Textos & Notícias

Em destaque:

Visual Portfolio, Posts & Image Gallery for WordPress

Cozinha afetiva de verdade

Apostar na simplicidade, no destaque do ingrediente bom, limpo e justo e na valorização do que nos cerca são o caminho da verdadeira cozinha afetiva.

Foto: Aline Guedes, por Wolas Fotografia

“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi com as mulheres quilombolas que compreendi que a cozinha e o cozinhar não deveriam ser vistos da forma complicada que sempre vi, pelos ensinamentos no curso superior de gastronomia.” Relembra Aline Guedes, que além de chef de cozinha é também professora de gastronomia e pesquisadora dos quilombos remanescentes do Estado de São Paulo. 

A chef aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre trabalhou como cozinheira e percebendo o interesse da filha a incentivou no caminho. Tanto que à época do vestibular negociou com as donas das casas onde trabalhava, para que assim pudesse custear a faculdade de gastronomia da filha. Sem romantizar essa relação afetiva com a cozinha, Aline teve medo mas seguiu no curso. Já como professora de gastronomia quando conheceu o Slow Food, conta que logo entendeu a importância do movimento e incluiu a Arca do Gosto como tema do TCC de alunos da faculdade em que lecionava na época: “Foi algo que movimentou a instituição de uma forma que eu não imaginava. Os alunos todos começaram a entender os alimentos da Arca. A minha fala era de que se não cuidarmos agora não vamos ter para daqui uma, duas gerações e eu senti que eles ficaram aflitos mesmo, querendo fazer mudanças, e aí a gente começou a desenvolver a Disco Xepa na faculdade.” Uma verdadeira cozinha afetiva é essa que se baseia na construção de relações, no respeito e na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo comum. 

Aline e os alunos da faculdade de gastronomia durante a Disco Xepa. Foto: Arquivo pessoal.

Como professora, mulher preta e nascida na periferia de São Paulo, ela conta que ficou tocada quando uma aluna se identificou com ela e fez questão de lhe dizer pessoalmente o quanto a presença dela significava representatividade. Episódios que se repetem ainda hoje em diversos espaços por onde transita em sua vida profissional. “Questões de raça e gênero não podem ser descartadas na discussão atual acerca de como as cozinhas profissionais e escolas de gastronomia seguem reproduzindo os problemas estruturais da nossa sociedade, tais como racismo e machismo.” Para ela, a sua consciência de gênero e o letramento racial foram conceitos enraizados durante a pesquisa de mestrado dentro do quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Nos quilombos, a organização social é diferente e as comunidades são matrilineares onde além da linhagem de descendência materna, a liderança é feminina. Como explica Aline: “A matrilinearidade fomenta a preservação de ritos e rituais de comensalidade e a salvaguarda de alimentos ancestrais, por meio da repetição e transmissão de conhecimentos de geração em geração“. 

Pensar no futuro da culinária e gastronomia brasileira exige olhar para a rica herança cultural que nos cerca e para as mulheres como as grandes guardiãs da nossa cultura alimentar. O trabalho de Aline como chef de cozinha vai nessa direção tendo como fio condutor a relação e o respeito. A chef que atua também como produtora de conteúdo de gastronomia na mídia e nas redes sociais tem um jeito leve de comunicar e usa das oportunidades e aprendizados, como, por exemplo, a recente especialização em vinhos para produzir conteúdos acessíveis: “Sinto que as pessoas que se interessam pelos conteúdos relacionados a vinhos pretendem aprender mais sobre essa bebida ancestral e que sentem pela minha fala, que o vinho é para todos”. É fundamental que mais profissionais levem para as cozinhas do Brasil a brasilidade e centralidade do papel de mulheres que são reverenciadas nas receitas de vó, no papel de mães, mas como profissionais permanecem marginalizadas.

Cozinha afetiva de verdade

Date fevereiro 17, 2023
“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi…

Notícias Slow Food +

Visual Portfolio, Posts & Image Gallery for WordPress

Projeto Slow Food Indica fortalece a agricultura familiar baiana por meio da comunicação

Estratégias de marketing focadas na valorização e divulgação da agricultura familiar baiana garantem visibilidade às organizações produtivas do estado.

por Alexandra Duarte e Nane Sampaio

Slow Food Indica presente nos estandes de venda durante a edição de 2022 da FEBABES. Credito: Mirela Boullosa.

Os alimentos bons, limpos e justos possuem histórias que precisam ser contadas. Há estratégias de comunicação e de narrativa que precisam estar na base de projetos e políticas voltadas para a alimentação. Contar as histórias reais por trás dos alimentos das agroindústrias, transparecendo cada etapa do processo produtivo, desde a origem, é uma maneira de cultivar experiências de consumo responsável, gerando conexão junto ao público. Com foco em regenerar e desenvolver as relações de mercado, e fomentar práticas e saberes tradicionais das famílias agricultoras e guardiãs da biodiversidade da Bahia, um circuito de estabelecimentos comerciais, inicialmente mapeados na capital, está utilizando materiais estratégicos de comunicação do projeto “Slow Food Indica”.

Karla Uckonn conta que o projeto conseguiu sensibilizar as pessoas que estão envolvidas diretamente na venda, para dar uma informação mais completa aos consumidores. “Isso tem sido muito potente, mesmo na equipe interna, no sentido de provocar a discussão acerca da complexidade que é o rastreio da origem desses alimentos. Ao mesmo tempo, oferece ferramentas de comunicação para que a gente consiga informar e formar o consumidor sobre como consumir melhor.”, explica Karla, coordenadora do Centro Público de Economia Solidária de Salvador (CESOL), uma das lojas parceiras do projeto.

Assim, a iniciativa Slow Food Indica oferece um suporte às ações de comercialização para fortalecer a divulgação nos pontos de venda visando despertar o interesse dos consumidores e destacar nas prateleiras alimentos com identidade, produzidos por nove cooperativas da agricultura familiar, que adotam boas práticas de produção, processamento e distribuição que, de alguma forma, convergem com as diretrizes do bom, limpo e justo, promovidas pelo  movimento Slow Food. 

Na 14ª edição do Terra Madre Salone del Gusto, que aconteceu em Torino (Itália) em setembro de 2022, o jornalista americano Micheal Moss alertou os ativistas presentes de que movimentos sociais como o Slow Food devem lutar para ocupar espaços midiáticos como especialistas no tema da alimentação. Em sua palestra “A Importância da Mídia: Como contar sua própria história” ele destacou que é urgente criar narrativas, imagens impactantes e contar histórias que sensibilizem o público consumidor e que sejam atrativas por si, deixando de aparecerem apenas como um contraponto ao agronegócio ou à indústria da alimentação. 

