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Cozinha afetiva de verdade
Apostar na simplicidade, no destaque do ingrediente bom, limpo e justo e na valorização do que nos cerca são o caminho da verdadeira cozinha afetiva.
Foto: Aline Guedes, por Wolas Fotografia
“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi com as mulheres quilombolas que compreendi que a cozinha e o cozinhar não deveriam ser vistos da forma complicada que sempre vi, pelos ensinamentos no curso superior de gastronomia.” Relembra Aline Guedes, que além de chef de cozinha é também professora de gastronomia e pesquisadora dos quilombos remanescentes do Estado de São Paulo.
A chef aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre trabalhou como cozinheira e percebendo o interesse da filha a incentivou no caminho. Tanto que à época do vestibular negociou com as donas das casas onde trabalhava, para que assim pudesse custear a faculdade de gastronomia da filha. Sem romantizar essa relação afetiva com a cozinha, Aline teve medo mas seguiu no curso. Já como professora de gastronomia quando conheceu o Slow Food, conta que logo entendeu a importância do movimento e incluiu a Arca do Gosto como tema do TCC de alunos da faculdade em que lecionava na época: “Foi algo que movimentou a instituição de uma forma que eu não imaginava. Os alunos todos começaram a entender os alimentos da Arca. A minha fala era de que se não cuidarmos agora não vamos ter para daqui uma, duas gerações e eu senti que eles ficaram aflitos mesmo, querendo fazer mudanças, e aí a gente começou a desenvolver a Disco Xepa na faculdade.” Uma verdadeira cozinha afetiva é essa que se baseia na construção de relações, no respeito e na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo comum.

Como professora, mulher preta e nascida na periferia de São Paulo, ela conta que ficou tocada quando uma aluna se identificou com ela e fez questão de lhe dizer pessoalmente o quanto a presença dela significava representatividade. Episódios que se repetem ainda hoje em diversos espaços por onde transita em sua vida profissional. “Questões de raça e gênero não podem ser descartadas na discussão atual acerca de como as cozinhas profissionais e escolas de gastronomia seguem reproduzindo os problemas estruturais da nossa sociedade, tais como racismo e machismo.” Para ela, a sua consciência de gênero e o letramento racial foram conceitos enraizados durante a pesquisa de mestrado dentro do quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Nos quilombos, a organização social é diferente e as comunidades são matrilineares onde além da linhagem de descendência materna, a liderança é feminina. Como explica Aline: “A matrilinearidade fomenta a preservação de ritos e rituais de comensalidade e a salvaguarda de alimentos ancestrais, por meio da repetição e transmissão de conhecimentos de geração em geração“.
Pensar no futuro da culinária e gastronomia brasileira exige olhar para a rica herança cultural que nos cerca e para as mulheres como as grandes guardiãs da nossa cultura alimentar. O trabalho de Aline como chef de cozinha vai nessa direção tendo como fio condutor a relação e o respeito. A chef que atua também como produtora de conteúdo de gastronomia na mídia e nas redes sociais tem um jeito leve de comunicar e usa das oportunidades e aprendizados, como, por exemplo, a recente especialização em vinhos para produzir conteúdos acessíveis: “Sinto que as pessoas que se interessam pelos conteúdos relacionados a vinhos pretendem aprender mais sobre essa bebida ancestral e que sentem pela minha fala, que o vinho é para todos”. É fundamental que mais profissionais levem para as cozinhas do Brasil a brasilidade e centralidade do papel de mulheres que são reverenciadas nas receitas de vó, no papel de mães, mas como profissionais permanecem marginalizadas.
Cozinha afetiva de verdade
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Por mais ativismo alimentar na gastronomia
“É preciso mudar radicalmente o sistema alimentar vigente”, defende Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, em evento realizado em São Paulo no início de novembro de 2022.

Em conferência para um auditório repleto de atentos ouvintes, Carlo Petrini defendeu a importância dos ativistas para uma mudança radical do atual sistema de produção de alimentos. No evento Mesa Tendências 2022, realizado pela Prazeres da Mesa, Petrini dedicou sua fala aos diversos profissionais do setor da gastronomia.
Para a reestruturação necessária do sistema de produção de alimentos, Petrini destaca três pontos de partida para a ação. O primeiro consiste na valorização da agricultura familiar campesina “Temos de nos esforçar para pagar aos agricultores e produtores o preço justo, e ainda não o conseguimos fazer. Quando um grande chef utiliza produtos provenientes de povos indígenas, a primeira coisa que deve levar a sério é reconhecer o seu valor econômico, para que os agricultores adquiram a dignidade que merecem.” Segundo ele, só assim atingiremos o patamar de um alimento de fato justo.
O segundo ponto é um apelo à mídia especializada, aos jornalistas que devem contribuir com a educação alimentar “Por favor, vamos parar de fazer matérias de avaliação e vamos focar em matérias informativas. Vamos transformar este grande circo de prêmios e estrelas em um trabalho de informação e educação básica em massa.” A inclusão da educação alimentar como disciplina regular em currículos escolares também foi sugerida, no entanto, é preciso caminhar primeiro com o entendimento popular para que essa demanda possa se transformar em política pública.
O terceiro ponto diz respeito à mudança na lógica interna que impera nas cozinhas profissionais da alta gastronomia e reflete em toda a cadeia da hospitalidade e gastronomia no país e no mundo. Petrini aponta que as cozinhas profissionais ainda se organizam com base no método rígido e militar idealizado por Auguste Escoffier no final do século XIX: “O resultado é que hoje em dia nas cozinhas não há abraço ou fraternidade, mas sim violência e sofrimento. Devemos subverter essa lógica, as cozinhas devem tornar-se comunidades produtivas, não quartéis, mas lugares de sociabilidade e formação.”

