Cheese 2023, evento internacional promovido pelo Slow Food, aconteceu entre 15 e 18 de setembro e teve como tema central a preservação e a defesa do pasto como fundamental à produção queijeira.
O Cheese defende a produção de queijo artesanal de leite cru de forma ancestral, ou seja, sem a intervenção de produtos industrializados, com animais criados no pasto, sem confinamento, sem o uso de antibióticos ou qualquer tipo de agente coagulante artificial. Iniciado em 1997, o Cheese começou defendendo a diversidade da produção de laticínios fazendo frente à homogeneização de queijos industrializados. Entre 2017 e 2019, tornou-se mais incisivo quando adotou a defesa do queijo de leite cru e apenas o uso de fermentos naturais na produção queijeira. Esse ano, o evento dedicou-se à defesa da preservação do pasto.
O queijo é um alimento universal, feito a partir de três ingredientes simples e naturais: leite cru, coalho e sal. A combinação desses três ingredientes processados de formas variadas revela um dos produtos de maior diversidade gastronômica e biológica da nossa alimentação cotidiana. É importante ressaltar que as qualidades organolépticas (sabor e aromas) e a durabilidade de um queijo estão diretamente conectadas ao modo de produção e à origem dos ingredientes básicos. A diversidade de sabor, textura, aromas, e formatos se dá pela interferência de fatores externos do ambiente natural, ou terroir, (território, clima, vida microbiótica, fungos, disponibilidade de água, sol entre outros fatores). O queijo de leite cru se forma a partir da coagulação das proteínas do leite e é uma forma de preservar o leite, seu melhor, em termos de nutrientes, sabor e longevidade.
“O queijo tradicional do sertão potiguar foi o gatilho para a decisão de mudar de vida em 2002 e também o motivo principal do meu ingresso no movimento Slow Food. Há anos percebia que o “queijo de manteiga” estava sendo adulterado com amidos e outros ingredientes não lácteos. Virou obsessão a luta para resgatar o “queijo puro”, por encontrar quem quisesse voltar a produzir esta iguaria que é identidade alimentar de um povo. Através do Slow Food e de pessoas ligadas ao queijo artesanal no sudeste e centro oeste, me juntei à “Revolução Queijeira”, fazendo parte de diversos grupos de defesa dos queijos artesanais brasileiros.” relembra Adriana Lucena, ativista do Slow Food e do queijo artesanal no Brasil. Adriana é apaixonada por cozinha, sentimento que divide com o pai sociólogo e pesquisador da alimentação. Natural do Rio Grande do Norte, desde 2002 atua profissionalmente com o propósito de resgatar a cultura sertaneja por meio do cultivo agroecológico e de incentivo e apoio para que os mais jovens se mantenham no sertão.
Adriana participou do Cheese em 2023 e considera importante colocar em evidência o território biológico e cultural (terroir) como necessário à produção do alimento. Entende que é parte do movimento de valorização do queijo artesanal de leite cru, um produto cuja produção é lenta e que requer grande cuidado, esforço físico e domínio das técnicas por parte do produtor. Como ela explica, há no Brasil um trabalho de anos para construir e reconhecer por legislação justa o valor cultural e econômico do queijo: “A “Revolução Queijeira” no Brasil começou em 2010 e foi só aí que os queijos brasileiros começaram a ter visibilidade, começaram a ser considerados “artesanais” (para desmistificar “o rústico”, o “de fundo de quintal”). Hoje, já existe um grande número de queijeiros que entendem o pasto como fator determinante ao leite de qualidade, que transfere para o queijo características organolépticas únicas.”
A valorização cultural da produção do queijo artesanal de leite cru é parte de um processo maior que defende a criação de animais de forma sustentável e digna e a preservação da biodiversidade local gerando valor econômico para as comunidades produtoras. Além disso, as técnicas e os processos tradicionais do queijo de leite cru são importantes traços da cultura alimentar e da sociabilidade das regiões produtoras. É fundamental que saibamos separar o joio do trigo e entender que essa forma de produção em nada se assemelha a industrial que envolve grandes rebanhos que acabam não tendo os melhores cuidados, podendo até promover maus tratos animais, uso desenfreados de antibióticos, e com isso contamina rios, solos, lençóis freáticos e os consumidores. Ao contrário, é preciso avaliar inclusive as legislações propostas para o queijo de leite cru no país que tendem a ignoram a importância das etapas e o processo tradicional balizando a regulação do produto àquela imposta aos queijos e laticínios industrializados, onde o risco de contaminação é maior justamente pelo tipo de processo que exige. É necessário compreender que o problema não está na produção do queijo ou da carne, mas sim nas práticas industriais e nas engrenagens que a indústria cria para a sua produção em larga escala.
*Foto em destaque: Laboratório do queijo no evento Cheese. Crédito: Alessandro Vargiu Archivio Slow food