Era uma manhã de domingo nublada, um pouco chuvosa. Final de outubro, outono em Madrid. Algumas das principais ruas do centro da cidade seriam tomadas por multidões, de ovelhas e de pessoas. As primeiras, acompanhadas por pastores, desceriam pela imponente Calle de Alcalá em direção ao Palácio de Cibeles. Um inusitado mar de ovelhas, pontilhado por algumas cabras. Fiesta de la Transhumancia.
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Naquela área do centro de Madrid, antes das 12h, as ruas estavam quase desertas. O tráfego de carros havia sido interrompido. Agentes de polícia orientavam moradores e turistas, que chegavam aos poucos, alguns com seus guarda-chuvas abertos. Logo lotariam as calçadas que ladeiam a rua por onde se daria o desfile.
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À frente do cortejo, grupos de pessoas, famílias que praticam o pastoreio nas regiões de Léon e Castilla, correspondentes ao antigo Consejo de la Mesta, criado no século XIII. Homens, mulheres e crianças, gente de todas as idades, vestindo trajes regionais, carregando faixas e bandeiras que marcam seus locais de pertencimento e/ou expõem suas mensagens. Nas mãos, objetos de trabalho e instrumentos musicais. Cantam e dançam. Entre as mulheres, várias carregam cestas contendo doces e bolos, oferecidos às crianças que assistem ao desfile e a quem mais os queira provar.
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Na sequência, levando cajados e alforges, pastores vêm acompanhando o rebanho, composto majoritariamente por ovinos, mas também por caprinos, respectivamente das raças merina e retinta – raças autóctones, como característico no pastoreio extensivo. No dia seguinte, a imprensa reportaria a participação total de 1400 pequenos ruminantes. Marchavam com aparente tranquilidade, como se fosse habitual fazê-lo por avenidas e praças, com gente por todos os lados. A multidão de humanos da cidade não escondia sua admiração. Podia-se notar talvez quase tantos telefones celulares ou máquinas fotográficas em ação quanto pessoas adultas presentes. Na primeira fila dos expectadores, crianças, desde as mais pequenas, eram estimuladas a interagir com as estrelas do evento, que recebiam seus afagos.
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Etimologicamente, o termo tem origem no latim, a partir da união do radical trans (além de) com humus (terra). Buscando no dicionário, temos como um significado da transumância a migração periódica de rebanhos para as montanhas durante o verão e seu retorno à planície quando o inverno se aproxima. A mobilidade dos rebanhos ao longo do ano, em busca de melhores condições climáticas e de alimentação, é prática que compõe formas tradicionais de pastoreio. Na Península Ibérica, há referências a sua existência desde tempos pré-históricos, ainda que a historiografia sobre o tema contextualize os estudos a partir da Idade Média.
Ao longo do tempo, a atividade pastoril perdeu importância no país, sendo que a partir do século XIX, com a introdução das estradas de ferro, o transporte de animais passou a ser realizado por esse meio, depois também por caminhões. No entanto, mesmo em um quadro de decadência da prática, há registro de que nos anos 1950 o transporte de parcela do rebanho ovino, especialmente merino, seguia sendo realizado a pé.
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A partir de 1994, por iniciativa de uma associação de pastores – denominada Trashumancia y Naturaleza –, a tradição vem sendo renovada, com a celebração, a cada último domingo de outubro, da Fiesta de la Trashumancia. O evento se propõe a divulgar a cultura pastoril associada à criação extensiva, considerada – diferentemente das produções intensivas, cujos danos ao meio ambiente vem sendo, nas últimas décadas, amplamente evidenciados – importante para a sustentabilidade ambiental e conservação da biodiversidade e das paisagens.
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O movimento instituído em 1994 inscrevia-se no processo de mobilização que resultaria, no ano seguinte, na lei das vias pecuárias (Lei 3/1995), então definidas como “rotas ou itinerários pelos quais tradicionalmente passa ou já passou o tráfego de gado”. As vias pecuárias foram então reconhecidas como Bens de Domínio Público, de titularidade das Comunidades Autônomas – daí ocorrer, durante a programação da Fiesta de la Transhumancia, uma solenidade em que os pastores pagam, ao governo de Madrid, uma taxa a propósito da utilização das vias pecuárias. Já em 2017, um decreto do governo espanhol declararia a Transumância como Manifestação Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial do país.
A celebração da transumância evidencia que, na Península Ibérica, para além da produção de lã, leite e carne, ao modo tradicional de pastoreio e ao sistema de integração entre humanos e não humanos nele envolvido são associados também benefícios ao planeta. As pessoas que, em Madrid, acolhem rebanhos e pastores parecem saber disso. Especialmente as crianças. E é esse o contexto em que tem sido construída a candidatura da Transumância a Patrimônio da Humanidade, a ser apresentada à UNESCO.
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Para saber mais sobre o assunto, vale, entre outros: visitar o sítio da associação Trashumancia y Naturaleza; acessar as informações sistematizadas pelo Slow Food España; bem como o livro La Transhumancia em España, produzido pelo Ministerio de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente de España. As fotos aqui publicadas são de autoria de Renata Menasche.
Renata Menasche é antropóloga, professora do PPGAnt/UFPel e do PGDR/UFGRS, realiza estágio de pós-doutoramento junto à UNED, em Madrid. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação, Consumo e Cultura – GEPAC.