Comida é cultura, identidade e pertencimento
A fala de Petrini convoca o setor da gastronomia a fazer parte de um processo mais amplo que é o de reconhecer e defender a cultura alimentar. Entender que comida, desde o cultivo, passando pela forma de preparo até os modos e rituais consumo é cultura. A comida está intimamente ligada à tradição e à identidade de um povo. Só a partir dessa compreensão e com envolvimento da comunidade surge o componente fraterno que levará à mudança do sistema de produção de alimentos.
Desde 2000, oSlow Food atua em projetos junto à agricultura familiar e camponesa, às comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas. O movimento atua na defesa e na promoção das práticas, técnicas e alimentos com os quais as comunidades trabalham e de onde retiram sustento ao mesmo tempo em que protegem a terra. Outra frente do movimento tem presença em diversos eventos de valorização da sociobiodiversidade e da gastronomia como o Mesa SP, e contribui na formação de cozinheiros e profissionais ativistas da alimentação. Esse ano, a Associação Slow Food Brasil (ASFB) foi reconhecida como Instituição Cultural pelo governo do Estado de São Paulo, passo fundamental para a manutenção da atuação da própria instituição nos territórios. Agora, a associação faz parte do Programa da Nota Fiscal Paulista e pode receber doações diretas por meio dele.

