Sistema Agroflorestal Doceiro: salvaguarda de uma tradição

Ao sul do Rio Grande do Sul, a formação social do que foi a Antiga Pelotas – que atualmente abarca os municípios de Pelotas, Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo e Turuçu –, território originariamente povoado por índios Tapes,­ pertencentes à família linguística Tupi Guarani, é marcada por uma dubiedade. Nas áreas planas, em que se desenvolveu a indústria charqueadora, de propriedade de portugueses e luso-brasileiros, movida por trabalho escravo, há a presença do latifúndio estancieiro pecuarista. Já nas áreas que conformam a Serra dos Tapes, em que escravos fugidos das charqueadas constituíram quilombos e em que, a partir do final da década de 1840, deu-se o assentamento de imigrantes de origem europeia – alemães, pomeranos, italianos, franceses, espanhóis, dentre outros –, os colonos, a paisagem é composta por pequenas propriedades policultoras.

Na região, prosperou uma tradição doceira, constituída por duas distintas vertentes, a dos doces finos e a dos doces coloniais. Enquanto a primeira, inspirada na doçaria portuguesa, tem origem no ambiente de opulência e requinte que caracterizou a prosperidade – constituída a partir de trabalho escravo – de estâncias e charqueadas, a segunda tem raízes camponesas, associada a práticas de aproveitamento e conservação de frutas e a saberes trazidos por imigrantes. É ao contexto referente aos doces coloniais que o olhar será aqui conduzido.

Os doces de frutas, ou doces de tacho, têm sido produzidos pelas famílias rurais da Serra dos Tapes praticamente desde que ali se instalaram. São compotas, doces de massa, passas, cristalizados e glaciados, elaborados especialmente a partir do cultivo do pêssego, mas também da uva, do figo, da goiaba, da laranja, da maçã, da pera e do marmelo.

Doces de frutas: marmelada branca, passas de goiaba, figo cristalizado, passas de pêssego (foto da autora)

O saber-fazer de compotas e conservas teria sido parte da bagagem de imigrantes franceses e italianos, enquanto que o referente ao fabrico de geleias e schmiers – doces pastosos usados para passar no pão, elaborados a partir das frutas disponíveis e de outros ingredientes, como batata doce ou abóbora – teria sido trazido por alemães e pomeranos. Mas se, em um primeiro momento, houve contribuições distintas dos diversos grupos étnicos que povoaram a região, a partir de sua interação constituiu-se o que se pode considerar uma cultura camponesa compartilhada (Seyferth, 1994), em que estão inseridos os saberes e práticas relativos à produção e ao consumo de doces coloniais.

Inicialmente, os doces coloniais eram destinados apenas ao consumo familiar, mas há registros que indicam que desde o final do século XIX têm sido comercializados. Tendo por principal produto a compota de pêssego, desenvolveram-se na região pequenas fábricas artesanais. Essa indústria rural de conservas teve grande expansão no período compreendido entre 1950 e 1970, quando, pressionada pela concorrência e por uma legislação sanitária concebida a partir dos parâmetros e interesses da grande indústria agroalimentar, entrou em declínio.

Os doces coloniais produzidos artesanalmente estão presentes à mesa das famílias rurais da região e circulam entre seus vizinhos e parentes, como dádiva. As famílias produtoras também se valem da capilaridade das redes de vizinhança e parentesco para constituir mercado e abastecer consumidores que estão distantes, na cidade. Os conhecimentos associados a seu fabrico são transmitidos de geração em geração, movimento em que são traçadas linhagens de doceiras e doceiros, alicerçadas em reputações construídas a partir de sabores específicos.

Assim como seu consumo, inserido nas práticas alimentares dessas famílias rurais, a produção artesanal de doces coloniais está inscrita em um modo de vida, que confere sentido ao emprego de certas técnicas – como a secagem ao sol – e de determinados equipamentos e utensílios – como tachos de cobre, colheres de pau e fogão a lenha. Tais técnicas e artefatos, percebidos pelas famílias doceiras como característicos do modo de fazer tradicional, aprendido com os antepassados, estão em desacordo com a padronização imposta pelas normas sanitárias, que ameaçam sua continuidade. Têm, ainda, sido identificados outros tipos de problema, como é o caso da dificuldade de cultivar marmelo, que tem ocasionado falta de frutas para produção da marmelada branca.

