A experiência do Protocolo de Descritivo de SAT em três comunidades do Amazonas 

Entrevista com Bruno Franques.

O projeto Sociobiodiversidade Amazônica acontece desde 2022 realizando atividades de formação com comunidades tradicionais de três estados Amazônicos: Acre, Amazonas e Pará. Ao todo, foram atendidas oito comunidades rurais de agricultoras e agricultores tradicionais, localizadas em Terras Indígenas ou em outros territórios ocupados por estas populações. O projeto visa desenvolver a bioeconomia em torno das cadeias de valor de produtos da sociobiodiversidade da região. 

Com o objetivo de diagnosticar, catalogar, registrar e desenvolver as cadeias de valor, foram trabalhados os principais produtos de cada comunidade. Desde a produção até a comercialização justa, que visa maior autonomia das comunidades sobre a própria produção e ajuda na permanência dos mais jovens na comunidade. Ao longo dos ciclos de atividades previstas, os técnicos do projeto em cada região visitaram as comunidades realizando pelo menos três idas a campo diferentes. Nas visitas, os técnicos participaram da colheita, do processamento dos produtos e do dia a dia das comunidades. Entre as atividades do projeto, destacam-se oficinas de educomunicação, planos de ação, oficinas de ecogastronomia e organização e execução, junto aos agricultores, de projetos para a concorrência a editais do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). 

Como finalização dos trabalhos de campo a equipe do Projeto Sociobiodiversidade Amazônica produziu relatórios que terão como resultado Protocolos Descritivos de Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT) de cada uma das comunidades participantes. Para conhecer um pouco mais do processo de elaboração dos protocolos, a partir das trocas que acontecem em campo entre agricultores da comunidade e técnicos do projeto, entrevistamos o técnico responsável por coordenar as atividades de campo no estado do Amazonas. Bruno Franques é sociólogo e antropólogo de formação, e é também educador e escritor, além de ser responsável por alguns dos mais belos registros fotográficos das idas a campo no Amazonas. Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Como foi a experiência de construir  o protocolo descritivo de SAT das comunidades participantes do projeto? 

Bruno: É sempre um desafio sintetizar tanta informação em um único documento. As experiências de campo foram incríveis, intensas e tão cheias de aprendizado que nos deixam com vontade de escrever muito mais, complementar as informações com percepções e relatos por vezes mais subjetivos. No entanto, o roteiro proposto é bem claro e objetivo, facilitando, na medida do possível, a identificação dos principais elementos a serem descritos. Além do mais, temos os relatórios e as inúmeras fotografias como complementares e assim o panorama vai ficando mais completo.

Em que você acha que o protocolo descritivo de SAT mais pode ajudar as comunidades com as quais trabalhou? Cite exemplos.

Bruno: Pergunta difícil em meio a tantas potencialidades. Mas, penso que podemos destacar três aspectos dos mais importantes:

1- Sistematização das etapas, atores e aspectos importantes da cadeia produtiva. O Protocolo de SAT em si é uma ferramenta bastante completa que norteia as atividades de campo e funciona como uma espinha dorsal que viabiliza e conecta todas as ações e propostas. O mapeamento das etapas e seu detalhamento traz à consciência e à atenção práticas ancestrais realizadas quase que mecanicamente por estarem tão enraizadas no próprio modo de vida de produtoras e produtores. Esse procedimento coloca lado a lado os saberes tradicionais e práticas mais recentes e inovadoras, como o beneficiamento e a comercialização, valorizando os conhecimentos tradicionais. Ao mesmo tempo, promove a inovação e a assimilação de novas técnicas. Estimular a reflexão sobre cada aspecto do processo contribui muito para identificar possibilidades de aprimoramentos levando a um melhor aproveitamento de tempo e recursos, com maior consciência e efetividade na conservação ambiental, com menos impactos negativos e mais atividades restaurativas. Tudo isso proporciona um aumento da produtividade, da diversidade e qualidade dos alimentos cultivados e, como consequência, promove um reposicionamento de mercado e oferta de produtos. Entre os inúmeros resultados, muitos deles incomensuráveis, temos alimentos mais bons, limpos e justos para todos.