Apesar de o ano 2022 ter sido desafiador, é preciso celebrar essa conquista. Elaine Diniz, coordenadora administrativa da ASFB, explica como funciona o programa. “Todas as pessoas – física (CPF) ou jurídica (CNPJ) – podem ajudar, é uma doação a custo zero. Para pessoas físicas, basta se cadastrar através do site do programa da Nota Fiscal Paulista e escolher a organização a qual deseja doar os créditos.” A boa notícia é que o doador concorre a prêmios em dinheiro ao se cadastrar no programa. Já para pessoas jurídicas o processo é através de campanhas “Os estabelecimentos podem ajudar estimulando a doação do documento fiscal, emitido em razão da aquisição de mercadorias, bens ou serviços de transporte interestadual ou intermunicipal, desde que o documento fiscal não indique o CNPJ ou CPF do consumidor”, explica Elaine. Um guia completo sobre como fazer a doação pode ser acessado no link slowfoodbrasil.org.br/nfpaulista/.
Como é tempo de celebrações, de encerramento de etapas e de sonhar novas, fica aqui o convite para que possamos não só apreciar, mas pensar a gastronomia, a partir da cultura, da agroecologia e da comunidade no próximo ano.
Por mais ativismo alimentar na gastronomia
Aliança repudia corte de recursos federais para a promoção da saúde e alimentação saudável em 2023
texto originalmente publicado no site da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável
A Aliança elaborou uma nota de denúncia e repúdio a respeito do corte de recursos federais para promoção da saúde em 2023 como descrito no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviado pelo governo de Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional. Clique aqui para acessar a versão diagramada, ou leia abaixo na íntegra:
NOTA EM REPÚDIO AO CORTE DE RECURSOS FEDERAIS PARA A PROMOÇÃO DA SAÚDE E ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL EM 2023
A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável vem a público denunciar e repudiar o drástico corte de recursos para 2023 que o governo Bolsonaro pretende impor à área de Promoção da Saúde, que inclui os diferentes programas e ações de alimentação e nutrição, do Ministério da Saúde. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviado pelo Ministério da Economia ao Congresso Nacional prevê um corte de 61% do orçamento para 2023 das ações de Promoção da Saúde, Alimentação e Nutrição e Atividade Física, reduzindo o orçamento de R$ 175 milhões solicitados pelo Ministério da Saúde para menos de R$ 68 milhões. E enquanto corta recursos da promoção da saúde, o governo brasileiro segue concedendo benefícios fiscais bilionários para a indústria de refrigerantes na Zona Franca de Manaus, produto associado a doenças que colocam em risco a vida, o bem-estar e a capacidade de trabalho da população brasileira.
Para as ações de alimentação e nutrição, o orçamento previsto destina apenas R$ 25 milhões de reais, um corte drástico dos atuais – e já exíguos – R$ 66 milhões em 2022. Para a devida compreensão sobre a insensatez do corte, o valor mais baixo que o orçamento da área atingiu nos últimos 10 anos foi de R$ 45 milhões em 2011, quase o dobro do previsto para 2023 sem considerar a inflação.
Com este corte de recursos, serão inviabilizados programas como a Estratégia Nacional de Prevenção e Cuidado à Obesidade Infantil – PROTEJA, que repassa recursos para os municípios desenvolverem um pacote de intervenções no âmbito do SUS e em parceria com outros setores (como educação, assistência social, agricultura, esportes, entre outros) para promover ambientes e cidades que possibilitem escolhas de vida mais saudáveis para crianças e famílias brasileiras; além de promover a identificação precoce da obesidade infantil e criar estratégias para melhorar o cuidado a essas crianças. Os valores investidos pelo PROTEJA já são baixos, e o corte orçamentário irá inviabilizá-lo por completo, interrompendo o atendimento a 2 milhões de crianças menores de 10 anos nos 1.320 municípios atendidos. Importante mencionar que o PROTEJA acabou de conquistar um prêmio internacional, recebido pelo próprio Ministro da Saúde, que na ocasião anunciou o valor e o apoio à Estratégia.
Outras ações que serão impactadas com o corte de recursos para Alimentação e Nutrição são a 2a fase do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI), que avalia as práticas de aleitamento materno, de consumo alimentar, do estado nutricional, e as deficiências de micronutrientes de crianças menores de cinco anos. Dados fundamentais para definir, reorientar e reavaliar programas existentes de proteção e promoção da saúde das nossas crianças. Também ficam inviabilizadas inúmeras parcerias com universidades e organismos internacionais para implementação do Guia Alimentar para a População Brasileira e para Crianças Menores de Dois Anos, para elaboração de materiais e ações de educação permanente voltadas a profissionais da saúde, e para o monitoramento da redução de sal e açúcar em alimentos industrializados. O apoio financeiro aos municípios de médio e grande porte, existente desde 2006, para ações de Alimentação e Nutrição também estará comprometido.
Outro corte significativo atinge as políticas de promoção da atividade física, um direito social, tema prioritário da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) e no Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas e Agravos Não Transmissíveis no Brasil (2021-2030), comprovadamente um fator de proteção para doenças crônicas como diabetes, hipertensão arterial e obesidade. O Programa Academia da Saúde (PAS), criado em 2011, será afetado. O Ministério da Saúde custeia mensalmente ações em mais de 1.400 municípios, atendendo uma população de mais de 68 milhões de brasileiros e brasileiras. O atendimento não será mantido com o corte orçamentário previsto no PLOA, dos atuais R$ 51 milhões de reais, para menos de R$ 20 milhões em 2023.
A implementação de políticas de promoção da saúde no âmbito da atenção primária à saúde e para atenção a doenças crônicas não transmissíveis também foram reduzidas de R$ 58 milhões para 22 milhões. Vale dizer que estas enfermidades são um dos principais desafios da saúde no país e no mundo.
Com base nestas informações, que são públicas e estão disponíveis no Painel do Orçamento Federal, a Aliança conclama o Congresso Nacional a não aprovar o PLOA. E denuncia que o projeto de lei enviado pelo governo Bolsonaro irá inviabilizar a promoção da saúde e prevenção de doenças crônicas no próximo ano, o que terá impactos severos na saúde e condições de vida, já ameaçadas, da nossa população.
Brasil, 29 de setembro de 2022.
Imagem: maopode
Aliança repudia corte de recursos federais para a promoção da saúde e alimentação saudável em 2023
Projeto Sociobiodiversidade Amazônica no Acre: desenvolvimento do programa nacional de alimentação escolar (PNAE) para povos indígenas e comunidades tradicionais
Foto: Reunião na Terra Indígena Katukina-Kaxinawá em Cruzeiro do Sul, Acre, sobre o edital da alimentação escolar para povos e comunidades tradicionais.
O projeto Sociobiodiversidade Amazônica da Associação Slow Food do Brasil (ASFB) tem sido realizado nos estados do Amazonas, Acre e Pará. No Acre, atuamos em conjunto com diversas instituições na Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos do Acre (Catrapoacre) para o desenvolvimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para povos indígenas e comunidades tradicionais.
A Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos do Acre (Catrapoacre) envolve diversas instituições governamentais, como a Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esportes (SEE), que coordena a Catrapoacre, a EMATER, a Secretaria de Estado de Produção e Agronegócio (SEPA), a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Embrapa e instituições não-governamentais, como a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), a Câmara Estadual de Comercialização da Sociobiodiversidade, Agroecologia e Produção Familiar no Acre, a Cooperação Técnica Alemã (GIZ), a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) e a Associação Slow Food do Brasil (ASFB).
O desenvolvimento do PNAE para as populações indígenas e extrativistas do Acre tem como base a Nota Técnica nº 03/2020, da 6º Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF) e da experiência no estado do Amazonas. Esta nota facilita o fornecimento das produções agrícolas (tanto vegetal quanto animal) dos(as) produtores(as) tradicionais aos editais de compras públicas da alimentação escolar. Com este embasamento, a produção vegetal processada, como a produção de vinho de açaí, bacaba e buriti, e de sucos diversos, assim como a produção animal (peixes, galinhas, ovos, suínos, caprinos) fica dispensada do aval da vigilância sanitária. Essa dispensa é dada pelo caráter familiar deste beneficiamento, pois, de uma maneira geral, os(as) moradores(as) de uma comunidade tradicional possuem relação parental. Deste modo, o MPF recomendou aos estados e municípios que possuem escolas em comunidades tradicionais, que criem editais específicos para a alimentação escolar.
Para aprofundar a compreensão deste contexto legal, recomendamos:
Guia Prático Alimentação escolar indígenas e de comunidades tradicionais
Animação – Alimentação escolar para povos e comunidades tradicionais
Para garantir que a alimentação escolar indígena e de comunidades tradicionais possa contemplar a riqueza da cultura destes povos, as diversas instituições que compõem a Catrapoacre têm se esforçado para o lançamento de um edital de chamada pública pela Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esportes (SEE). Com o edital publicado, os produtores e produtoras poderão fornecer suas produções agrícolas para as escolas públicas de suas comunidades, uma vez que se inscrevam na chamada pública e assinem o contrato com a SEE.
Nesse sentido, estivemos presentes no mês de agosto em algumas atividades presenciais da Catrapoacre: a reunião presencial da Comissão e a oficina sobre o PNAE para comunidades tradicionais e indígenas na Reserva Extrativista (Resex) Cazumbá-Iracema, que fica em Sena Madureira. A reunião presencial buscou discutir pontos importantes do lançamento desta chamada especial da alimentação escolar e aprofundar a pauta com diversos servidores públicos da SEE. A oficina na Resex Cazumbá-Iracema reuniu extrativistas e os Jaminawas, que vivem na Terra Indígena do Rio Caeté, a qual é vizinha da Resex, assim como instituições vinculadas a Catrapoacre e do município de Sena Madureira.