Nesse sentido, o Slow Food Indica fornece um caminho promissor ao atuar de forma ampla na comunicação acerca desses alimentos e produtos da agricultura familiar baiana. Muito mais do que estratégias de mercado para convencer, visa sobretudo promover um consumo responsável quando conta as histórias desses alimentos que fazem parte da cultura alimentar da Bahia. 

Karla aponta dois desafios na comercialização dos produtos e identifica a atuação do movimento Slow Food como fundamental na formação de um consumidor mais consciente “Vejo um duplo desafio: o da relação dos produtores com o mercado. A gente enquanto centro público atua muito no fortalecimento do empreendimento, de forma saudável, a partir das regras de mercado. Então, o Slow Food vem somar com esse segundo desafio que é o consumidor entender os diversos aspectos que estão envolvidos no processo produtivo mesmo. Entender quais são as fortalezas, os territórios da Bahia, e como é a produção. Aquilo que consumimos impacta na gestão de um território. Enfim, o que faz bem para mim, que é o que faz bem para o território, é o que faz bem para a natureza, é o que estabelece práticas solidárias e sustentáveis nas relações de trabalho e produção.”

O projeto, pactuado junto à Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), foi lançado durante a 13ª edição da Feira Baiana da Agricultura Familiar e Economia Solidária, FEBAFES, considerada uma das maiores feiras do país. Um espaço estratégico, que acolheu em sua programação diversas atividades que geraram visibilidade, entre elas uma mesa aberta para lançamento oficial do Slow Food Indica, transmitida ao vivo pelas redes sociais, que contou com a participação de representantes das organizações produtivas familiares, parceiros institucionais e do CESOL. 

Doces da COOPERCUC, uma das cooperativas que participa do Projeto Slow Food Indica na Bahia. Crédito: Mirela Boullosa

Para Denise Cardoso, cooperada da Coopercuc – Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá: “O lançamento foi importante principalmente por acontecer durante a FEBAFES que é o espaço de construção e encontro da agricultura familiar da Bahia. Trazer essa conversa foi importante no sentido da gente conhecer um pouco mais o projeto. A gente fez parte de todo o processo de construção, mas compreender como funciona foi bem mais interessante para a cooperativa e, também, enxergar as outras cooperativas que estão dentro do projeto.” A Coopercuc existe desde 2004 com o objetivo de qualificar e comercializar a produção dos produtos dos cooperativados. Atualmente, é composta por 450 famílias de 18 municípios do sertão baiano. É parceira do Slow Food desde sua fundação no trabalho de promoção e valorização dos alimentos do semiárido brasileiro, sendo que o umbu e o maracujá-da-caatinga da Coopercuc, são ambas Fortalezas Slow Food.  

Ainda durante o evento, um estande de informações dedicado ao movimento Slow Food, muito bem localizado em frente a Cozinha Show, e uma entrevista na Rádio Jovem, do Programa Pró-Semiárido, ampliaram o alcance do público. Por fim, foi uma oportunidade para observar a interação dos consumidores com as peças de enriquecimento promocional nos estandes de comercialização da feira e o interesse nas inovações digitais adotadas, como as etiquetas narrativas, que utilizam a tecnologia de QR Codes, para aproximar o ambiente real ao virtual e, assim, conectar o campo à mesa, enaltecendo as características dos produtos.
Os interessados têm acesso a lista completa das cooperativas e produtos indicados, todos livres de transgênicos e agrotóxicos, e também podem consultar a localização e os contatos dos estabelecimentos comerciais selecionados, que receberam os materiais de apoio à promoção e rastreabilidade, através do endereço slowfoodbrasil.org.br/sfindica/.

Projeto Slow Food Indica fortalece a agricultura familiar baiana por meio da comunicação

Estratégias de marketing focadas na valorização e divulgação da agricultura familiar baiana garantem visibilidade às organizações produtivas do estado.

Por mais ativismo alimentar na gastronomia

“É preciso mudar radicalmente o sistema alimentar vigente”, defende Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, em evento realizado em São Paulo no início de novembro de 2022.

Integrantes do Movimento Slow Food Brasil reunidos com Carlo Petrini no Mesa Tendências 2022. Foto Lucas Mourão.

Em conferência para um auditório repleto de atentos ouvintes, Carlo Petrini defendeu a importância dos ativistas para uma mudança radical do atual sistema de produção de alimentos. No evento Mesa Tendências 2022, realizado pela Prazeres da Mesa, Petrini dedicou sua fala aos diversos profissionais do setor da gastronomia.

Para a reestruturação necessária do sistema de produção de alimentos, Petrini destaca três pontos de partida para a ação. O primeiro consiste na valorização da agricultura familiar campesina “Temos de nos esforçar para pagar aos agricultores e produtores o preço justo, e ainda não o conseguimos fazer. Quando um grande chef utiliza produtos provenientes de povos indígenas, a primeira coisa que deve levar a sério é reconhecer o seu valor econômico, para que os agricultores adquiram a dignidade que merecem.” Segundo ele, só assim atingiremos o patamar de um alimento de fato justo.

O segundo ponto é um apelo à mídia especializada, aos jornalistas que devem contribuir com a educação alimentar “Por favor, vamos parar de fazer matérias de avaliação e vamos focar em matérias informativas. Vamos transformar este grande circo de prêmios e estrelas em um trabalho de informação e educação básica em massa.” A inclusão da educação alimentar como disciplina regular em currículos escolares também foi sugerida, no entanto, é preciso caminhar primeiro com o entendimento popular para que essa demanda possa se transformar em política pública.

O terceiro ponto diz respeito à mudança na lógica interna que impera nas cozinhas profissionais da alta gastronomia e reflete em toda a cadeia da hospitalidade e gastronomia no país e no mundo. Petrini aponta que as cozinhas profissionais ainda se organizam com base no método rígido e militar idealizado por Auguste Escoffier no final do século XIX: “O resultado é que hoje em dia nas cozinhas não há abraço ou fraternidade, mas sim violência e sofrimento. Devemos subverter essa lógica, as cozinhas devem tornar-se comunidades produtivas, não quartéis, mas lugares de sociabilidade e formação.”

Comida é cultura, identidade e pertencimento

A fala de Petrini convoca o setor da gastronomia a fazer parte de um processo mais amplo que é o de reconhecer e defender a cultura alimentar. Entender que comida, desde o cultivo, passando pela forma de preparo até os modos e rituais consumo é cultura.  A comida está intimamente ligada à tradição e à identidade de um povo. Só a partir dessa compreensão e com envolvimento da comunidade surge o componente fraterno que levará à mudança do sistema de produção de alimentos.

