Cozinha afetiva de verdade

Apostar na simplicidade, no destaque do ingrediente bom, limpo e justo e na valorização do que nos cerca são o caminho da verdadeira cozinha afetiva.

Foto: Aline Guedes, por Wolas Fotografia

“Nos quilombos em que estive, foi com as mulheres, quase sempre no ambiente da roça ou da cozinha, que fui tomada  pelas histórias que generosamente elas me contaram e ali percebi a transmissão de seus conhecimentos e vivências. Histórias cercadas de luta, resiliência, força e muito afeto e respeito pela comida. Foi com as mulheres quilombolas que compreendi que a cozinha e o cozinhar não deveriam ser vistos da forma complicada que sempre vi, pelos ensinamentos no curso superior de gastronomia.” Relembra Aline Guedes, que além de chef de cozinha é também professora de gastronomia e pesquisadora dos quilombos remanescentes do Estado de São Paulo. 

A chef aprendeu a cozinhar com a mãe, que sempre trabalhou como cozinheira e percebendo o interesse da filha a incentivou no caminho. Tanto que à época do vestibular negociou com as donas das casas onde trabalhava, para que assim pudesse custear a faculdade de gastronomia da filha. Sem romantizar essa relação afetiva com a cozinha, Aline teve medo mas seguiu no curso. Já como professora de gastronomia quando conheceu o Slow Food, conta que logo entendeu a importância do movimento e incluiu a Arca do Gosto como tema do TCC de alunos da faculdade em que lecionava na época: “Foi algo que movimentou a instituição de uma forma que eu não imaginava. Os alunos todos começaram a entender os alimentos da Arca. A minha fala era de que se não cuidarmos agora não vamos ter para daqui uma, duas gerações e eu senti que eles ficaram aflitos mesmo, querendo fazer mudanças, e aí a gente começou a desenvolver a Disco Xepa na faculdade.” Uma verdadeira cozinha afetiva é essa que se baseia na construção de relações, no respeito e na capacidade de unir as pessoas em torno de um objetivo comum. 

Aline e os alunos da faculdade de gastronomia durante a Disco Xepa. Foto: Arquivo pessoal.

Como professora, mulher preta e nascida na periferia de São Paulo, ela conta que ficou tocada quando uma aluna se identificou com ela e fez questão de lhe dizer pessoalmente o quanto a presença dela significava representatividade. Episódios que se repetem ainda hoje em diversos espaços por onde transita em sua vida profissional. “Questões de raça e gênero não podem ser descartadas na discussão atual acerca de como as cozinhas profissionais e escolas de gastronomia seguem reproduzindo os problemas estruturais da nossa sociedade, tais como racismo e machismo.” Para ela, a sua consciência de gênero e o letramento racial foram conceitos enraizados durante a pesquisa de mestrado dentro do quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo. Nos quilombos, a organização social é diferente e as comunidades são matrilineares onde além da linhagem de descendência materna, a liderança é feminina. Como explica Aline: “A matrilinearidade fomenta a preservação de ritos e rituais de comensalidade e a salvaguarda de alimentos ancestrais, por meio da repetição e transmissão de conhecimentos de geração em geração“. 

Pensar no futuro da culinária e gastronomia brasileira exige olhar para a rica herança cultural que nos cerca e para as mulheres como as grandes guardiãs da nossa cultura alimentar. O trabalho de Aline como chef de cozinha vai nessa direção tendo como fio condutor a relação e o respeito. A chef que atua também como produtora de conteúdo de gastronomia na mídia e nas redes sociais tem um jeito leve de comunicar e usa das oportunidades e aprendizados, como, por exemplo, a recente especialização em vinhos para produzir conteúdos acessíveis: “Sinto que as pessoas que se interessam pelos conteúdos relacionados a vinhos pretendem aprender mais sobre essa bebida ancestral e que sentem pela minha fala, que o vinho é para todos”. É fundamental que mais profissionais levem para as cozinhas do Brasil a brasilidade e centralidade do papel de mulheres que são reverenciadas nas receitas de vó, no papel de mães, mas como profissionais permanecem marginalizadas.

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