EXEMPLO: Durante as atividades, produtores indígenas Sateré-Mawé da comunidade Ilha Michiles – em processo de retomada da produção tradicional de guaraná e com sua recém criada Associação – destacaram as plantas usualmente consorciadas na roça, identificando a possibilidade de aumento da diversidade, principalmente diante da demanda por alimentos para serem entregues à merenda escolar. Para tanto, a ferramenta do Calendário Estacional contribuiu bastante no planejamento das etapas da produção de acordo com os períodos de colheita e distribuição dos produtos para as escolas.

2- Elaboração participativa e pedagógica. Todas as etapas, atividades e interações em campo foram planejadas e executadas de maneira horizontal e colaborativa. Essas perspectivas proporcionam a experiência prática de colaboração comunitária, economia solidária e associativismo que consideramos essenciais e estratégicos. Trata-se de aspectos de uma postura que nos foi bastante exaltada pelas pessoas das comunidades, por nos colocarmos ao lado delas, ouvindo e levando em consideração suas propostas, demandas, expectativas e ideias. E, ainda, respeitando suas atividades do cotidiano, valorizando seus conhecimentos e saberes, sem tentar impor nada nem acharmos que temos “soluções incontestes”, ou modelos que devem ser seguidos. Com isso, além de conseguirmos maior receptividade e participação, mantemos os procedimentos abertos a contribuições e novas configurações, estimulando a inovação criativa em todos os sentidos. E mais: tudo isso aliado a ferramentas, metodologias e à própria perspectiva da educação dialógica, popular e comunitária, que proporciona a autonomia e continuidade de tudo o que juntos colocamos em movimento.

Circulo de Mulheres na comunidade da Brasileia. Fotografia: Zhamis Benício

EXEMPLO: Na comunidade ribeirinha da Brasileia, após o fim do projeto, foi criado um grupo de mulheres cuja principal ação foi uma horta coletiva e um grupo de jovens seguiu a mesma proposta metodológica dos encontros e também iniciou uma produção coletiva, no caso deles, uma agrofloresta.

3 – Estímulo ao envolvimento comunitário com destaque aos jovens e mulheres. Um dos focos do projeto Sociobiodiversidade Amazônica, para o qual utilizamos ferramentas da GIZ, além de algumas propostas que trouxemos de outras experiências, como o círculo de mulheres e as oficinas de educomunicação, foi a atenção e reflexão sobre como as mulheres e os jovens têm participado da vida comunitária. Desde as atividades produtivas, passando por processos de tomada de decisão, e ainda nas suas percepções sobre questões amplas e específicas, como demandas, projetos e aspirações. O empoderamento, respeito e construção de autonomia, autoconfiança e emancipação de jovens e mulheres, apesar da complexidade dos desafios e da transversalidade necessária acontecem facilmente, pois a força e potência de cada um e cada uma, muitas vezes precisa de poucos estímulos para aflorar, surpreendendo a todos, inclusive às próprias protagonistas.

Círculo de Mulheres em Careiro da Várzea. Fotografia: Bruno Franques

EXEMPLO: O grupo de mulheres da comunidade de Careiro da Várzea tem realizado ações coletivas de preparo de alimentos como forma de complementação de renda e seus encontros têm estimulado suas participações nas assembleias da Associação, o que resultou na indicação de mulheres para as principais funções, inclusive em cargos da gestão, para a agroindústria em fase de implementação.

Qual a importância, na sua opinião, de serem realizados protocolos descritivos de SAT dentro do contexto do Projeto Sociobiodiversidade Amazônica no estado do Amazonas?

Bruno: Além dos aspectos indicados acima, o fortalecimento, o empoderamento, a autossuficiência e a prosperidade das comunidades em destaque promovem o desenvolvimento local, estimulam comunidades vizinhas e indicam caminhos com grande potencial na busca por soluções para a questão amazônica em si e para a crise civilizatória e climática em geral.

Diante da crise civilizatória contemporânea e o colapso climático cada vez mais drástico, é urgente a identificação e promoção de soluções sustentáveis em todas as áreas, com destaque às questões ambientais e de segurança alimentar e nutricional. A região amazônica tem papel central por sua imensa sociobiodiversidade e empreendimentos ligados à bioeconomia têm sido [e devem continuar sendo] promovidos em diversos níveis. No entanto, o modelo centralizador e predatório continua pautando muitas dessas iniciativas, e junto com a morosidade em frear as práticas agrícolas e econômicas convencionais devastadoras, não têm apresentado soluções muito animadoras. Diante desse contexto, promover e destacar modelos bioeconômicos realmente sustentáveis a nível local é incontestavelmente um caminho promissor. Ainda mais considerando o grande potencial de capilarização regional e a promoção de culturas e modos de vida que sejam amazônidas, ao mesmo tempo em que fortalecem seus papéis de guardiões da sociobiodiversidade.