Desde 2000, oSlow Food atua em projetos junto à agricultura familiar e camponesa, às comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas. O movimento atua na defesa e na promoção das práticas, técnicas e alimentos com os quais as comunidades trabalham e de onde retiram sustento ao mesmo tempo em que protegem a terra. Outra frente do movimento tem presença em diversos eventos de valorização da sociobiodiversidade e da gastronomia como o Mesa SP, e contribui na formação de cozinheiros e profissionais ativistas da alimentação. Esse ano, a Associação Slow Food Brasil (ASFB) foi reconhecida como Instituição Cultural pelo governo do Estado de São Paulo, passo fundamental para a manutenção da atuação da própria instituição nos territórios. Agora, a associação faz parte do Programa da Nota Fiscal Paulista e pode receber doações diretas por meio dele.

O cadastro como doador é simples e assim você apoia o trabalho realizado pela ASFB. Imagem: divulgação.

Apesar de o ano 2022 ter sido desafiador, é preciso celebrar essa conquista. Elaine Diniz, coordenadora administrativa da ASFB, explica como funciona o programa. “Todas as pessoas – física (CPF) ou jurídica (CNPJ) – podem ajudar, é uma doação a custo zero. Para pessoas físicas, basta se cadastrar através do site do programa da Nota Fiscal Paulista e escolher a organização a qual deseja doar os créditos.” A boa notícia é que o doador concorre a prêmios em dinheiro ao se cadastrar no programa. Já para pessoas jurídicas o processo é através de campanhas “Os estabelecimentos podem ajudar estimulando a doação do documento fiscal, emitido em razão da aquisição de mercadorias, bens ou serviços de transporte interestadual ou intermunicipal, desde que o documento fiscal não indique o CNPJ ou CPF do consumidor”, explica Elaine. Um guia completo sobre como fazer a doação pode ser acessado no link  slowfoodbrasil.org.br/nfpaulista/.

Como é tempo de celebrações, de encerramento de etapas e de sonhar novas, fica aqui o convite para que possamos não só apreciar, mas pensar a gastronomia, a partir da cultura, da agroecologia e da comunidade no próximo ano. 

Por mais ativismo alimentar na gastronomia

“É preciso mudar radicalmente o sistema alimentar vigente”, defende Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, em evento realizado em São Paulo no início de novembro de 2022. Integrantes do Movimento Slow Food Brasil reunidos com Carlo Petrini no Mesa Tendências 2022….

Cajuí – Da  conservação do Cerrado à cena gastronômica da capital federal

O cajuzinho do Cerrado é mais um exemplo de como o agroextrativismo é uma chave na conservação do cerrado. Para isso é preciso fortalecer a cultura alimentar como fundamento da gastronomia.

Processamento cajuzinho do Cerrado durante Curso com Dona Fióta realizado em maio de 2019, em parceria com Ana Paula Boquadi. crédito: Niklas Stephan

O cajuí é do tamanho de um polegar e, quando maduro, de cor intensa e brilhante entre laranja e vermelho. As características sensoriais do cajuzinho do cerrado são muito apreciadas na gastronomia. Acidez e doçura equilibradas, combinadas a uma textura fibrosa e adstringente fazem dele um versátil ingrediente tanto para receitas salgadas, quanto doces.

“A partir do momento que você corta o cajuzinho e tira o sumo, ele agrega o sabor do molho que você quer. Apesar de ser doce, é ácido e tem essa estrutura carnosa. Ele é muito fibroso e, ao mesmo tempo, suculento.” Pedagoga formada pela Universidade de Brasília e cozinheira por vocação familiar, Ana Paula Boquadi enveredou-se pelo caminho da educação ambiental e alimentação vegana baseada no uso dos frutos do cerrado com o objetivo de valorizar a cultura alimentar do bioma. Desde 2009, realiza cursos de cozinha onde ensina como usar ingredientes nativos do Cerrado. Entre 2014 e 2020 manteve o Buriti Zen, um restaurante com cardápio diário de refeições veganas e orgânicas. Logo que introduziu Cajuí nas receitas, o ingrediente virou uma das estrelas do cardápio, figurando em receitas tão diversas como moqueca, compotas e tortas doces.  

Bolo com compota de Cajuí – Curso com Dona Fióta e Ana Boquadi em parceria com a Occa em 2019, em Brasilia. crédito: Niklas Stephan

Em 2017, por meio de atividades junto à comunidade do Slow Food Cerrado, Ana conheceu Dona Fióta e Seu Calisto moradores do Vão de Almas, comunidade localizada na cidade de Cavalcante na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, que faz parte do quilombo Kalunga. A cultura dos povos Kalunga tem mais de 300 anos de história e é de uma profunda conexão com a terra, vivendo sobretudo do agroextrativismo numa área de proteção em que o Cerra Cerrado é consevado. Vão de Almas faz parte da Fortaleza do Gergelim Kalunga da rede Slow Food Brasil. A semente, cultivada na região desde a fundação do quilombo, é muito usada para controle de formigas nas lavouras de mandioca, além do uso culinário (óleo e sementes torradas). O gergelim pelo seu alto valor gastronômico tem ajudado na renda da comunidade. Além dele, são comercializados fora do estado a cúrcuma e a pimenta de macaco.

O contato com essa comunidade transformou a forma de trabalhar da Ana. A mangaba e o cajuí também têm safras significativas nas comunidades Kalunga, porém são de difícil logística de comercialização. Percebendo esse gargalo, após o encontro com a comunidade, Ana passou a pensar nas receitas do restaurante como um projeto que incluía toda a safra do cajuí, uma vez que a comunidade não conseguia vender, nem escoar essa produção por conta própria. “Eu vi meu papel ali e me tornei um elo da cadeia de produção, de uma ponta à outra. Como Chef de cozinha e cozinheira ligava as pessoas às comunidades do Cerrado.”

Grupo de compras e protagonismo da comunidade

Com a pandemia em 2020 e o fechamento do restaurante da Ana, que passou a funcionar como buffet, foi preciso reinventar esse trabalho de apoio às comunidades que passou ao formato de grupo de compras. O esforço coletivo de cozinheiros e ativistas em Brasília que, como Ana Boquadi, trabalham com os frutos do cerrado e a divulgação da cultura alimentar da região acabou por popularizar os ingredientes e ajudou no escoamento dessas safras de frutos mais delicados que não tinham tanta demanda de mercado. Hoje, o cajuí protagoniza de pães a pratos principais nos restaurantes da capital federal.

