Diversidade, sabores e culturas
O turismo e a gastronomia selaram sua relação ao longo do século XX, quando o hábito de viajar incorporou-se no período de descanso. As férias e os meios de transporte mais eficientes fizeram com que os deslocamentos se tornassem comuns, resultando em um intenso fluxo de pessoas, circulando de um lado a outro.
Nesse ir e vir mais freqüente, o contato com novas paisagens, culturas e sabores despertou interesses variados em torno do evento turístico, e assim foi que a gastronomia ganhou lugar, sobretudo ao atrair um segmento de viajantes interessados em estimular seus sentidos através da experimentação da cozinha do Outro. Embora já fosse prática anteriormente, Culinary Tourism ou turismo culinário (também gastronômico) adquiriria essa nomenclatura somente no final dos anos 1990 (Long, 2004). O que mudou, a partir de então, foi a importância atribuída à gastronomia na viagem, sempre uma forma de experiência de contato com a diversidade cultural.
Conhecer pratos, ingredientes, comprar produtos, levá-los para casa… No retorno, a memória é cultivada em torno de imagens e sabores, preferencialmente compartilhados entre familiares e amigos, ressaltando a abertura ao novo e o contraste entre as práticas corriqueiras e aquelas até então desconhecidas, encontradas na viagem. Esse exercício pode ser entendido como uma espécie de manejo estético de códigos culturais, que mostra os limites entre nós e os outros, mas da forma habilidosa que é proporcionada pela comida.
A verdadeira comida do lugar
Com a multiplicação de destinos e opções, cresceu a importância de guias e roteiros de viagem. Segundo critérios bem variáveis, eles avaliam, analisam e recomendam passeios, nos mais diversos lugares do planeta, alimentando e sendo alimentados pelas novas imagens da gastronomia. Um exemplo evidente é o Guide Michelin, que, editado desde 1901, a partir dos anos 30 apresenta um formato próximo ao atual, oferecendo um repertório amplo de especialidades culinárias, monumentos e paisagens naturais como elementos determinantes da experiência turística.
Essa perspectiva acerta em cheio o imaginário dos habitantes urbanos, que desejam buscar uma realidade distinta de seu cotidiano. O campo adquire, então, um novo sentido: de rústico passa a romântico, tradicional, verdadeiro. Segundo Csergo (1998), a cozinha regional se difunde ao incorporar e construir uma percepção calcada no terroir, o espaço como definidor de identidade e qualidade à mesa. Não são poucas as regiões que se tornaram mundialmente reconhecidas a partir dessa perspectiva, como é o caso das regiões francesas da Borgonha e da Provença ou, na Itália, a Toscana e a Sicília.
Em casos como esses, segundo Bell e Valentine (1997), a cozinha regional construída a partir da herança cultural dialoga com as fronteiras e identidades territoriais solidificadas no imaginário popular, submetidas, contudo, a novos arranjos. A região é tanto produto da natureza como da cultura, e um poderoso meio de pensar quem somos.
Cozinhas regionais sempre existiram, mas algo mudou em sua interpretação. O deslocamento até a região, degustar in loco a comida de lá é parte dessa nova experiência. Ao voltar para a cidade, também é possível degustar os novos sabores, que podem ser preparados em casa ou consumidos nos restaurantes, embora o descolamento entre espaço e comida diminua a percepção de autenticidade. Território e especificidade culinária passam a dominar a idéia de cozinha regional e se transformam em estímulo aos viajantes, que saem da cidade em busca da verdadeira comida.
Turismo e gastronomia, desenvolvimento regional e identidade nacional
Não é de se estranhar que, diante desse fenômeno, cozinhas regionais mais ‘apagadas’ ganhem nova luz, processo que vem sendo observado em países em que há um turismo emergente que viabiliza, desse modo, uma revitalização econômica de áreas menos dinâmicas. Um exemplo recente é a Croácia, que, logo após a guerra de independência, entre 1990-1995, engajou-se em um projeto turístico de amplo espectro, em que um dos eixos fundamentais consistia em revitalizar cozinhas locais e apresentá-las ao turismo. E, tal como o projeto turístico desenvolvido na Croácia, vários outros casos, como as experiências da Bulgária, da Nova Zelândia, da África do Sul, do México, bem como da Argentina, poderiam ser mencionados como exemplos de emprego de turismo aliado à gastronomia como caminho para a revitalização econômica de certas regiões.
O Brasil ainda engatinha nesse segmento. Há uma grande variedade de cozinhas regionais, mas unir essas diferenças não necessariamente implica em mostrar o que define a cozinha brasileira, especialmente no sentido de um emblema.
Embora tenha força em nosso imaginário a idéia de mistura e convivência com a diversidade, sendo comumente ressaltadas as contribuições do negro, do índio e do português, bem como o convívio das distintas cozinhas herdadas de um sem número de imigrantes, a percepção de uma imagem de cozinha brasileira ainda não está clara.
Pode-se dizer que algo semelhante ocorreu no México. Naquele País, apesar da enorme variedade de sabores provenientes dos vários grupos que compõem a população local, apenas alguns elementos foram realçados, enquanto que muitos foram descartados no processo que instituiu a cozinha nacional, um projeto com articulações muito mais amplas do que um elenco de pratos e receitas tradicionais particulares de uma região.
Esse processo nos lembra que estamos diante de duas diferentes perspectivas. Uma é a necessidade de aprofundar o conhecimento em torno das particularidades das cozinhas regionais, sua relação com o espaço e comunidades. São estudos com esse foco que irão permitir entender as dinâmicas culturais locais e sua articulação com o plano nacional. Outro aspecto diz respeito à construção de um emblema e de seu uso para explorar um viés comercial, de modo a oferecer um produto turístico. O símbolo, como no caso de alguns países, pode até ser decorrente da crescente força do turismo. Mas permanece em aberto o debate: O que define a culinária brasileira? Há turismo gastronômico no Brasil? São questões ainda não respondidas.
Referências
BELL, David; VALENTINE, Gill. Cosuming geographies. London: Routledge, 1997.
CSERGO, Julia. A emergência das cozinhas regionais. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
LONG, Lucy M. Culinary Tourism. Kentucky: The University Press of Kentrucky, 2004.
* Janine Collaço é antropóloga e professora do Centro de Excelência em Turismo da UnB.