Sabores em risco

A edição de maio de 2010 da Revista Vida Simples publicou artigo sobre a Arca do Gosto:

Não só animais estão ameaçados de extinção. No Brasil, há diversos alimentos perigando desaparecer – levando junto tradições culturais e memórias gastronômicas

No caminho para casa, Carlo decidiu parar no restaurante de um velho amigo com o intuito de se recuperar de uma extenuante viagem com o afago de um prato de peperonata, ensopado italiano salpicado por um pimentão doce e carnudo da variedade “quadrado d’Asti”. Para seu desalento, o que provou foi o empobrecimento do gosto daquela receita dos deuses, sendo que a qualidade do chef era inquestionável. Decepcionado, descobriu que aqueles pimentões perfumados e polpudos que povoavam sua memória gustativa quase não eram mais produzidos na região. No lugar deles, variedades insossas cultivadas em larga escala na Holanda haviam extorquido a originalidade da receita. “São mais baratos e ninguém compra os nossos”, lhe explicou, mais tarde, um ex-produtor dos pimentões de Asti, que sorriu ao dizer que agora cultiva bulbos de tulipas e os envia à Holanda para florescer.

A concorrência dos alimentos produzidos em larga escala é apenas uma das causas que colocam cerca de 800 produtos em uma lista mundial de alimentos em risco de desaparecer. Isso mesmo: assim como animais, ingredientes também podem estar em processo de extinção, afinal, são frutos da natureza. O catálogo internacional chama-se Arca do Gosto, numa referência à metáfora bíblica da Arca de Noé. Foi elaborado e é atualizado constantemente por chefs de cozinha, agrônomos, cientistas da alimentação, jornalistas e antropólogos, que se voluntariam em um projeto da Fundação Slow Food pela Biodiversidade, presidida por Carlo Petrini, o Carlo, que não se conformou com o sumiço dos pimentões de Asti.

Para entrar na lista, um ingrediente ou alimento processado precisa não só estar em risco de sumir do mapa mas ter sabor especial, ser produzido em pequena escala de forma artesanal e estar ligado à memória e à identidade dos habitantes de certa região. “Para mim, como italiano, perder um queijo é como amputar uma igreja gótica ou um castelo medieval, pois gerações de pessoas trabalharam com esse alimento, é um patrimônio identitário, sem ele somos pobres”, diz Petrini.

O mesmo vale para os ovos azuis e verdes das galinhas de Araucania, no Chile, o pão de centeio e aveia recheado com peixe ou carne de porco de Kuopio, na Finlândia, ou a marmelada de Santa Luzia, produzida em tachos de cobre, em pequenas quantidades, com marmelo português, na região de Luziânia, em Goiás. Esses doces, feitos por remanescentes quilombolas e embalados em caixas de madeira, enfrentam a concorrência de marmeladas de produção semiindustrial de qualidade duvidosa – e estão entre os 21 alimentos brasileiros na lista dos ameaçados de desaparecer. Nela, também constam frutas, castanhas, grãos e frutos do mar colocados em risco por motivos variados como a pesca predatória, o avanço de pastos, monoculturas e corte de madeira, que tomam o espaço de cultivo de saborosas variedades nacionais.

Ostras e castanhas

Parece que as mulheres da comunidade de Mandira, no município paulista de Cananeia, são cozinheiras de mão cheia. Ao menos quando se trata do preparo de pão, torta ou farofa de ostra, que os turistas sortudos têm o prazer de experimentar. Diferentemente das ostras que mais se veem em restaurantes, nativas do Pacífico, essas são brasileirinhas e de mangue. Historicamente, a comunidade sempre usou o manguezal como fonte de alimento e renda, mas ele estava sendo destruído gradativamente. A solução foi criar uma reserva no local para protegê-lo. A comunidade também se organizou para formar a Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananeia (Cooperostra). O mesmo podia acontecer lá nos manguezais de Sergipe, onde vive um caranguejo de carne especialmente saborosa: o aratu, que está sendo afugentado, por exemplo, pela poluição do mangue, que recebe ração de criadouros de camarão da redondeza.

Já o pinhão da serra catarinense é petisco de primeira, quando assado na chapa do fogão a lenha, prato principal, quando acompanha um cozido de verduras e carnes chamado entrevero, e ainda merenda, quando recuperado o hábito indígena de embalá-lo com folha de araucária e assá-lo no fogo para depois ser descascado. É o pinhão sapecado, que os catadores do fruto levam para comer durante a jornada de trabalho. Não falta modo de preparo e de consumo do pinhão. Mas pode faltar ele mesmo. Tudo porque as araucárias nativas estão sendo substituídas pelo pinheiro-canadense, plantado para a exploração da madeira.