Foi nesse processo que surgiu a ideia de um festival dedicado ao cajuzinho do Cerrado em Brasília. Ana explica o projeto, já aprovado, mas ainda em desenvolvimento: “A gente vai realmente mapear os produtores agroextrativistas. E esse é um trabalho que eu acredito ser minha missão profissional. Nada melhor que um festival para oferecer capacitação para as pessoas em relação à produção e conservação, e à diversidade de usos na cozinha do cajuí. E um dos objetivos é dar visibilidade e protagonismo às comunidades, para a gente poder alavancar políticas públicas para extrativistas. Fico imaginando e sonhando! O Brasil precisa desse sonho, de ver essas comunidades bem. A gente precisa/depende delas para ter água boa, para ter ar bom. O mínimo que a gente faz é consumir esses produtos, contar essa história e valorizar essas comunidades.”

Cajuí – Da  conservação do Cerrado à cena gastronômica da capital federal

O cajuzinho do Cerrado é mais um exemplo de como o agroextrativismo é uma chave na conservação do cerrado. Para isso é preciso fortalecer a cultura alimentar como fundamento da gastronomia.

Comida, Comunidade e Regeneração

Regeneração é o tema do Terra Madre – Salone del Gusto 2022, que tem como objetivo ressaltar o protagonismo da agricultura familiar camponesa, dos povos e comunidades tradicionais na produção de alimentos visando a segurança alimentar e nutricional e a busca por caminhos mais efetivos para agirmos diante das atuais crises sanitária e climática. 

“Acho que uma nova gastronomia que se desenha, tem sim que se preocupar com o meio-ambiente, ela tem que se preocupar de onde vêm os alimentos, como isso impacta o meio ambiente e para onde vão os resíduos.” Assim, Luizi Viana, gastrônoma, merendeira e proprietária do Moronguetá Amazônico, defende o que acredita ser o futuro da gastronomia. Luizi será uma das representantes do Brasil na 14º edição do Terra Madre – Salone del Gusto, que acontece entre os dias 22 e 26 de setembro de 2022, em Torino.  

A delegação do Brasil conta também com Bel Coelho, chef de cozinha e ativista socioambiental na luta por uma alimentação de qualidade, saudável e acessível para todos. Bel, que integra a rede de cozinheira/os do Slow Food Brasil, concorda que a forma como comemos tem grande impacto no agravamento da crise climática: “A gastronomia pode ter um papel importante nessa pauta justamente por ter grande visibilidade e se tratar de uma rede produtiva muito importante, a rede da produção de alimentos. Qualquer negócio hoje em dia deve ser pautado pela crise climática e relações sociais mais justas.” 

O posicionamento por parte dos profissionais da área, em especial, os chefs é fundamental para fortalecer a pauta de uma gastronomia mais consciente e responsável. Socorro Almeia, chef de cozinha e integrante da rede de cozinheira/os do Slow Food Brasil também é parte da delegação que representa o Brasil na Itália. Ela nos lembra que defender uma causa é um lugar de luta e de muitos desafios: “O chef ou cozinheira/o ativista tem que ter é coragem para defender o território; a preservação de memórias; o resgate do cultivo de alimentos esquecidos por causa da forte inclusão dos industrializados; as lutas político-sociais como a do fortalecimento da agricultura familiar e o combate à insegurança alimentar, especialmente no país que mais mata ativistas no mundo”.  Para Luizi, o ativismo é a regra e como uma ecogastrônoma, ela reforça outro princípio básico da/o cozinheira/o ativista: “Valorizar a cultura dos povos e suas tradições e aproximar o cozinheiro do comensal.”Por fim, Bel Coelho resume que um chef ativista hoje deve: “Divulgar e alertar a sociedade da importância de se criar consciência das cadeias produtivas para que possamos fazer escolhas sócio-ambientalmente corretas e sustentáveis”. 

O Terra Madre – Salone del Gusto volta ao formato presencial em 2022, depois de uma edição atípica em 2020, devido à pandemia da Covid-19.  Nesse ano, a expectativa é reunir ativistas, cozinheiros, gastrônomos, agricultores e produtores, pesquisadores e o público interessado do mundo inteiro para debater e construir coletivamente novas abordagens em relação aos sistemas de produção e consumo de alimentos. A pandemia revelou que as diversas crises que enfrentamos como sociedade tem origem  no sistema alimentar dominante que promove desigualdade social – o que só faz aumentar problemas como a fome – e o desperdício massivo de alimentos gerado pela forma como funciona a cadeia de distribuição e comercialização de alimentos, sobretudo, nas grandes cidades.

Diante de tantos desafios e vivendo ainda um período de muita incerteza, o tema central desta 14ª edição do Terra Madre é a regeneração, como definida pelo físico e cientista ambiental, Fritjof Capra. Em entrevista concedida a Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, Capra define o conceito: “A primeira característica é que ‘a vida se organiza’ através de redes cujas estruturas e processos não se impõem externamente, mas se auto geram. No centro disso está um processo de regeneração contínua que envolve todos os níveis: do molecular ao social, incluindo, é claro, nosso sistema alimentar. (…) regeneração não significa necessariamente retornar a um estado anterior. Pode significar criar algo novo, e esta é uma descoberta importante na teoria da complexidade. Todo sistema vivo tem pontos de instabilidade, dos quais uma nova ordem pode surgir espontaneamente.”

Terra Madre 2022 – Salone del Gusto: mural em construção no Parque Dora, em Torino, local que sedia o evento este ano. Credito Divulgação

A partir do tema central da 14ª edição do Terra Madre – Salone del Gusto é urgente por parte da gastronomia e todos os profissionais envolvidos com a alimentação pensar ações que em larga escala façam diferença e que sejam de fácil execução, como observa Socorro Almeida: “No momento em que estamos com mais de 33 milhões de pessoas em alto grau de insegurança alimentar no Brasil, não dá pra pensar em não aproveitamento total de alimentos e em cardápios que de fato respeitem a sazonalidade, isso é gastronomia contemporânea, é inovação. Fazer um excelente uso dos alimentos, dos ingredientes na sua época correta de colheita e deixando o mínimo possível de lixo, ou se possível, lixo zero, é se preocupar com o planeta, com as mudanças climáticas.” A fala de Socorro atenta para os dados do último relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) divulgado no início de junho de 2022 que trouxe uma atualização do cenário da fome no país. O relatório Olhe a Fome revela que, no fim de 2020, 19,1 milhões de brasileiros estavam em estado constante de fome e que em junho de 2022, o número subiu para 33,1 milhões. Nesse contexto, Socorro e outros ativistas e pesquisadores têm alertado sobre a urgência de atitudes que possam ser de fato eficazes e não apenas paliativas.

