desaparecendo da nossa mesa.” Eleniza Tabajara do povo Tabajara do Sertão do Inhamuns, Quiterianópolis, moradora da Aldeia Fidélis e articuladora local no projeto Território e Cultura Alimentar no Ceará relembra como ele começou. Além do povo Tabajara do Sertão dos Inhamuns e Tremenbé da Barra do Mundaú, ambas do Ceará, uma equipe diversa de parceiros institucionais de várias regiões do Brasil participou do projeto.[1]
Desde os anos 1980, o povo Tabajara tem se organizado na luta pelo resgate de seu território e para serem reconhecidos como indígenas. Mesmo com ameaças constantes, mantiveram-se agricultores. São guardiões e defensores de sementes nativas e conhecimentos ancestrais ligados à agrobiodiversidade, o que garante a subsistência e soberania alimentar dos povos, mesmo nas condições adversas do semiárido.
“Como estamos no sertão todo nosso povo vive da agricultura, dos quintais produtivos e criando animais de pequeno porte, ovelha, galinha e porco. E a gente valoriza muito a terra e o que ela nos dá.” conta Eleniza sobre o modo de vida dos Tabajara. A fala dela vai de encontro com que foi observado por Gabriella Pieroni, especialista em patrimônio imaterial (ou alimentar) e articuladora do projeto, em seu texto introdutório à publicação do Inventário Participativo da Cultura Alimentar: “A ligação afetiva dos Tabajara do Sertão dos Inhamuns com a terra, ciclos agrícolas e cultivares, além da criação de animais, caça e pesca, os constitui e é o principal aspecto reivindicador de sua identidade indigena.” [2]
O chouriço doce
Essa definição dita por Eleniza, surgiu durante o processo do inventário e coloca a cozinha como elemento central da cultura Tabajara. A essência dessa definição é ilustrada no ritual que envolve uma receita: o choriço doce.
Os Tabajara têm profundo respeito e admiração pelos idosos a quem chamam de “troncos velhos”, afinal são eles os guardiões dos saberes, entre os quais estão as receitas culinárias que por meio de narrativas orais vêm sendo transmitidas às gerações mais novas. Uma receita transmitida oralmente é, antes de tudo, uma história que avança no tempo.
O chouriço doce é uma dessas receitas que reúne os troncos velhos e a juventude Tabajara em um momento de aprendizado, recompensa e prazer. Matar o porco é um ritual duro mas necessário à sobrevivência. Depois da morte do animal, o sangue é escorrido e batido para não coalhar. Em seguida deve ser usado: “É um aproveitamento que fazemos do sangue do porco. A gente cozinha o sangue e vai junto a rapadura preta, castanha de caju assada e pisada (moída, mas aqui a gente pisa), leva a pimenta do reino, tem gente que gosta bem apimentada, mas a pimenta é para temperar. E vai também farinha de mandioca e um pouco da banha do porco.” Narra Eleniza que também confirma que o sabor e textura lembram um brigadeiro, porém é um alimento nutricionalmente mais rico, ancestral, com imenso valor cultural e que, ainda, resguarda a soberania alimentar de seu povo. Mesmo assim, ela conta que é consumido em pequenas quantidades e só é feito quando se matam porcos, o que é muito comum como ritual de fim de ano, ou durante celebrações quando os familiares vindos de outras aldeias se reúnem.
Eleniza aprendeu a receita com uma tia avó: “quando a gente vai fazer os mais jovens tão sempre lá, os que gostam de cozinhar já vão aprendendo, os outros ficam para rapar a panela.” O doce cozinha lentamente e o ponto é quando a mistura encorpa e começa a desgrudar da panela. É muito apreciado como sobremesa ou como aperitivo quando chega uma visita. O chouriço doce é feito coletivamente e é uma das várias receitas e preparações que foram registradas no Inventário Participativo da Cultura Alimentar Tabajara do Sertão do Inhamuns que está disponível para download no site do Slow Food Brasil.
Projeto Território e Cultura Alimentar no Ceará no Terra Madre 2022
“Nós moramos a 560 km da capital (Fortaleza). Bem no interior e sertão, aqui é seco mesmo. Então, você imagina… Uma Tabajara, mulher ainda por cima, ir para fora do país representar o nosso povo é muito importante para nós.” Foi assim numa conversa em ritmo de expectativa quando se preparava para representar o Brasil na 14ª Edição do Terra Madre Salone del Gusto, que Eleniza contou sobre a experiência do projeto Território e Cultura Alimentar no Ceará para os Tabajara do Sertão de Inhamuns.
Para o evento na Itália, esse país distante, Eleniza junto à comunidade elegeu uma variedade de grãos nativos de feijões, favas e milhos, como o milho massa que faz parte da Arca do Gosto do Brasil e é usado para o pão dos Tabajara, um cuscuz moldado e assado na palha. Além dos grãos, a farinha e a goma de mandioca da comunidade são bases da alimentação diária dos Tabajara. Os grãos e farinhas compõem a instalação da Trilha da Sociobiodiversidade ao lado de ingredientes de mais de 300 alimentos provinientes de 120 países.
[1] O projeto é realizado pela Associação Slow Food do Brasil (ASFB) e pelo Adaptando Conhecimento para a Agricultura Sustentável e o Acesso a Mercados (AKSAAM), por meio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola – FIDA em parceria com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e com apoio do Conselho Tabajara de Quiterianópolis – CITAQ, Conselho Tremembé da Barra do Mundaú – CITI, dos Projetos Paulo Freire (FIDA), São José (Banco Mundial), CETRA – Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador e à Trabalhadora, Cáritas de Crateús e Escola de Gastronomia Social do Ceará, um equipamento da Secretaria de Cultura do Ceará e do.
[2] Inventário Participativo da Cultura Alimentar, p.9. Disponível em https://slowfoodbrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/05/INVENTARIO_TABAJARA.pdf