Esta oficina teve o objetivo de divulgar a política pública de alimentação escolar para estas comunidades tradicionais, apresentar o passo a passo para se inscrever no edital e demonstrar o processo de execução da mesma. Dessa maneira, debatemos sobre as burocracias inerentes ao processo, o que é visto como um grande desafio por extrativistas e indígenas. Outro ponto importante da oficina é estimular a prefeitura de Sena Madureira a adquirir produtos destas comunidades para escolas municipais, tendo em vista que a atual proposta é para as escolas estaduais. Com isso, amplia o número de estudantes a serem atendidos por meio dessa política pública, com alimentação escolar de qualidade e adequada aos seus hábitos alimentares, além de contribuir com aumento da renda de agricultores e agricultoras.
Também aproveitamos a ida ao Acre para ir à Cruzeiro do Sul, no oeste do estado do Acre e banhada pelo icônico rio Juruá. Por lá, tivemos reuniões com o Marcos Nukini, do povo Nukini da cidade de Mâncio Lima, e encontros com os Katukinás e Puyanawas em suas terras indígenas. Estas reuniões tiveram o propósito de debater o lançamento do edital da alimentação escolar, as oportunidades de produtores e produtoras fornecerem suas produções diretamente para as escolas e o impacto positivo gerado na alimentação das crianças e seu aprendizado escolar.


Este edital da alimentação escolar indígena e de comunidades tradicionais deve ser lançado até o final de novembro para que as entregas aconteçam a partir de 2023. Dessa maneira, esperamos que esta política pública constitua uma ferramenta importante para o desenvolvimento territorial desses povos do Acre e uma garantia da segurança alimentar e nutricional desses povos. Há diversos possíveis outros benefícios que podem emergir dessa iniciativa, como o aumento da produção agrícola tradicional e sustentável, da organização social destas comunidades e do aprendizado escolar. Que mais iniciativas como essa possam se espalhar para o Brasil e ocupar todas as terras indígenas, reservas extrativistas, quilombolas e demais territórios tradicionais!
A Associação Slow Food do Brasil estabeleceu uma parceria para o desenvolvimento do projeto Sociobiodiversidade Amazônica com o projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, desenvolvido no âmbito da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, por meio da parceria entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, com apoio do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha. Este projeto está acontecendo nos estados do Amazonas, Acre e Pará ao longo de 2022 e 2023.
Projeto Sociobiodiversidade Amazônica no Acre: desenvolvimento do programa nacional de alimentação escolar (PNAE) para povos indígenas e comunidades tradicionais
Visitas de campo e metodologias participativas para discutir gênero e cadeias de valor no Amazonas.
O projeto Sociobiodiversidade Amazônica, da Associação Slow Food do Brasil, esteve em campo no Amazonas, com Bruno Franques e Zhamis Benício, em três comunidades parceiras, durante os dias 27 de junho a 13 de julho. Estas comunidades são as seguintes com suas respectivas associações: Peniel do Areal e representada pela Associação dos Produtores Orgânicos do Careiro da Várzea (APRORCAV); Brasiléia, rio Urupadi e Associação dos Agricultores Familiares do Alto Urupadi (AAFAU); Ilha Michiles, na Terra Indígena Andirá Marau e Associação dos Indígenas Sateré-Mawé da ilha Michiles e do Baixo Marau – Wepainug (nome em Sateré-Mawé desta Associação). A APROCARV se localiza no município do Careiro da Várzea e a AAFAU e Weipanug no município de Maués.


Nestas atividades foram desenvolvidas uma série de metodologias participativas nas atividades em grupo, como o World Café, Cartografia Social, Oficina de Ecogastronomia com os homens, entre outras. Somado a isso, ocorreu a aplicação de duas ferramentas de desenvolvimento de cadeias de valor sensíveis ao gênero, da Agência de Cooperação Técnica da Alemanha (GIZ) no Brasil: Mapeamento da cadeia de valor sensível ao gênero (Ferramenta 1) e Análise de gênero de uma organização de produtores e produtoras (Ferramenta 3). O material que descreve estas ferramentas pode ser encontrado aqui.




Outro documento importante cujo desenvolvimento teve início neste primeiro campo, foi o Protocolo para Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT), o qual abarca diversos pontos, como o detalhamento das práticas do modo de produção agrícola, acesso às políticas públicas, ao mercado, entre outros assuntos. Para isso, além das informações oriundas das reuniões promovidas, a visita aos sistemas agrícolas destas comunidades, com a aplicação das metodologias de Cartografia Social, Turnê Guiada e Observação Participante, foi uma etapa importante para melhor compreensão destas agriculturas.