A agenda dos dias de evento em Torino visa discutir desde as escolhas diárias dos indivíduos, passando pelo esforço coletivo das comunidades e sobretudo criando condições para pressionar governos e instituições públicas e privadas a tomarem atitudes concretas. Além das conferências, debates e palestras, a programação conta com três grandes espaços que percorrem os pilares do Chamado para Ação Coletiva – a Biodiversidade, a Educação e o Advocacy/Ativismo. Para além disso, o evento proporcionará experiências como as Oficinas do Gosto e as Oficinas Regenerativas. Já os estandes com comidas tradicionais fruto de um trabalho ancorado nas culturas alimentares compõem o lado celebrativo com a volta do evento presencial. O lado virtual do Terra Madre, que começou em 2020, continuará existindo em conferências e encontros com transmissão simultânea direto de Torino para aqueles que não puderem comparecer presencialmente.   

Comida, Comunidade e Regeneração

Regeneração é o tema do Terra Madre – Salone del Gusto 2022, que tem como objetivo ressaltar o protagonismo da agricultura familiar camponesa, dos povos e comunidades tradicionais na produção de alimentos visando a segurança alimentar e nutricional e a busca por…

Como a cidade pode e deve apoiar o campo?

Na busca por respostas, um consenso é de que qualquer solução passa pela mudança da forma como consumimos, produzimos e distribuímos alimentos.

Fachada Armazém do Campo Rio de Janeiro. Fotos fachada: Ademar Ludwig

Iniciativas como aquelas do Armazém do Campo, rede de lojas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), são exemplos. “Nós somos um lugar, um espaço onde você tem que se sentir entre os acolhidos. Outras dimensões culturais também se manifestam, então, temos aqui: a literatura, a música e a culinária. As mesas… Elas tão ali para a classe trabalhadora conspirar as suas ideias, e você conversar e se encontrar com as pessoas aqui.” Um local de encontro antes de um local de venda, bem nos moldes dos armazéns do início do século XX; é assim que Ademar Ludwig, coordenador nacional da rede Armazém do Campo, define as lojas. Além disso, não usam o termo consumidor para os clientes, preferem chamá-los de parceiros. O primeiro Armazém do Campo foi aberto em 2016 em São Paulo. Hoje, são 21 lojas em todo o Brasil e mais de 50 pontos de venda e experiências de comércio justo com produtos saudáveis produzidos pela reforma agrária.

O objetivo é oferecer um alimento no mínimo sem uso de agrotóxicos, e a meta é crescer na direção da agroecologia, que tem como princípio o respeito total ao meio ambiente aliado ao desenvolvimento social. Já a metodologia da iniciativa prioriza o associativismo e o cooperativismo entre os produtores. “O objetivo (é) ofertar na prateleira esse fruto da luta pela terra que vem lá dos acampamentos e assentamentos, das associações, das cooperativas e das agroindústrias. (E) temos um diálogo com a Via Campesina. A nossa prateleira também tem que ser um espaço para essas organizações disponibilizarem o alimento produzido por elas. Pequenos agricultores, quilombolas, ribeirinhos, juventude rural, a mulher trabalhadora rural, a galera do artesanato, enfim, toda essa agricultura familiar e camponesa.” Outro ponto central da iniciativa é ter na expansão uma estratégia para tornar os produtos mais acessíveis a uma parcela cada vez maior da sociedade, já que o maior desafio que enfrentam é a logística do transporte dos produtos até as lojas. Nesse sentido, mais espaços de venda impactam diretamente no custo.

Orgânicos e, preferencialmente, agroecológicos, essa é regra dos alimentos encontrados nos Armazéns do Campo, a rede de lojas do MST. foto:  Ademar Ludwig

No entanto, foi no contexto da pandemia da covid-19, durante os dois últimos anos, que cresceu a mobilização social em torno de formas alternativas de comércio, consumo e distribuição de alimentos. Várias iniciativas já existentes foram fortalecidas e novas surgiram como aquelas que se empenham na doação para ajuda aos mais vulneráveis, outras focadas na subsistência e outras, ainda, voltadas para comercialização na forma de cestas semanais ou de feiras livres nas cidades. Um mapeamento detalhado desse cenário foi realizado pela Ação Coletiva Comida de Verdade liderada pela ANA, Articulação Nacional de Agroecologia, ainda em 2020. Os resultados podem ser acessados gratuitamente no site oficial da Ação Coletiva Comida de Verdade.

“Os Armazéns viraram esse ponto de diálogo com a sociedade urbana, diálogo em torno do alimento saudável. Principalmente na pandemia, foi muito presente nas lojas a solidariedade, a união para tentar salvar vidas e a fome nesse processo pandêmico” avalia Ademar. Além do aumento pela procura dos produtos da reforma agrária como uma maneira de escapar da lógica dos alimentos vendidos em supermercados, os quais sofreram um aumento abusivo com a alta da inflação, os clientes parceiros também se conscientizaram e se uniram à rede de apoio junto aos produtores. Entre abril de 2020 e janeiro de 2021, o MST doou 6 mil toneladas de alimentos e 1.150.000 de marmitas para pessoas em situação de fome e insegurança alimentar em todo país.

Incentivar a soberania camponesa apoiando a agricultura familiar e camponesa e defendendo a manutenção e a ampliação de políticas públicas relacionadas à alimentação é fundamental ao tripé que orienta o movimento do Slow Food na defesa por um alimento bom, limpo e justo. Na verdade, é essencial para a defesa da cultura alimentar e das gastronomias locais, que tanto têm sido as bandeiras de chefs e cozinheiros contemporâneos. Não é um modismo, é parte de uma responsabilização necessária à sobrevivência da espécie humana e que exige a retomada de um estado de comunhão com o planeta Terra.

*A foto em destaque foi cedida pelo Armazém do Campo de São Paulo.

Como a cidade pode e deve apoiar o campo?

Na busca por respostas, um consenso é de que qualquer solução passa pela mudança da forma como consumimos, produzimos e distribuímos alimentos.

Mangarito, manifesto da cultura e memória alimentar brasileira

O mangarito é um dos 235 produtos da Arca do Gosto do Brasil, e é parte da publicação Arca do Gosto Minas Gerais. O tubérculo nativo do Brasil com alto potencial gastronômico vem retomando espaço no campo por meio da agricultura familiar.

