Se eu não comer bolo, o dia não acaba

O estado de Alagoas possui uma personagem absolutamente presente na vida das pessoas: a Boleira. Na verdade, trata-se de um corpo coletivo – as Boleiras das Alagoas, presentes em quase todos os municípios do estado, exercendo importante contribuição na manutenção dos sabores que fazem parte da cultura alimentar alagoana. Empregando poucos e simples ingredientes, muitas boleiras têm na venda dos bolos uma segurança financeira mínima. Mas, para além de contar com um dinheiro certo, as boleiras relatam que há algo de muito bom e digno em ser boleira. As boleiras são aguardadas por seus clientes e seus quitutes são ativadores de memórias e de pertencimento. Daí a frase do freguês – da boleira Eliana Gomes, em Santa Luzia do Norte, Alagoas –, que inspira o título deste texto: “Se eu não comer bolo, o dia não acaba”.

Bolos de Riacho Doce | Imagem de Nide Lins

Meu contato com as Boleiras das Alagoas foi um encontro quase casual: um trabalho de consultoria me levou de Brasília para Maceió, onde conheci os bolos e as boleiras. Ainda que o trabalho não tratasse especificamente deste tema, surgiram oportunidades de atividades junto às boleiras e, assim, pude visitar as cidades de Coqueiro Seco, Santa Luzia do Norte e Cacimbinhas, próximas a Maceió. Nessas localidades, ao conhecer algumas boleiras, veio a surpresa e o encantamento diante do ofício destas mulheres.

As Boleiras das Alagoas formam um grande corpo coletivo conectado por um ofício, que caminha no tempo e no espaço em silêncio, quase invisível, assistindo a mudanças políticas, econômicas, resistindo e caminhando ao lado da poderosa indústria agroalimentar. Nesse corpo coletivo, ainda que exista um sentimento de pertencimento a um grupo familiar constituído por parentes que mantêm laços de consanguinidade, a grande afinidade vem de uma família estendida, construída para si e para os outros. São personagens pouco observadas pelos historiadores locais, mas que estão presentes nas feiras, nas ruas, nas praças, nas praias, nas rodovias.

O bolo, que a maioria conhece, é uma comida produzida com um ou dois tipos de farinha, ovos, leite, gordura, açúcar e fermento. A partir daí, existem inúmeros sabores e variações… sem glúten, sem lactose, vegano. O bolo, digo, os bolos das Boleiras das Alagoas são de outra natureza, são anteriores à composição antes descrita, são bolos de macaxeira, de milho, de massa puba. Há também outras iguarias como o Grude, a Brasileira, a Tapioca e o Pé de Moleque – que não leva amendoim, como o Pé de Moleque de outras regiões do Brasil. À exceção do bolo de milho, todas as receitas têm por base mandioca e coco, sendo que o coco também contribui com o bolo de milho, pois a receita leva coco ralado e leite de coco. O açúcar também é marcante: apenas no Grude e na Tapioca não está presente.

Os bolos das Boleiras das Alagoas não têm um aspecto fofinho como os bolos industrializados, presentes nas prateleiras de supermercados e nas padarias brasileiras. Os bolos aos quais me refiro aqui apresentam outra estética. Em geral, têm uma massa mais compacta, textura firme, alguns ainda hoje são embalados em folha de bananeira. Uma proposta que causa estranhamento ao estrangeiro, mas que tem público fiel, que prefere e consome o sabor e a estética das Boleiras das Alagoas, há séculos. A profissão de Boleira, como a das Baianas do Acarajé, surge na necessidade de criação de trabalho e renda entre as mulheres negras recém libertas. É um ofício que percorre gerações até os dias de hoje, como relatam as boleiras quilombolas de Santa Luzia do Norte, uma das povoações mais antigas do Brasil, com registros de 1663.

Herdeiras das tecnologias indígenas para utilização da mandioca, a maioria das Boleiras das Alagoas utiliza o Forno de Bolo, que é uma atualização do complexo para a produção de farinha que conhecemos como Casa de Farinha. São estruturas construídas fora da casa, nos quintais ou mesmo anexos à casa. Há o forno propriamente dito, fabricados com uma trama de ripas e caibros roliços, com algumas áreas fechadas com barro e outras abertas, permitindo a entrada de ventilação natural. Por cima há uma parte lisa, em geral de metal, mas que já foi feita de pedra.