É nesse contexto, e nos marcos do reconhecimento – dado em 2018 – da tradição doceira de Pelotas e Antiga Pelotas como patrimônio cultural imaterial brasileiro, que se coloca como desafio o processo de elaboração do plano de salvaguarda da produção artesanal de doces coloniais. E, nele inserida, no município de Morro Redondo e com apoio do poder público local, levada a cabo por um grupo de famílias produtoras e um conjunto de instituições que, em perspectiva multidisciplinar, atuam em pesquisa e extensão em âmbito regional, a experiência de construção de uma proposta articulada em torno da ideia de um Sistema Agroflorestal Doceiro, o SAF Doceiro.

Encontro de planejamento do SAF Doceiro, em 2019 (foto de Adriane Lobo)

Em um primeiro momento da iniciativa, durante o segundo semestre de 2019, as ações se deram no sentido do desenho e implantação, em processo coletivo de discussão e trabalho, de um Sistema Agroflorestal demonstrativo voltado à prática doceira, integrando espécies da mata nativa regional com árvores frutíferas – sendo aí incluído o marmelo, em outros tempos de presença comum na região – e cultivos temporários. Os agricultores e agricultoras produtores de doces indicaram as espécies que deveriam ser contempladas no desenho do SAF Doceiro, a partir do levantamento das necessidades a serem supridas: diferentes espécies de frutas, madeiras próprias à produção de utensílios, madeira combustível para o cozimento dos doces, buchas para lavar os tachos… A partir daí, as mudas foram obtidas junto a produtores ou através das instituições parceiras. À medida que o SAF Doceiro Demonstrativo foi sendo implantado, as mudas excedentes obtidas foram distribuídas entre as famílias doceiras participantes do processo, de modo a possibilitar o início da multiplicação de SAFs Doceiros, processo retardado, a partir de março de 2020, com o advento da pandemia de COVID-19.

No que diz respeito à salvaguarda da tradição dos doces coloniais, os entraves colocados pela legislação sanitária inadequada à produção artesanal deverão ser equacionados e confrontados. A experiência representa passo significativo no processo de garantia da biodiversidade associada ao SAF Doceiro e deverá expandir-se após superada a situação de distanciamento social imposta pela pandemia.

Estruturação do SAF Doceiro, em 2019 (foto de Adriane Lobo)

Bibliografia consultada

GEPAC. Site Saberes e Sabores da Colônia. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/saberesesaboresdacolonia/

KRONE, Evander Eloi. Da colônia ao sertão. Um estudo antropológico sobre conflitos na construção da qualidade dos alimentos entre famílias rurais do Nordeste e do Rio Grande do Sul. 278f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018.

MENASCHE, Renata (Org.). Saberes e sabores da colônia: alimentação e cultura como abordagem para o estudo do rural. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2015.

RIETH, Flávia et al. Inventário Nacional de Referências Culturais: produção de doces tradicionais de Pelotas – relatório final. Pelotas: Ed. UFPel, 2008.

SALAMONI, Giancarla; WASKIEVICZ, Carmen Aparecida. Serra dos Tapes: espaço, sociedade e natureza. Tessituras, Pelotas, n. 1, p. 73-100, 2013.

SEYFERTH, Giralda. A identidade teuto-brasileira numa perspectiva histórica. In: MAUCH, Cláudia; VASCONCELLOS, Naira (Org.). Os alemães no sul do Brasil. Canoas: Ulbra, 1994.

* Renata Menasche ([email protected]) é antropóloga, professora da Universidade Federal de Pelotas e integrante do grupo que se dedica à salvaguarda da tradição doceira desta região. Coordena o GEPAC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação, Consumo e Cultura.

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