A história do cultivo e consumo do mangarito nas duas últimas décadas é um exemplo do que o programa da Arca do Gosto visa inspirar para todos os alimentos compilados na edição de Minas Gerais. No artigo introdutório, o projeto é definido como “A Arca do Gosto não é uma lista de espécies ameaçadas de extinção, nem um livro de receitas e alimentos tradicionais. É um catálogo da agrobiodiversidade, de alimentos e espécies animais e vegetais que existem porque são frutos da relação essencial do ser humano com a natureza, onde este recebe, seleciona, manipula, aprende a preparar, a processar, a maturar, a consumir e a compartilhar os recursos ao seu redor, dos quais é parte responsável, como um todo.” 1 (p. 23)

Na primeira década dos anos 2000, o Slow Food chegava ao Brasil e, logo, foi formada uma comissão dedicada à pesquisa e catalogação da Arca do Gosto. Ao mesmo tempo, João Lino, um agricultor do interior de São Paulo, apaixonado pelo mangarito, realizava as primeiras colheitas e, a partir de 2001, anuncia a venda de mudas para o plantio no suplemento agrícola do Estado de S. Paulo. O agricultor que cultivava uma memória afetiva com o mangarito desde a infância dedicou parte da sua vida a espalhar o cultivo e a popularizar o alimento. Durante quase uma década manteve um endereço de blog ativo, onde escrevia sobre o alimento e registrava novas descobertas acerca do plantio.

Na apresentação ao leitor, ele conta como se encantou pelo mangarito “Sempre vem a lembrança, de uma boa comida feita pelas mãos calejadas da minha mãe, naquele famoso fogão a lenha (…) Foi muito útil esta vivência na roça, pois me tornei herdeiro de um colossal vínculo com muitas coisas produzidas na terra especialmente com as batatinhas cozidas pela minha mãe, quando tinha uns oito anos de idade, chamadas de “mangarito”.”

Folhas de mangarito, o rizoma comestível fica debaixo da terra. Foto: Neide Rigo, do blog
Come-se.

O tayaó, um de seus nomes populares, quase desapareceu com o crescimento da monocultura a partir da década de 1950. A maior parte dos estudos recentes, inclusive o levantamento realizado para a inclusão na Arca do Gosto, apontam a planta como nativa do bioma da mata atlântica, sendo cultivada e consumida pelos povos originários. No Tratado descriptivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, é descrito como alimento cotidiano com modo de preparo semelhante ao das batatas e do cará. No paladar, o relator destaca as notas acastanhadas, que, aos portugueses, lembravam avelãs e nozes.

Uma geração de brasileiros, que cresceu antes dos anos 1950, tem lembranças afetivas com o mangarito apreciando por ser nutritivo e pelo sabor que lembra o pinhão. Uma rápida pesquisa na internet revela vídeos, postagens em blogs e reportagens cujos comentários ressoam memórias da vida interiorana nos quintais e pessoas ávidas por mudas para plantio.

A internet como ferramenta de comunicação contribuiu para o crescimento do interesse acerca do mangarito nas duas últimas décadas, movimentando trocas entre pesquisadores, cozinheiros e apaixonados, como João Lino. Por volta de 2008, chefs de cozinha, cozinheiros e ativistas introduziram o mangarito na gastronomia local. Alguns preparos comuns são galinha caipira com mangaritos ensopados ou como acompanhamentos: salteados na manteiga e azeite com ervas frescas, como purês ou mousseline.

Desde 2014, a Embrapa pesquisa a planta e seu ciclo produtivo e, em 2019, produziu a primeira cartilha com instruções de plantio. A esperança é que o mangarito possa voltar a povoar feiras e mercados na época da colheita – entre abril e junho, dependendo do microclima regional. Como revela a pesquisa da Arca do Gosto Minas Gerais “Além da importância histórica, cultural, e como elemento da biodiversidade nativa, o mangarito é uma alternativa interessante para o cultivo agroecológico, de grande potencial para agricultura familiar. É uma planta rústica, que pode ser cultivada sem o uso de adubos químicos e agrotóxicos. Mas é também um alimento saboroso e nutritivo, com características únicas e grande potencial gastronômico.” 3 (p. 619)

(1)  e  (3) A Arca do Gosto Minas Gerais, disponível para download no site do Slow Food Brasil.

(2)    Disponível em http://www-mangarito.blogspot.com

Mangarito, manifesto da cultura e memória alimentar brasileira

O mangarito é um dos 235 produtos da Arca do Gosto do Brasil, e é parte da publicação Arca do Gosto Minas Gerais. O tubérculo nativo do Brasil com alto potencial gastronômico vem retomando espaço no campo por meio da agricultura familiar.

Biblioteca e Multimídia:

Visual Portfolio, Posts & Image Gallery for WordPress

Cubu: uma receita brasileira com muita história!

Broa de milho assada na folha de bananeira é quitanda popular em Minas Gerais com história ainda pouco conhecida e forte presença africana e indígena.

Texto: Lucas Mourão (Jaca Verde PANC / Slow Food Beagá)
Foto: Brendon Campos / cubu feito pela Jaca Verde PANC (@jacaverdepanc)

Cubu, João deitado, Pau a pique…Muitos são os nomes para esta quitanda, famosa no interior do estado de Minas Gerais que guarda muita história por trás de sua receita. História essa que é desconhecida por grande parte da população, inclusive na sua região de origem.

O cubu é símbolo da mestiçagem brasileira, que aconteceu tanto na formação do nosso povo quanto da nossa culinária. Nas palavras da quitandeira, Lilian Betânia de Souza Costa, da Associação das Quitandeiras de Congonhas: “Falar do cubu é falar de resgate e valorização de uma quitanda secular. Nos remete ao início da colonização mineira e local. O cubu é uma quitanda preparada com fubá, ovos, açúcar, gordura de porco, erva doce e ou canela, leite, bicarbonato de sódio e farinha de trigo. Era a matéria prima mais abundante entre os escravos. Quem chega a Congonhas, seja no Festival ou em qualquer outra época, quer saborear o cubu.”

A palavra quitanda, muito presente na culinária brasileira, e, especialmente mineira, tem origem no vocábulo kitanda, do dialeto quimbundo, falado em Angola, e significa: “tabuleiros onde são expostos gêneros alimentícios nas feiras”. Em Minas, corresponde a qualquer receita que acompanha uma xícara de café, desde o café da manhã até o lanche da tarde. Roscas, biscoitos salgados ou doces, broas, bolos e outras iguarias, que tornam a culinária mineira tão reconhecida em outros estados brasileiros, e até mesmo no exterior. Fora do estado de Minas Gerais, a palavra quitanda também significa feiras e mercados livres onde são vendidas frutas e verduras.

