Contar, registrar, salvaguardar

Contar as histórias sobre modos de viver e conviver de um povo, para além de registrá-la, é também uma forma de partilhar cultura e sabedoria. 

Cada vez mais livros de receitas tornam-se livros de histórias e casos, cada vez mais publicações educacionais e históricas são narradas como literatura. O interesse pelas histórias e pelo registro da cultura alimentar tem crescido no Brasil. Ao mesmo tempo em que a área, ainda incipiente, da história da alimentação têm crescido bastante desde meados dos anos 2000 – tendo sido inaugurada como campo acadêmico com a obra História da Alimentação do Brasil de Câmara Cascudo em 1967 e, hoje sabemos, que antes disso em 1922, o artigo inaugural foi “Advertência Preliminar” de Manuel Querino.

Tal interesse abre espaço para narrativas que perpassam e dialogam com diversos campos do conhecimento – antropologia, história, sociologia, química, física – e também, saberes culturais ancestrais anteriores ao cientificismo. Até porque num campo tão amplo e vivo como o da história da alimentação, objeto de estudo é formado por saberes que estão sempre em processo de transformação dentro da cultura alimentar. O trabalho do Slow Food atua também nessa linha de pesquisa e registro para salvaguarda de culturas tradicionais. Em 2023, A Associação Slow Food do Brasil conquistou o 36º prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade pelo Inventariamento Participativo da Cultura Alimentar dos Povos Tabajara do Sertão dos Inhamuns e Tremembé da Barra do Mundaú. As publicações de dois inventários participativos de comunidades indígenas do Ceará são produtos resultantes de um projeto mais amplo realizado com as comunidades. 

Apesar do nome pouco familiar para o público em geral, o inventário participativo da Cultura Alimentar dos Povos Tabajara do Sertão dos Inhamuns e Tremembé da Barra do Mundaú são  publicações que narram os modos de viver de cada um dos povos, incluindo detalhes sobre a cultura alimentar como os modos de preparo, receitas e as tradições envolvidas. A grande diferença é que o processo de criação e escrita é coletivo. A partir de vivências com as comunidades, educadoras e pesquisadoras se unem a membros das comunidades para construir o registro. A partir dessa experiência que as publicações ganham forma. 

Desde a seleção das práticas culturais, passando pelas receitas e os modos de cultivo e de criar os animais a serem registrados até a escrita do texto, a escolha de fotografias e a criação das ilustrações, todo o processo é realizado em conjunto com membros da comunidade interessados. O resultado é uma publicação referência para processos de educação patrimonial, pesquisa e modelo para que outras comunidades façam seus inventários. 

 “Guiados pelos indígenas mais experientes, percorremos a TI Tremembé da Barra do Mundaú. Com o grupo da pesca vivenciamos técnicas de navegação pelas camboas, rio e mar e a cata de caranguejo. Para a agricultura plantamos nas áreas das “baixas”, onde ficam a maioria dos plantios coletivos em recente expansão. Também fomos recebidos por experientes cozinheiras para oficinas de culinária e degustação de alimentos, fizemos beiju na casa de farinha educativa do Ponto de Cultura Recanto dos Encantados, conhecemos o horto medicinal e preparamos lambedores (xaropes) da medicina tradicional.” Esse trecho do Inventário dos Tremembé da Barra do Mundaú revela o processo coletivo anterior ao registro. Depois dessa fase são formados grupos de inventariantes para cada um dos modos tradicionais a serem inventariados. Esse grupo entrevista os mais velhos da comunidade, chamados “troncos velhos” e também descreve com vocabulário e léxico próprio as atividades, processos, produtos e métodos daquela comunidade. 

O resultado são textos claros, carregados de histórias, mas também da técnica específica daquela comunidade em seu território. É importante lembrar que embora sirvam como importante material de pesquisa e referência para a compreensão de um povo e seu contexto histórico, social e de salvaguarda, os inventários são textos vivos que sofrem atualizações constantes conforme as transformações pelas quais as comunidades e seu modo de viver passam e precisam ser escritos e reescritos sempre. Os inventários participativos premiados estão disponíveis para download no site www.slowfoodbrasil.org, em português e também em inglês. 

Comments:

Jimmylycle
2 de março de 2024

Good luck :)

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