Vale destacar as particularidades de cada uma destas comunidades. No Peniel do Areal, este grupo de agricultores e agricultoras familiares produzem abacaxi orgânico que possui certificação pelo Sistema Participativo de Garantia (SPG) Maniva. A qualidade deste abacaxi é conhecida na região, em especial em Manaus, onde os produtos são comercializados nas feiras orgânicas e convencionais da cidade. A produção orgânica de guaraná pelos produtores e produtoras da AAFAU – ribeirinhos e ribeirinhas que produzem de maneira tradicional – é atestada por meio de auditoria e tem ganhado destaque pela qualidade da produção. O produto, beneficiado e embalado como pó de guaraná orgânico, é comercializado na feira da Ufam em Manaus e está em processo de exportação para Europa. As atividades com a Weipanug, associação recém-criada no baixo Marau, na TI Andirá Marau do povo Sateré-Mawé, tem o destaque da inserção de produtores e produtoras individuais no edital da alimentação escolar indígena no município de Maués.


A aplicação destas ferramentas em campo pode contribuir com a identificação de restrições para o desenvolvimento destas associações de base, tendo um foco na questão de gênero. A partir da compreensão dessas restrições, esperamos criar estratégias para o enfrentamento das mesmas e assim traçar possibilidades de solucioná-las. Nesse sentido, reforçamos a importância da atuação em rede com demais instituições, governamentais e não-governamentais, para junto com estas associações, avançarmos com o desenvolvimento local.



Logo mais teremos novas atividades de campo e esperamos contribuir com novos passos com as comunidades. Para isso, devemos avançar com informações referentes às produções locais e possível fornecimento para os editais de compras públicas, seja ao município ou ao estado. Além disso, pretendemos fortalecer o catálogo Arca do Gosto do Slow Food na Amazônia, um método utilizado pela instituição para catalogar produtos com algum grau de ameaça de extinção.
A Associação Slow Food do Brasil estabeleceu uma parceria para o desenvolvimento do projeto Sociobiodiversidade Amazônica com o projeto Bioeconomia e Cadeias de Valor, desenvolvido no âmbito da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, por meio da parceria entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, com apoio do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha. Este projeto está acontecendo nos estados do Amazonas, Acre e Pará ao longo de 2022 e 2023.
Visitas de campo e metodologias participativas para discutir gênero e cadeias de valor no Amazonas.
Slow Food Brasil e parceiros apoiam o desenvolvimento da piscicultura familiar em Maués
Foto: Efraim Vasconcelos, técnico em recursos pesqueiros, apresenta um tambaqui juvenil crescido em um dos tanques construídos no Ifam, Maués.
Por meio de uma parceria com o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM, Campus Maués, o Slow Food Brasil tem apoiado o desenvolvimento da piscicultura familiar em Maués. Uma interação que começou com o projeto “Empowering Indigenous Youth and their Communities to Defend and Promote their Food Heritage”, desenvolvido em 2018 pelo Slow Food Internacional com apoio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola – FIDA na Terra Indígena Andirá Marau do povo Sateré Mawé e o curso técnico integrado de agroecologia do IFAM, campus Maués. Esse trabalho conquistou, em 2019, uma premiação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), na categoria “Educação Inclusiva e de Qualidade” que trouxe recursos que foram investidos na construção de tanques de piscicultura no campus do Instituto Federal em Maués.
No final de 2020, as escavações foram finalizadas e 4 tanques berçários foram construídos com tamanho de 12 metros de largura por 10 metros de comprimento. A proposta dessa estrutura é garantir o crescimento de pós-larvas de peixes em juvenis, para então serem distribuídos às comunidades atendidas através dos projetos de pesquisa e extensão do IFAM. Os tanques podem comportar cerca de 30.000 alevinos. As pós-larvas são oriundas do Centro de Treinamento, Tecnologia e Produção em Aquicultura (CTTPA) de Balbina, mantido pelo Governo do Amazonas, por meio da Secretaria de Pesca e Aquicultura (Sepa), que integra o Sistema Sepror (ADS, Adaf, Idam, Seapaf), local que possui a tecnologia adequada para esta reprodução, que ainda não existe na região de Maués. Por meio desta estrutura no IFAM, a distribuição de juvenis se tornou mais acessível neste município.
Somado a isso, o Instituto Federal em Maués tem desenvolvido outros projetos que têm contribuído para a difusão de tecnologias sociais para a criação de peixes. Estes projetos são: “Tecnologia social: Sistema multifásico de piscicultura familiar em planícies de inundação da Amazônia” e “Piscicultura de Igapó: Criação Alternativa De Peixes Amazônicos” que recebem, respectivamente, aporte do Programa Prioritário de Bioeconomia da Suframa, coordenado pelo IDESAM, e do próprio IFAM. Destacamos o trabalho com a Associação dos Indígenas Sateré-Mawé da ilha Michiles e do Baixo Marau – Wepainug (nome em Sateré-Mawé desta Associação). Recentemente, o IFAM Maués distribuiu 1.000 indivíduos jovens de tambaqui (Colossoma macropomum) para a criação em tanques escavados, tanques redes e sistemas bifásicos instalados na região do baixo Marau, na TI Andirá-Marau. Aqui há um texto sobre esse trabalho.
Esta soma de projetos possui também um caráter pedagógico, pois há relação com o curso de agroecologia para os jovens indígenas, em que alguns estudantes desenvolvem seus trabalhos de conclusão de curso em técnicas de piscicultura. O crescimento populacional na região e a redução de peixes durante o período da cheia do rio justificam a necessidade deste trabalho para fortalecer a segurança alimentar e nutricional da região, assim como, trazer possibilidades de geração de renda entre estes produtores e produtoras.