Na sua origem etimológica, portanto, a quitanda já revela uma forte presença da cultura africana, que junto das culturas indígena e europeia é a base que forma a culinária brasileira. A origem das quitandas remonta ao século XVIII, quando se formou também o estado de Minas Gerais no momento da busca pelo ouro no interior do Brasil e crescente fluxo de escravizados africanos para o país. Quitandas, como o cubu, tem grande importância por serem alimentos de muita resistência, aguentando o transporte por longas distâncias sem se deteriorar.

Segundo a pesquisadora Juliana Bonomo em artigo intitulado As quitandas de Minas Gerais: uma análise das origens de um alimento luso-afro-brasileiro, apresentado no XIII Congresso Luso-Afro Brasileiro de Ciências Sociais, a  receita do cubu surge entre os povos escravizados da etnia Cobu (onde atualmente é o Benin). Inicialmente, era feita apenas com melado de cana e fubá, e os cubus eram assados em forno de barro, de  influência indígena. O primeiro registro da receita data de 1715 na região da atual cidade de Gouveia, em Minas Gerais. A quitanda de massa adocicada e textura macia rapidamente se popularizou por toda a província mineira. Tornou-se muito consumida entre os trabalhadores rurais e tropeiros que em grandes viagens pelo país, conduzindo animais na troca de mercadorias entre as regiões, tinham no cubu, um ótimo alimento, muito durável e de bastante “sustância”.

No entanto, dentre as quitandas conhecidas no imaginário da culinária mineira, o cubu infelizmente não figura entre as mais celebradas como pão de queijo, broa de milho e biscoito de polvilho. Mas é bem comum em algumas cidades mineiras, principalmente em Ipoema, Itabira, Conceição do Mato Dentro e Congonhas, esta última conhecida pelo seu famoso Festival de Quitandas que acontece anualmente e celebra as quitandas feitas pelas grandes cozinheiras da cidade, como a Lilian, da Associação das Quitandeiras de Congonhas. Nas palavras dela: “O Festival trouxe essa fama (para o cobu) pois além de comercializarmos nos nossos estandes, são servidos gratuitamente aos visitantes com o famoso chá de Congonha. Toda sexta e sábado eles são encontrados à venda na nossa feira do produtor rural, daí a importância do cubu para nossa gastronomia local.”

O Festival de Quitandas de Congonhas acontece todo mês de maio e já conta com 19 edições. Desde 2020, o festival não é realizado devido à pandemia da Covid-19 e continua sem previsão oficial para 2022. Enquanto, a quitanda original não pode ser degustada em festa, segue abaixo uma receita original, seguida de uma adaptação vegana. 

RECEITA TRADICIONAL DE IPOEMA, por Eliza Estevão² (resumida)

Ingredientes:

– 1 kg de fubá de moinho d’água
– 1 kg de rapadura derretida com 1 copo de água
– 500g de manteiga
– 3 ovos
– 1 colher de sopa de cravo da índia moído
– 1 colher de sopa de canela em pó
– 1 colher de chá de sal
– 1 litro de coalhada
– 1 colher de sopa de fermento químico em pó
– 500g de farinha de trigo
– 1 colher de sopa de bicarbonato de sódio
– Folhas de bananeira

Modo de fazer:

Misturar em uma tigela a rapadura derretida com o bicarbonato.
Misturar o cravo, canela, sal e manteiga. Bater os ovos e juntar à massa.
Misturar a coalhada com o fermento, apenas incorporando, sem bater.
Juntar a farinha de trigo  e, por último, fubá, misturar delicadamente até que a massa fique homogênea, nem muito dura, nem muito líquida.
Colocar duas colheres de sopa da massa em folhas de bananeira cortadas e aquecidas previamente.
Enrolar, dobrar as pontas, colocar no tabuleiro e assar em forno quente.
O tempo varia entre 20 e 30 minutos, depndendo do forno utilizado.
Os cubus estarão prontos quando a folha de bananeira ficar bem seca. 

Cubu vegano. Foto: Lucas Mourão / Jaca Verde PANC
Cubu e jatobás. Foto: Marcelo de Podestá

Na versão vegana, substituem-se os ovos e a manteiga por óleo vegetal. E o leite por leite vegetal de aveia. Pode ser acrescentado o coco ralado (comum em outras versões), e a farinha de jatobá, fruto do Cerrado brasileiro de alto valor nutritivo e que é, ainda, muito subutilizado por grande parte da população.

Cubu: uma receita brasileira com muita história!

Broa de milho assada na folha de bananeira é quitanda popular em Minas Gerais com história ainda pouco conhecida e forte presença africana e indígena.

⦿ Boletim Slow Food

Novidades das Colunas

Visual Portfolio, Posts & Image Gallery for WordPress

Sataré-Mawé são reconhecidos com “Nobel Verde” em sua primeira edição

Prêmio United Earth Amazônia criado pela família Nobel reforça a necessidade de unir povos e nações da Terra para construir um futuro coletivo e sustentável

texto editado a partir do original por Paola Nano.

A primeira cerimônia de entrega do prêmio da United Earth (também conhecido como “Nobel Verde”) ocorreu em Manaus, no estado do Amazonas, no fim de  fevereiro. Segundo estimativas da ONU, a região abriga 90 nações de diferentes povos indígenas, totalizando cerca de 440 mil pessoas, cada uma com sua língua, sua cultura e seus territórios. Dessas, cerca de 150 milhões são indígenas aldeados.

Um dos prêmios concedidos foi dado aos Sateré-Mawé, cuja comunidade (14.000 pessoas distribuídas em aproximadamente 120 aldeias) tem lutado pela sobrevivência de seu povo e cultura e pela sua soberania alimentar numa região de 8.000 quilômetros quadrados ao redor das nascentes dos rios Andirá e Marau. Apoiar as comunidades indígenas e os seus sistemas alimentares tradicionais significa conservar a biodiversidade do mundo. No caso da Sateré Mawé, Obadias e outros líderes comunitários juntaram-se ao movimento Slow Food em 2002, quando  foi articulada a Fortaleza do Waraná Sateré-Mawé para proteger e valorizar um alimento sagrado com elevado valor cultural, que popularmente chamamos guaraná. 

Em 2020, o waraná dos Sateré-Mawé obteve a Denominação de Origem (D.O.) brasileira. “Conseguir a Denominação de Origem significa certificar que o produto, com suas características ligadas a fatores humanos e naturais, apenas existe naquela área geográfica específica”, explicou Maurizio Fraboni, doutor em socioeconomia  do desenvolvimento, que há décadas trabalha ao lado dos Sateré-Mawé. A D.O. do waraná é ainda mais significativa visto que a bacia hidrográfica formada pelas águas dos rios Andirá e Marau é o banco genético natural do guaraná, o único do mundo. Um santuário ecológico e cultural construído ao longo dos séculos.