Nativa do cerrado, a castanha de baru tem sabor semelhante ao do amendoim e da castanha de caju. Pode protagonizar um péde-moleque bem original ou dar um gostinho diferente a um molho pesto. Mas também sofre com a exploração da madeira do baruzeiro e com o desmatamento do cerrado para expansão de pastos e monoculturas. Seu conterrâneo pequi conhece bem essa história. A frutinha, que dá sabor a arroz, feijão e frango cozido ou vira doce e licor, também está sofrendo com o mau hábito de “passar a corrente”. Os moradores do cerrado contam que é comum as árvores serem derrubadas assim, com tratores puxando correntes e colocando tudo abaixo.

Para impedir que todos esses e outros tantos ingredientes sejam encontrados apenas em estampas de selos, existem diversos proje tos para protegê-los. Da mesma forma que em Cananeia, os moradores das comunidades baianas que tiram grande parte de seu sustento do licuri (um coquinho apetitoso que pode ser degustado torrado, caramelizado ou em forma de paçoca) se organizaram em cooperativas. Ingredientes como o umbu (frutinha de sabor azedo que dá no Nordeste) e o palmito juçara (tradicionalmente consumido pelos índios guaranis, no Sudeste) estão em projetos de conservação do Slow Food, as chamadas Fortalezas.

Em parceria com as comunidades locais, trabalha-se para que certos ingredientes não deixem de ser produzidos, incentivando a variedade de receitas, facilitando o contato do produtor com o mercado e divulgando os produtos para que sejam mais consumidos. Afinal, pode parecer contraditório, mas alguns alimentos correm risco de extinção não porque foram explorados demais, mas sim de menos. É o caso até do arroz e do feijão. Não aquele de todo dia, mas variedades que você precisa conhecer.

Arroz e feijão

O arroz vermelho chegou ao Brasil no século 16. Os próprios portugueses que o trouxeram boicotaram sua produção mais tarde, pois a coroa só queria o arroz branco para enviar à metrópole. O grão avermelhado, com toque de castanha e amêndoas, encontrou refúgio no semiárido nordestino, especialmente na Paraíba, onde se tornou prato típico do sertanejo. Porém, muitas vezes o homem rural não consegue fazer dessa iguaria culinária seu ganha-pão. “Muitos agricultores produzem o arroz branco, que é mais comercial, e o vendem para comprar o vermelho, pois é muito importante tê-lo nas festas e na mesa”, diz Roberta Sá, presidente da comissão brasileira da Arca do Gosto. A história se repete com o feijão-canapu, uma variedade de feijão-de-corda comum no Piauí, onde dá sabor a receitas regionais como o mungunzá, prato que também leva milho e carne de porco e é servido em dias de festa. São dois casos em que o que falta é mais gente conhecer o ingrediente.

É por isso que muitos chefs de cozinha passaram a adotar essas iguarias em suas receitas. Anayde Lima, proprietária do restaurante Júlia, em São Paulo, já fez até festival com ingredientes que perigam ir para as cucuias. Um prato que fez muita gente lamber os dedos foi o arroz vermelho com feijão- canapu e pinhão, triplamente salvador de gostosuras. Anayde costuma usar ingredientes em risco de extinção também no “prato do dia” e coloca a historinha do alimento no menu. Quem experimenta se surpreende. “A diferença desses produtos é que eles têm personalidade, um sabor presente. Em geral, o que dá gosto à comida é o tempero. Mas já servi arroz vermelho cozinhado só com água e sal, e o sabor é intenso”, diz.

Ela lembra que também foi de comer de joelhos o doce de corte de umbu (ameaçado!) com queijo de cabra, no lugar do tradicional Romeu e Julieta, calda de cambuci (ameaçado!) com cheesecake e sorvetes artesanais de mangaba e cagaita (ameaçadas!), mas sem leite, para acentuar o sabor dessas frutas azedinhas. A ideia é que, pouco a pouco, as pessoas aprendam a apreciar esses ingredientes. Quem sabe assim não conseguimos salvá-los da extinção e ainda tornálos deliciosos ícones de nossas mesas e memórias? Ficaríamos tão contentes como os italianos de Asti, que agora podem sorrir ao informar que os suculentos pimentões quadrados voltaram a ser produzidos.

Saiba mais:


Texto de Priscilla Santos, publicado na Revista Vida Simples de maio de 2010.

 

Deixe um comentário:

Últimas notícias

Visual Portfolio, Posts & Image Gallery for WordPress

Nós somos natureza

Em torno da agroecologia, representantes de diversas partes do mundo se reuniram para vivenciar o Terra Madre Salone del Gusto, na Itália, incluindo lideranças indígenas do Ceará, acompanhadas da equipe da Associação...