Entre feiras e queijos: o protagonismo da agricultura familiar em Goiânia

“É dia de feira, quarta-feira, sexta-feira, não importa a feira; é dia de feira, quem quiser pode chegar”! Os versos da música “A feira”, interpretada e produzida por O Rappa, descrevem bem as feiras livres da cidade de Goiânia: não importa a “feira”, sempre haverá uma feira ocorrendo na capital, com pelo menos duas bancas ofertando produtos derivados de leite  que, provavelmente, são produzidos pela agricultura familiar goiana.

Em média, 17 feiras acontecem diariamente na cidade, distribuídas nos 628 bairros da capital, o que, considerando a estimativa da população goianiense em 2021, representa cerca de 7 feiras para cada cem mil habitantes. Nas feiras de Goiânia, das menores às maiores, é grande o fluxo de consumidores(as) que vão às compras de diversos produtos, desde verduras, frutas, legumes e grãos até itens como plantas, utensílios de cozinha e roupas. Nas visitas às feiras, é possível observar todos os tipos de consumidores(as), desde aqueles que vão especificamente às compras de alimentos até aqueles que vão à procura de lazer, passeio e para lanchar biscoitos, pasteis, caldos e a tradicional pamonha. A ida à feira representa, além da rotina, espaço propício para socializar com feirantes e amigos. Assim, é possível ver certa resistência para a perpetuação das feiras, a ressignificação das demandas e valores atribuídos aos produtos e às relações entre feirantes e consumidores(as), criando e fortalecendo um emaranhado social, econômico, cultural e afetivo entre as pessoas.

Caracterizadas como cadeias curtas e redes agroalimentares, as feiras possuem uma dinâmica de comercialização que evidencia níveis de proximidade entre produtores(as) e consumidores(as) que vão além de aspectos espaciais e que podem facilitar as relações sociais. Nesse sentido, vender ou comprar não se dá apenas por simples troca monetária, tornando-se um ato social que carrega relações de intimidade, confiança, respeito, reconhecimento e valorização. Essas questões vão ao encontro do crescente debate que envolve noções sobre a qualidade dos alimentos, as preferências, a (re)localização da produção e a (re)conexão do consumo. A qualidade percebida passa a englobar relações de confiança, tradição e lugar, associando qualidade à pequena produção, a práticas tradicionais, a paisagens e recursos locais, alicerçando ou gerando novas formas de organizações produtivas. Esse movimento pode ser caracterizado como quality turn ou “virada da qualidade”, que, no Brasil, se traduz na crescente demanda por produtos tradicionais, artesanais, orgânicos e por iniciativas que qualifiquem alimentos quanto à sua origem, como o Selo Nacional da Agricultura Familiar (SENAF), selos de identificação geográfica e denominação de origem, como o Selo Serro ou o Selo Canastra para queijos mineiros.

Vinculando-se o papel dos canais curtos de comercialização e da virada da qualidade, tem-se o papel do(a) agricultor(a) familiar que, geralmente, utiliza as feiras como uma das formas para comercializar seus vários produtos, formando estes circuitos de interação social únicos, que são criados e mantidos mesmo em uma cidade com cerca 1,56 milhões de habitantes.

Dentre frutas tradicionais do Cerrado, legumes, panificados, os diversos produtos derivados de leite e outros produtos processados que são ofertados por agricultoras e agricultores familiares nas feiras de Goiânia, destaca-se aqui os produtos lácteos. A produção de leite na mesorregião metropolitana de Goiânia é tímida, mas evidencia que a agricultura familiar resiste mesmo perto de grandes centros, contribuindo para o abastecimento de alimentos para a capital e cidades do entorno. Esses produtos, característicos do processamento de alimentos realizados por famílias rurais, estão presentes em mais de 93% das feiras livres da capital.

Apesar da quantidade considerável de feiras que ocorrem em Goiânia, em apenas 32 feiras livres pode-se encontrar produtores(as) familiares que fabricam produtos lácteos. Geralmente as bancas dos produtores(as) familiares são menores, mas com maior diversidade de produtos. Pode-se encontrar frango caipira, ovos caipiras, doces de frutas, temperos, frutas, biscoitos e panificados. Dos lácteos, encontra-se leite in natura, diversos tipos de queijos frescos e curados, doces de leite, manteigas, requeijão e outros. Os produtos são produzidos em 18 cidades goianas e percorrem, em média, 62km para chegar em Goiânia, enfrentando problemas como a própria distância e a má qualidade de estradas.

Mas a maior parte da comercialização de derivados de leite que ocorre nas feiras de Goiânia não se dá pelos próprios produtores. Cerca de 74% dos produtos são vendidos por intermediários ou atravessadores, que compram de produtores, de outros atravessadores ou de ambos. Grande parte dos atravessadores que compram os produtos direto dos produtores consideram-nos como provenientes de agricultores(a)s familiares, evidenciando o protagonismo da agricultura familiar na produção destes produtos no estado. Os produtos vendidos pelos atravessadores também são fabricados em 31 municípios goianos, sendo também encontrados queijos famosos produzidos em Minas Gerais, como o Queijo Canastra.

Apesar de se apresentarem em menor número nas feiras de Goiânia, os feirantes de lácteos que se consideram agricultores(as) familiares expressam a resistência da agricultura familiar em produzir produtos tão tradicionais como os derivados de leite, que fazem parte da dieta dos goianienses. Em números, o protagonismo da agricultura familiar é traduzido em 73% dos produtos lácteos encontrados nas feiras. Para além do produto e seu preço, na maioria das vendas das bancas de produtores(as) familiares de lácteos, foram observadas relações de amizade, intimidade e confiança. Os(as) consumidores(as) chegavam às bancas sorrindo, trocando brincadeiras e contos de casos pessoais de suas vidas. Há também uma relação de confiança bem desenvolvida, que permite aos(as) consumidores(as) confiarem produtos por encomenda, às vezes de maneira personalizada, como a compra “fiada”.

As mulheres agricultoras responsáveis pelas bancas e venda de produtos lácteos merecem seu destaque.  Ao ocupar estes espaços públicos, elas são visibilizadas, assim como fica visibilizado também seu trabalho, função e posição na fabricação dos queijos e outros produtos.

Os produtos também merecem ações de destaque, para que assim possa haver o reconhecimento pelos consumidores(as) e consequente valorização e fortalecimento da agricultura familiar no estado. Para tanto, é essencial o envolvimento em debates que giram em torno do papel da agricultura familiar na promoção de segurança alimentar e nutricional, alimentação saudável e o potencial das cadeias curtas, para que se possa gerar ações de apoio aos produtores(as) familiares que contribuam para sua autonomia e independência, que levem em consideração as peculiaridades dos sistemas de produção, distribuição e consumo de destes alimentos. Espera-se que desse modo seja possível perpetuar-se o simples, mas prazeroso hábito de ir à feira, em qualquer “feira”, rir-se da vida com o feirante, comprar queijinhos fresquinhos, ao passo que se reconhece e valoriza a produção familiar.

* Charla Basílio Schinaider Segundo ([email protected]) é bacharel em Agronegócio pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e mestre em Agronegócio pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Este texto é resultado de sua pesquisa de mestrado, que resultou na dissertação “Mercados e comercialização de produtos lácteos pela agricultura familiar nas feiras livres de Goiânia-GO”.

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