Na floresta, os Sateré-Mawé coletam as sementes que caem aos pés das plantas de waraná, trepadeiras selvagens de até 12 metros de altura, e as plantam em clareiras, onde são manejadas e mantidas em arbustos cultivados. Das sementes, por meio de métodos tradicionais de beneficiamento, os Sateré-Mawé obtêm um extrato muito nutritivo que combate o cansaço e estimula as funções cognitivas e a memória. Um suplemento já bem conhecido, hoje comercializado em todo o mundo. Impulsionada pelos negócios, a indústria agroalimentar começou a impor o uso de variedades obtidas por clonagem a muitos agricultores que produzem fora das terras indígenas.

Para administrar o mercado de forma respeitosa e sustentável, foi criado o Consórcio de Produtores Sateré-Mawé (CPSM) que, por sua vez, faz parte do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM), o maior órgão de representação política desse povo. O CPSM é responsável pela gestão, controle e comercialização do waraná em bastão (pão de waraná) e em pó, e representa os produtores Sateré-Mawé em eventos nacionais e internacionais, defendendo a causa indígena em diversos contextos políticos.

Um papel essencial na polinização da planta do waraná é desempenhado pela abelha canudo (Scaptotrigona xantothrica), na língua indígena Sateré-Mawé “Awi’a sese”, que também se tornou Fortaleza Slow Food por sua conexão ecológica com o waraná e o ecossistema. Trata-se de uma abelha muito resistente, que produz um mel extraordinário, com um sabor marcante e selvagem. A conexão dos Sateré-Mawé com essa abelha sem ferrão remonta à época pré-colombiana. O conhecimento tradicional Sateré-Mawé que quando Anumaré Hit subiu ao céu, transformado em Sol, convidou a irmã Uniawamoni para ir com ele. A mulher hesitou, mas depois decidiu ficar na Terra, transformando-se em abelha para cuidar, com os Sateré-Mawé, das florestas sagradas do waraná. Esse mito transmite o que os antigos Mawé já sabiam e que estamos redescobrindo hoje, ou seja, que as abelhas nativas sem ferrão são responsáveis pela polinização de 80% das espécies vegetais da Amazônia. Sem elas, a floresta desapareceria.

Sataré-Mawé são reconhecidos com “Nobel Verde” em sua primeira edição

Prêmio United Earth Amazônia criado pela família Nobel reforça a necessidade de unir povos e nações da Terra para construir um futuro coletivo e sustentável.  texto editado a partir do original por Paola Nano. A primeira cerimônia de entrega do prêmio da…

Cozinha afetiva de verdade

Apostar na simplicidade, no destaque do ingrediente bom, limpo e justo e na valorização do que nos cerca são o caminho da verdadeira cozinha afetiva.

Foto: Aline Guedes, por Wolas Fotografia

“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi com as mulheres quilombolas que compreendi que a cozinha e o cozinhar não deveriam ser vistos da forma complicada que sempre vi, pelos ensinamentos no curso superior de gastronomia.” Relembra Aline Guedes, que além de chef de cozinha é também professora de gastronomia e pesquisadora dos quilombos remanescentes do Estado de São Paulo. 

A chef aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre trabalhou como cozinheira e percebendo o interesse da filha a incentivou no caminho. Tanto que à época do vestibular negociou com as donas das casas onde trabalhava, para que assim pudesse custear a faculdade de gastronomia da filha. Sem romantizar essa relação afetiva com a cozinha, Aline teve medo mas seguiu no curso. Já como professora de gastronomia quando conheceu o Slow Food, conta que logo entendeu a importância do movimento e incluiu a Arca do Gosto como tema do TCC de alunos da faculdade em que lecionava na época: “Foi algo que movimentou a instituição de uma forma que eu não imaginava. Os alunos todos começaram a entender os alimentos da Arca. A minha fala era de que se não cuidarmos agora não vamos ter para daqui uma, duas gerações e eu senti que eles ficaram aflitos mesmo, querendo fazer mudanças, e aí a gente começou a desenvolver a Disco Xepa na faculdade.” Uma verdadeira cozinha afetiva é essa que se baseia na construção de relações, no respeito e na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo comum. 

Aline e os alunos da faculdade de gastronomia durante a Disco Xepa. Foto: Arquivo pessoal.

Como professora, mulher preta e nascida na periferia de São Paulo, ela conta que ficou tocada quando uma aluna se identificou com ela e fez questão de lhe dizer pessoalmente o quanto a presença dela significava representatividade. Episódios que se repetem ainda hoje em diversos espaços por onde transita em sua vida profissional. “Questões de raça e gênero não podem ser descartadas na discussão atual acerca de como as cozinhas profissionais e escolas de gastronomia seguem reproduzindo os problemas estruturais da nossa sociedade, tais como racismo e machismo.” Para ela, a sua consciência de gênero e o letramento racial foram conceitos enraizados durante a pesquisa de mestrado dentro do quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Nos quilombos, a organização social é diferente e as comunidades são matrilineares onde além da linhagem de descendência materna, a liderança é feminina. Como explica Aline: “A matrilinearidade fomenta a preservação de ritos e rituais de comensalidade e a salvaguarda de alimentos ancestrais, por meio da repetição e transmissão de conhecimentos de geração em geração“. 

Pensar no futuro da culinária e gastronomia brasileira exige olhar para a rica herança cultural que nos cerca e para as mulheres como as grandes guardiãs da nossa cultura alimentar. O trabalho de Aline como chef de cozinha vai nessa direção tendo como fio condutor a relação e o respeito. A chef que atua também como produtora de conteúdo de gastronomia na mídia e nas redes sociais tem um jeito leve de comunicar e usa das oportunidades e aprendizados, como, por exemplo, a recente especialização em vinhos para produzir conteúdos acessíveis: “Sinto que as pessoas que se interessam pelos conteúdos relacionados a vinhos pretendem aprender mais sobre essa bebida ancestral e que sentem pela minha fala, que o vinho é para todos”. É fundamental que mais profissionais levem para as cozinhas do Brasil a brasilidade e centralidade do papel de mulheres que são reverenciadas nas receitas de vó, no papel de mães, mas como profissionais permanecem marginalizadas.

Cozinha afetiva de verdade

“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta,…

Colunas temáticas:

Alimentação e Cultura

Com a mão no queijo

Genius Loci