Zhamis Benício, agente de campo do PSA, ecochefe da culinária amazônica, confere o ponto de um dos muitos resultados de suas celebradas oficinas de ecogastronomia. Uma ótima estratégia foi levar os homens para a cozinha para que as mulheres pudessem participar de outras atividades. Fotografia: Bruno Franques
Entre uma roça e outra, os ribeirinhos do Alto Urupadi observam tudo com seus olhares apurados e conhecimentos profundos. Nada passa desapercebido. São momentos de monitoramento, vigilância e muito aprendizado para quem estiver por perto. Fotografia: Bruno Franques

Considerando suas experiências de campo durante o Projeto, conte um momento que considera marcante e explique o porquê  da escolha.

Bruno: No segundo campo, os grupos de trabalho formados pelas atividades “círculos de mulheres” nos apresentaram seus relatórios sobre os encontros, ações e impactos da proposta. Foi emocionante ler e ouvir relatos, com as palavras delas, sobre a profundidade das transformações postas em marcha, bem como sobre a força dessas mulheres, que precisavam de tão pouco para desabrochar de maneira tão potente! As lágrimas, que não puderam ser contidas, escorreram sobre nossos rostos e acabaram contribuindo para nos conectarmos ainda mais e seguirmos com o belo trabalho.

MULHERES FORTES

A partir de cima da esquerda para a direita em sentido horário: Maria Iracema de Oliveira exibe filhotes de quelônios, do projeto Pé de Pinche, da comunidade Brasiléia; Mirian Michiles, recém formada técnica em agroecologia pelo Instituto Federal do Amazonas (IFAM); Lucineia Silva em sua horta colhendo itens para o almoço pós puxirum (mutirão); Lucinéia Arcos Morais de Sousa, Juciele Arcos de Morais e Valcicleide Batista de Mesquita, da comunidade Renascer, em Careiro da Várzea exibem suas ilustrações para o projeto Arca do Gosto, do Slow Food. Fotografia: Bruno Franques

JOVENS EM AÇÃO

ENTREGA PNAE NA REGIÃO DO ALTO URUPADI

Fotografia: acervo AAFAU.

Outro momento muito emocionante foi ouvir o relato de José Cristo, liderança dos ribeirinhos da AAFAU, que destacava a importância da participação de produtores no PNAE Municipal durante o período extremamente difícil da seca de 2023. Com muitas comunidades relativamente isoladas pela falta de acesso fluvial, os produtos que eles entregaram foram complementos importantes para a alimentação das crianças durante a escassez. Os produtores se organizaram em puxiruns (mutirões) em todas as etapas, desde o plantio em áreas cedidas por um dos associados, passando pelo cuidado que incluía irrigação artesanal, até a colheita e a logística de entrega com longas caminhadas devido à seca. Tiveram assim o incentivo para o apoio comunitário mútuo e a manutenção de suas próprias roças e hortas, além da remuneração garantida pela compra pública. Ficamos especialmente tocados também porque inicialmente o grupo estava relutante em participar da chamada pública, depois que decidiu participar, ainda enfrentamos alguns entraves burocráticos, e no final quase ficaram de fora [do edital]. Com a nossa mobilização imediata e articulação política bem executada conseguimos reverter a situação e a associação foi contemplada em novo edital – que não teria sido publicado sem a nossa intervenção. Os resultados foram tão animadores que o grupo de mulheres da comunidade Brasileia, formado com nosso apoio, participou das entregas e planeja expandir sua produção coletiva para o próximo edital. Além delas, um grupo de jovens, criado seguindo o mesmo modelo, já está em fase de plantio de uma agrofloresta de olho no próximo PNAE.

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O projeto Sociobiodiversidade Amazônica é realizado pela Associação Slow Food do Brasil e integra Bioeconomia e Cadeias de Valor, desenvolvido pela Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, por meio da parceria entre o Ministério Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, com recursos do Ministério Federal da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento (BMZ) da Alemanha.

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