Para garantir o crescimento adequado destes juvenis de tambaqui é necessário o aporte de ração. Para isso, o professor Paulo Adelino, do Ifam Maués, desenvolveu em seu projeto de doutorado uma ração a baixo custo com produtos regionais e resíduos locais (veja aqui uma matéria sobre esta pesquisa). Com o uso de derivados da mandioca e vísceras de peixe é possível produzir uma ração que atenda a demanda nutricional destes peixes. O modo de fazer esta ração tem sido difundido entre os produtores para que estes tenham autonomia no processo de produção da mesma.
Por fim, esperamos que novos projetos possam fortalecer ainda mais esta cadeia produtiva do pescado em Maués, contribuindo para a segurança alimentar e nutricional na TI Andirá Marau e de outras comunidades da região.
Slow Food Brasil e parceiros apoiam o desenvolvimento da piscicultura familiar em Maués
Cajuí – Da conservação do Cerrado à cena gastronômica da capital federal
O cajuzinho do Cerrado é mais um exemplo de como o agroextrativismo é uma chave na conservação do cerrado. Para isso é preciso fortalecer a cultura alimentar como fundamento da gastronomia.

O cajuí é do tamanho de um polegar e, quando maduro, de cor intensa e brilhante entre laranja e vermelho. As características sensoriais do cajuzinho do cerrado são muito apreciadas na gastronomia. Acidez e doçura equilibradas, combinadas a uma textura fibrosa e adstringente fazem dele um versátil ingrediente tanto para receitas salgadas, quanto doces.
“A partir do momento que você corta o cajuzinho e tira o sumo, ele agrega o sabor do molho que você quer. Apesar de ser doce, é ácido e tem essa estrutura carnosa. Ele é muito fibroso e, ao mesmo tempo, suculento.” Pedagoga formada pela Universidade de Brasília e cozinheira por vocação familiar, Ana Paula Boquadi enveredou-se pelo caminho da educação ambiental e alimentação vegana baseada no uso dos frutos do cerrado com o objetivo de valorizar a cultura alimentar do bioma. Desde 2009, realiza cursos de cozinha onde ensina como usar ingredientes nativos do Cerrado. Entre 2014 e 2020 manteve o Buriti Zen, um restaurante com cardápio diário de refeições veganas e orgânicas. Logo que introduziu Cajuí nas receitas, o ingrediente virou uma das estrelas do cardápio, figurando em receitas tão diversas como moqueca, compotas e tortas doces.

Em 2017, por meio de atividades junto à comunidade do Slow Food Cerrado, Ana conheceu Dona Fióta e Seu Calisto moradores do Vão de Almas, comunidade localizada na cidade de Cavalcante na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, que faz parte do quilombo Kalunga. A cultura dos povos Kalunga tem mais de 300 anos de história e é de uma profunda conexão com a terra, vivendo sobretudo do agroextrativismo numa área de proteção em que o Cerra Cerrado é consevado. Vão de Almas faz parte da Fortaleza do Gergelim Kalunga da rede Slow Food Brasil. A semente, cultivada na região desde a fundação do quilombo, é muito usada para controle de formigas nas lavouras de mandioca, além do uso culinário (óleo e sementes torradas). O gergelim pelo seu alto valor gastronômico tem ajudado na renda da comunidade. Além dele, são comercializados fora do estado a cúrcuma e a pimenta de macaco.
O contato com essa comunidade transformou a forma de trabalhar da Ana. A mangaba e o cajuí também têm safras significativas nas comunidades Kalunga, porém são de difícil logística de comercialização. Percebendo esse gargalo, após o encontro com a comunidade, Ana passou a pensar nas receitas do restaurante como um projeto que incluía toda a safra do cajuí, uma vez que a comunidade não conseguia vender, nem escoar essa produção por conta própria. “Eu vi meu papel ali e me tornei um elo da cadeia de produção, de uma ponta à outra. Como Chef de cozinha e cozinheira ligava as pessoas às comunidades do Cerrado.”
Grupo de compras e protagonismo da comunidade
Com a pandemia em 2020 e o fechamento do restaurante da Ana, que passou a funcionar como buffet, foi preciso reinventar esse trabalho de apoio às comunidades que passou ao formato de grupo de compras. O esforço coletivo de cozinheiros e ativistas em Brasília que, como Ana Boquadi, trabalham com os frutos do cerrado e a divulgação da cultura alimentar da região acabou por popularizar os ingredientes e ajudou no escoamento dessas safras de frutos mais delicados que não tinham tanta demanda de mercado. Hoje, o cajuí protagoniza de pães a pratos principais nos restaurantes da capital federal.
Foi nesse processo que surgiu a ideia de um festival dedicado ao cajuzinho do Cerrado em Brasília. Ana explica o projeto, já aprovado, mas ainda em desenvolvimento: “A gente vai realmente mapear os produtores agroextrativistas. E esse é um trabalho que eu acredito ser minha missão profissional. Nada melhor que um festival para oferecer capacitação para as pessoas em relação à produção e conservação, e à diversidade de usos na cozinha do cajuí. E um dos objetivos é dar visibilidade e protagonismo às comunidades, para a gente poder alavancar políticas públicas para extrativistas. Fico imaginando e sonhando! O Brasil precisa desse sonho, de ver essas comunidades bem. A gente precisa/depende delas para ter água boa, para ter ar bom. O mínimo que a gente faz é consumir esses produtos, contar essa história e valorizar essas comunidades.”
Cajuí – Da conservação do Cerrado à cena gastronômica da capital federal
Biblioteca e Multimídia:
Moqueca de Caju
Rendimento: 4-5 porções
Tempo de preparo: 2 horas
Lembro muito bem da vez em que servi este prato para John Mackey quando esteve no Brasil. Na ocasião, ele estava visitando a Fazenda da Toca e fui convidada para preparar as refeições.
Ingredientes
1 kg de cajus frescos inteiros
2 limões
3 dentes de alho amassados
1 pimenta dedo-de-moça
½ pimenta jalapenho vermelha ou pimenta malagueta sem semente
½ colher de sobremesa de raiz de coentro picado
3 cebolas em rodelas
1 pimentão vermelho em rodelas
1 pimentão amarelo em rodelas
5 tomates maduros em cubos
Azeite extravirgem
Coentro fresco picado
Salsinha fresca picada
Folhas de manjericão
1 xícara de leite de coco fresco
1 colher de sopa de polvilho
Azeite de dendê (opcional)
Sal

