A Rede Slow Food Brasil encontra-se consternada e lamenta profundamente o falecimento da iyalorixá Dona Maria Bernadete Pacífico, referência nacional da luta quilombola e pelos territórios dos povos tradicionais, assassinada na última semana.
O genocídio do povo negro, em especial das comunidades quilombolas, é o resultado de uma combinação nefasta de disputa pelos territórios quilombolas e racismo religioso. Historicamente, esse povo tem sofrido ações genocidas desde seu sequestro de suas terras originárias em África, submetidos a condições desumanas em navios negreiros, até todo o sistema socioeconômico criado no Brasil Colônia (séculos 16 a 19), no qual foram escravizados, com muitas mortes à revelia.
Mãe Bernadete, mais uma vítima desse sistema genocida dos(as) afro descendentes escravizados(as), se constituiu como referência para o povo de santo, através de sua trajetória enquanto iyalorixá líder do quilombo Pitanga dos Palmares, localizado em Simões Filho, Bahia. A mestre quilombola exerceu papel importante na luta pelos Direitos Humanos e foi Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no município de Simões Filho e líder na Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos. Teve seu filho, Binho do Quilombo, assassinado em 2017, caso que nunca foi resolvido pelas autoridades federais e estaduais. Infere-se que o ocorrido tenha razões similares ao que levou ao assassinato de sua genitora.
A trajetória de Mãe Bernadete tem sido inspiradora na luta pela preservação da memória e território dos quilombos e motivou toda uma geração de ativistas, dentro e fora das áreas quilombolas, perpassando todas as manifestações culturais, desde o samba até a comida. Lutava para tornar os produtos de origem quilombola visíveis através da iniciativa dos selos de procedência, que auxiliavam na salvaguarda de alimentos bons, limpos e justos. Neste sentido, se constituiu guardiã dos alimentos tradicionais afro descendentes, salvaguardando seus saberes e fazeres ancestrais e incutindo nas gerações atuais o papel cidadão e protagonista reservado a elas em relação à sociobiodiversidade, local e planetária.
Particularmente, sempre defendeu que a salvaguarda da comida de tradição afrodescendente faz parte de uma luta por todos os direitos humanos essenciais à vida e meios de vida, não só dos quilombolas mas também de todas as gerações e etnias afrodescendentes brasileiras. E, ao se refletir que muitas dessas tradições alimentares originárias dos povos negros escravizados do Período Colonial nem existem mais em África, essa luta envolve também a salvaguarda de uma ancestralidade negra histórica e planetária.
A preciosidade de Mãe Bernadete nos inspira e ao mesmo tempo nos consterna diante desta irreparável perda. Mais do que nunca, se coloca a necessidade da visibilização do debate acerca da proteção dos quilombos enquanto territórios de vida. Importante também defender o entendimento de que a salvaguarda de alimentos tradicionais inclui a realização dos Direitos Humanos aos povos tradicionais e suas lideranças. Esse ocorrido evidencia claramente que há lacunas estruturantes nesses aspectos da realidade brasileira e que deixam aqueles(as) em situação de vulnerabilidade ainda mais criminalmente expostos.
Lutar por soberania alimentar sobretudo é proteger os territórios produtores da especulação imobiliária, da grilagem, da sanha capitalista em ter a morte como motor do seu desenvolvimento. Que a nossa voz seja potente e ecoe para exigir do Estado Brasileiro reparação neste e nos demais casos que caracterizam o genocídio aos quais as comunidades tradicionais, os terreiros, o povo de santo e o povo negro, em geral, está submetido no campo ou na cidade.
Sendo assim, cobramos não só resoluções na esfera jurídica e repressão do aparento policial aos agentes da morte aos povos tradicionais, mas também políticas efetivas de proteção destes territórios, com a destinação de recursos para a sua salvaguarda. A sociobiodiversidade brasileira se constitui, em sua infraestrutura, a partir do predominante papel dos povos afro descendentes. Por sua situação de vulnerabilidade, evidenciada no assassinato de Mãe Bernadete, no conjunto de todos os outros ocorridos, torna-se urgente sua salvaguarda, enquanto questão de defesa universal dos Direitos Humanos.
Texto: GT Antirracismo Slow Food Brasil
Imagem: Conaq