Forno | Imagem Sesc Alagoas

Há também aqueles que são feitos de tijolos, mas a estrutura é muito semelhante ao forno para torrar a farinha. Tradicionalmente, os bolos, assados apenas pelo calor na parte de baixo, podem ser virados para assar o outro lado ou ainda podem ser assados dentro do forno, do modo como conhecemos hoje. O espaço do Forno de Bolo é um ambiente que podemos interpretar como uma cozinha externa, com espaço suficiente também para ralar o coco, descascar e ralar a macaxeira, realizar o processo de pubagem – tecnologia indígena milenar que possibilita amolecer a raiz da mandioca ao colocá-la na água por três ou sete dias e, finalmente, preparar as diferentes massas de bolo. Há também as cozinhas menores, onde não se processa a massa puba, apenas se preparam e assam os bolos. Algumas boleiras relatam que suas mães ou avós faziam bolo apenas com duas pedras no chão e “um caco por cima”, uma pedra mais lisa onde o bolo seria assado.

A prática de processar a mandioca em toda sua extensão – produção de polvilho, puba ou farinha – é atividade que exige conhecimento e arte da convivência. Trata-se de um processo que toma tempo e energia de várias pessoas, pois são muitos os serviços, desde arrancar a mandioca da terra, lavar, descascar, ralar, espremer, torrar, peneirar. Há um dito popular: na farinhada, se chegar mil, mil trabalham. Lidar com a mandioca, como em várias práticas tradicionais, é algo gregário. Talvez o preparo da farinha tenha sido o espaço privilegiado para o diálogo intercultural entre indígenas e quilombolas que, em decorrência, criaram receitas que uniram as potencialidades da mandioca, goma e puba, com o coco, o melado e a rapadura do engenho.

Elaboração de bolos | Imagem Sesc Alagoas

Com ampla maioria de mulheres negras, as Boleiras das Alagoas se autodeclam pretas e pardas e carregam em seus corpos o saber fazer, o saber do sabor, o saber agregar e o saber lembrar de algo mais íntimo de suas comunidades. Os bolos produzem uma teia de diálogo e sustentabilidade nos territórios em que circulam. Os principais clientes são pessoas próximas, em bairros próximos, em municípios próximos. As vendas são feitas com auxílio das redes sociais, com destaque para o WhatsApp. Podem ser feitas com a entrega direta na casa do cliente ou o cliente buscando. A entrega pode ser feita de moto, de bicicleta ou a pé. Há também a venda terceirizada no mercadinho, no bar, nos restaurantes. Há venda nas feiras e nos carrinhos volantes que andam pelas ruas e nas areias das praias. Há pontos de venda próximo à igreja, no centro da capital Maceió, e há mulheres com seus tabuleiros de venda nas margens da rodovia que leva ao litoral norte de Alagoas.

Façamos agora um pequeno exercício de imaginação. O processo de confecção da massa puba, base de praticamente todos os bolos das Boleiras das Alagoas, é um processo de fermentação anaeróbia, isto é, sem contato com oxigênio. A macaxeira deve ficar imersa na água entre três e sete dias. E o que acontece? A macaxeira começa a apodrecer, crescem leveduras e bactérias que vão contribuir para quebra da glicose e irá transformar a raiz firme em uma massa manuseável. Esse processo de fermentação produz um odor forte e por isso a massa deve ser lavada várias vezes até perder o cheiro. Dito isso, voltemos a 1889: como teria sido a reação dos descendentes da casa grande diante desse processo de produção de uma comida? Quais os comentários? O que foi dito sobre aquele alimento? Nos convido a esse exercício porque não é difícil pensar em desqualificação e ofensas, inclusive porque podemos, atualmente, ouvir críticas e repulsa referentes ao cheiro forte da jaca ou do pequi, por exemplo. Acrescentemos ainda o componente mulheres pretas preparando esta comida para vender. Não é difícil adivinhar humilhação, desvalorização e outras violências sofridas tanto por quem preparava o bolo como por quem o consumia neste contexto.

A presença marcante das boleiras no cotidiano alagoano expressa uma estratégia bem sucedida para a garantia da manutenção e da resistência de seu modo de vida. Marcam protocolos e práticas da esfera doméstica, em que a manutenção e atualização do gosto operam como brechas para a conservação da memória. As Boleiras das Alagoas, com suas receitas que percorreram tempo e espaço, oferecem hoje memórias e sabores preciosos ao povo alagoano. Tal importância, por vezes, nem precisa ser verbalizada, está inscrita nos corpos, na repetição dos gestos para execução da receita, na língua que reconhece o sabor capaz de completar o dia: “Se eu não comer bolo, o dia não acaba”.

* Marta Aguiar de Souza ([email protected]) é Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília, Mestra em Estudos Rurais pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados nas Américas da UnB.

Comments:

Juliana
5 de março de 2024

Escreve tão bem.... Me senti lá em Alagoas....

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