Modo de preparo
- Prepare o caju: retire a pele e a castanha, corte a polpa ao meio e coloque em uma tigela.
- Para fazer a marinada, pique as pimentas (sem as sementes) e misture com o suco de limão, o alho amassado, a raiz do coentro, e metade das folhas de coentro e a salsinha. Verta a mistura sobre o caju e deixe marinar por 1 hora.
- Refogue a cebola com os pimentões (sem as sementes) e os tomates no azeite. Desligue o fogo, adicione o manjericão e ajuste o sal.
- Montagem: Em uma panela de barro, faça uma cama com a metade do refogado. Coloque o caju e, em seguida, o resto do refogado.
- Por último, coloque o leite de coco e cozinhe por 20 minutos em fogo baixo. Deixe a panela semiaberta.
- Finalize com azeite extravirgem, ou dendê, e coentro fresco.
- Sirva com arroz-cateto integral, farofa de banana e couve dourada.
Esta receita integra o Flora Comestível do Brasil – Receitas Vegetarianas.
Rita Taraborelli é cozinheira vegetariana, ilustradora e integrante do Levante Slow Food Brasil.
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Moqueca de Caju
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Novidades das Colunas
Cozinha afetiva de verdade
Apostar na simplicidade, no destaque do ingrediente bom, limpo e justo e na valorização do que nos cerca são o caminho da verdadeira cozinha afetiva.
Foto: Aline Guedes, por Wolas Fotografia
“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi com as mulheres quilombolas que compreendi que a cozinha e o cozinhar não deveriam ser vistos da forma complicada que sempre vi, pelos ensinamentos no curso superior de gastronomia.” Relembra Aline Guedes, que além de chef de cozinha é também professora de gastronomia e pesquisadora dos quilombos remanescentes do Estado de São Paulo.
A chef aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre trabalhou como cozinheira e percebendo o interesse da filha a incentivou no caminho. Tanto que à época do vestibular negociou com as donas das casas onde trabalhava, para que assim pudesse custear a faculdade de gastronomia da filha. Sem romantizar essa relação afetiva com a cozinha, Aline teve medo mas seguiu no curso. Já como professora de gastronomia quando conheceu o Slow Food, conta que logo entendeu a importância do movimento e incluiu a Arca do Gosto como tema do TCC de alunos da faculdade em que lecionava na época: “Foi algo que movimentou a instituição de uma forma que eu não imaginava. Os alunos todos começaram a entender os alimentos da Arca. A minha fala era de que se não cuidarmos agora não vamos ter para daqui uma, duas gerações e eu senti que eles ficaram aflitos mesmo, querendo fazer mudanças, e aí a gente começou a desenvolver a Disco Xepa na faculdade.” Uma verdadeira cozinha afetiva é essa que se baseia na construção de relações, no respeito e na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo comum.

Como professora, mulher preta e nascida na periferia de São Paulo, ela conta que ficou tocada quando uma aluna se identificou com ela e fez questão de lhe dizer pessoalmente o quanto a presença dela significava representatividade. Episódios que se repetem ainda hoje em diversos espaços por onde transita em sua vida profissional. “Questões de raça e gênero não podem ser descartadas na discussão atual acerca de como as cozinhas profissionais e escolas de gastronomia seguem reproduzindo os problemas estruturais da nossa sociedade, tais como racismo e machismo.” Para ela, a sua consciência de gênero e o letramento racial foram conceitos enraizados durante a pesquisa de mestrado dentro do quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Nos quilombos, a organização social é diferente e as comunidades são matrilineares onde além da linhagem de descendência materna, a liderança é feminina. Como explica Aline: “A matrilinearidade fomenta a preservação de ritos e rituais de comensalidade e a salvaguarda de alimentos ancestrais, por meio da repetição e transmissão de conhecimentos de geração em geração“.
Pensar no futuro da culinária e gastronomia brasileira exige olhar para a rica herança cultural que nos cerca e para as mulheres como as grandes guardiãs da nossa cultura alimentar. O trabalho de Aline como chef de cozinha vai nessa direção tendo como fio condutor a relação e o respeito. A chef que atua também como produtora de conteúdo de gastronomia na mídia e nas redes sociais tem um jeito leve de comunicar e usa das oportunidades e aprendizados, como, por exemplo, a recente especialização em vinhos para produzir conteúdos acessíveis: “Sinto que as pessoas que se interessam pelos conteúdos relacionados a vinhos pretendem aprender mais sobre essa bebida ancestral e que sentem pela minha fala, que o vinho é para todos”. É fundamental que mais profissionais levem para as cozinhas do Brasil a brasilidade e centralidade do papel de mulheres que são reverenciadas nas receitas de vó, no papel de mães, mas como profissionais permanecem marginalizadas.
Cozinha afetiva de verdade
A revolta dos malês e a comida baiana
por Patrícia Nicolau e Ednilson Andrade, integrantes do coletivo Antirracismo Slow Food
A revolta constituída de quase 600 homens, majoritariamente muçulmanos e africanos – por isso malê oriundo de imalê que, na língua iorubá, significa muçulmano – se deu na madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835, com o objetivo de conquistar a liberdade. Esse fato abre caminhos para um ciclo de grandes revoltas contra o regime escravista.
A cidade de Salvador era a região mais atuante do país e a imposição religiosa do catolicismo, naquele período, sobrepujava a fé natural desses homens, colocando-a em segundo plano. A ideia central era transformar a Bahia, em um território islâmico, controlado pela África e derrubar o governo vigente na época, através de um genocídio dos brasileiros presentes alí, fossem eles brancos, mulatos ou negros.
O plano elaborado nos mínimos detalhes, fora abortado por uma denúncia e fez as ruas da cidade ganharem outro cenário e a região de Água de Meninos – atual local da feira de São Joaquim – sendo esse o lugar da última batalha, revelando corpos que tentaram sobreviver à traição.
Uns embrenharam-se pelas matas e montanhas vizinhas;
outros salvaram-se a nado;
outros pereceram afogados;
outros enfim foram mortos pelos marinheiros
(Ignace, 1907, p.133)
Foram vários os destinos aos acusados pelo motim; prisão, prisão com trabalho, açoite, morte ou deportação para África para aqueles já libertos. A pena do açoite variava entre 300 a 1200 chibatadas, distribuídas em dosagens mas, claro que muitos morreram em meio à sentença. Com a pena de morte para 16 condenados, 12 conseguiram permuta e os outros 4 foram executados e, dessa forma, finda-se a revolta escrava mais turbulenta da história
Depois desse feito, já tendo sido noticiado em quase todo país, através dos jornais, a perseguição das autoridades para os africanos passou a ser redobrada e com punições desmedidas. Naquele período, Salvador abarcava em 78% da sua população, negros africanos, afro-descendentes e escravos livres. Os escravizados eram oriundos de diversas partes da costa africana. Mas, particularmente os envolvidos na revolta eram originários do Benin, sendo classificados, segundo a sua língua materna.
Precisamente, somavam-se 30% dos falantes de iorubá, sendo esses muçulmanos. Salvador tinha um economia debruçada na escravidão, os campos de cana-de-açúcar e fumo presentes na região do Reconcavo eram os monocultivos que sustentavam os mercados europeus e possibilitava a compra de escravizados.
Os negros desembarcados aqui eram destinados a todos os tipos de ofícios, do arrado à cozinha, e dos trabalhos manuais ao cenário urbano das ruas, sendo os pioneiros para o desenvolvimento do estado da Bahia, sobretudo a cidade de Salvador, assim como resgistra Manuel Querino, em sua obra, A arte Culinária na Bahia, ao citar com detalhes os oficios desenvolvidos na região.
E citando Querino, que retrata bem sobre a culinária da Bahia, os malês foram a principal influência para a formação da culinária baiana e brasileira mas, em contrapartida, viveram a realidade da insegurança alimentar, assim como podemos observar no mundo contemporâneo que vivemos. A não alternância nas variedades dos tipos de alimentos, causando o nutricídio que se estende até hoje, revelado em deficiências vitamínicas e diversas doenças crônicas.
A cultura alimentar islâmica se expandiu para diversas partes da Europa e África, fundamentando eixos bastante definidos e disseminando o uso de técnicas, comportamento à mesa e vários alimentos, entre eles o café, bebida de uso comum e social em diversas partes do mundo e é proveniente dos moldes islâmicos, em substituição à outras bebidas porque entre os muçulmanos, não se faz uso de bebida alcoólica.
Outro ponto de grande relevância adotado dessa cultura, como referencial na alimentação, é a relação da comensalidade, técnicas e diretrizes para o preparo e o cuidado higiênico sanitário com os alimentos, por isso as negras escolhidas para estarem à frente das cozinhas urbanas são as de origem muçulmanas ou com influências islâmicas.
Com certeza, a expansão islâmica deu formato às tradições usadas até hoje e consolidou mudanças em muitas relações do cotidiano rural e urbano, deixando um legado que direcionou conhecimentos e descobertas.