Como nasceu e o que pretende o projeto do Slow Food que chama atenção para os produtos tradicionais em risco de extinção.
O projeto da Arca do Gosto nasceu há alguns anos à mesa do jantar. Onde mais poderia nascer? Estávamos, um grupo de colegas do Slow Food e eu, jantando num dos melhores restaurantes do Piemonte, o Guido di Costigliole, localizado em um belíssimo prédio neogótico do século XIX, em Pollenzo, na Itália. O restaurante é conhecido pela cozinha escrupulosamente piemontesa e pelo cuidado meticuloso com que escolhe as matérias-primas. Um dos pratos mais famosos era, e continua sendo, o pimentão recheado. Trata-se de um rolinho de pimentão, cozido ao forno, recheado com creme de atum, alcaparras, anchovas e outros ingredientes. O segredo do prato, aparentemente muito simples, está no sabor doce e na textura do pimentão.
Naquela noite, no entanto, percebemos que ele não estava tão suculento. Ao comentarmos com Piero Alciati, filho de Guido, ele nos explicou que seus fornecedores, os agricultores de Motta, um vilarejo na outra margem do Rio Tanaro, com terrenos aluviais ideais para a horticultura, preferiam cultivar bulbos holandeses de tulipas em vez de pimentões: menos trabalho e maior lucro. E, ironia do destino, os pimentões da Itália vinham da Holanda. Cultivados em estufa, vendidos por um preço tão baixo que os agricultores da Província de Asti não conseguiam competir.
Tal informação chamou nossa atenção e ruminamos muito a respeito. Era como se um curto-circuito tivesse perturbado nossa tranquilidade de gastrônomos democráticos, atentos ao meio ambiente, abertos ao mundo, mas sempre gastrônomos. Ou seja, egoisticamente setoriais.
A questão do pimentão obrigava-nos a tomar consciência dos efeitos devastadores da globalização, também para a gastronomia. O tema “globalização”, naquela época – 15 anos atrás –, não era tão debatido como é hoje. Era um assunto de interesse restrito a economistas e burocratas. E de poucos e raros visionários. Não nos dávamos conta de que a globalização ameaçaria, ou pior, já ameaçava, a qualidade de nosso próprio alimento cotidiano, nosso prazer alimentar. Um verdadeiro gastrônomo tinha de começar a se importar com essas questões. Não podia continuar se preocupando apenas com a mesa. Enfim, tinha de se interessar por agricultura também.
Foi assim que nasceu a ideia da Arca do Gosto. A metáfora é evidente. Achamos que era urgente conscientizar o maior número de consumidores possível sobre os produtos tradicionais em risco; explicar que as pequenas produções agroalimentares estavam ameaçadas pelos interesses da agricultura industrial, por preços excessivamente baixos, pela facilidade da troca. De qualquer forma, era necessário resistir ao dilúvio da uniformização e, para isso, era preciso salvar o salvável, embarcar na arca ideal os produtos excelentes que ainda existiam.
Começamos, então, a reunir informações, embora de forma bastante esporádica, sobre as pequenas produções, as excelências esquecidas. Mas não era o caminho certo. Não podia ser apenas um trabalho interno do Slow Food. Resolvemos, por isso, envolver outros companheiros de luta, dando início a uma pesquisa e a uma catalogação. Em 1996, um grupo de intelectuais reunidos em Serralunga d’Alba redigiu o Manifesto da Arca. O documento, mais que estabelecer regras, lançava um alerta, denunciava um problema. Era um ato de boa vontade, mais que qualquer coisa. Carlo Petrini, num artigo na revista Slow, enfatizou esse ponto fraco do projeto. “Estamos começando uma viagem longa e tempestuosa, mas há certa confusão sobre a estrutura que deve flutuar. Uns falam sobre critérios de seleção; outros, humildemente, trazem um queijo. Um único, muito especial para o produtor. Outros, ainda, ampliam o tema e falam sobre a ordem natural, os genes modificados e seus engenheiros degenerados.”
Por isso, resolvemos dar corpo a nossa ideia, estabelecendo regras e pautas, indicando um caminho ideal para o projeto. No inverno de 1999, isolada num vilarejo toscano enterrado na neve e regularmente abastecida de pici e ribollita, a Comissão Científica da Arca foi nomeada oficialmente, depois de um encontro de três dias – lindo, mas ao mesmo tempo extenuante –, e identificou as categorias de produtos e os critérios de seleção. O primeiro critério é a excelência gastronômica, o elemento que distingue o trabalho da Arca de outras associações ambientalistas ou dos bancos de germoplasma. É um conceito mais abrangente, complexo, relativo, mas o Slow Food não pode evitar enfrentar esse desafio intelectual. Um desafio que nos obriga a degustar um produto com todos os sentidos e com a cabeça, para avaliar a complexidade e o equilíbrio, a tipicidade e a história (o “retrogosto histórico”, do qual fala o historiador Massimo Montanari).
O segundo é o vínculo com o território, outro elemento fundamental. Os produtos da Arca são especiais porque estão ligados à história e às condições climáticas de uma região. Muitas vezes se adaptaram a condições extremas (alta montanha, escassez de água), não podendo, portanto, ser replicáveis em outros lugares.
Esse vínculo tem bases científicas (existem catálogos de espécies, variedades, ecotipos; livros genealógicos de raças autóctones etc.), mas também é, sobretudo, um vínculo social, histórico, ambiental. Um queijo tem um significado cultural. Sua importância se reflete na arquitetura rural, no cuidado com os pastos, no bem-estar dos animais, no artesanato de madeira, nas tradições das pessoas. Outros dois critérios são o caráter artesanal – os produtos industriais podem ser reproduzidos em qualquer momento e em qualquer lugar – e o tamanho dos empreendimentos. Podem entrar na Arca somente os produtores com empresas médias ou, melhor, pequenas; de preferência, familiar. O último critério é o risco de extinção: às vezes é real (ano após ano registra-se uma queda produtiva, empresas são obrigadas a fechar, há diminuição dos animais de uma raça). Outras vezes é potencial, pois esses sistemas produtivos – pequenos e locais – são muito frágeis e podem ser prejudicados por fenômenos incontroláveis: mudança climática, desastres naturais, variação repentina do mercado.
Uma vez estabelecidos os critérios, começou o trabalho: o Slow Food indica os produtos – fornece fichas, telefona e envia amostras para degustação – e a Comissão faz a seleção. Os primeiros passageiros da Arca multiplicaram-se, chegando rapidamente aos mais de 1.000 produtos atuais. Nestes 16 anos, a Arca do Gosto viajou por todos os continentes e aportou em 60 países. Nessas andanças já percorreu quase todas as letras do alfabeto: do Afeganistão à Venezuela.
Do Afeganistão, a Arca abriga as uvas-passas Herat abjosh. Consideradas as melhores do mundo, as passas Herat abjosh quase desapareceram, ameaçadas por guerras e pela diminuição dos métodos tradicionais de produção. De Barlovento, na Venezuela, vem o excepcional cacau Carenero – cruzamento entre as variedades Trinitário, Forastero e Criolo. Atualmente, a nau de proporções ilimitadas conta com 1.066 produtos. O milésimo integrante, o damasco Shalakh, vem da Armênia e se juntou à viagem em meados do ano passado. Cultivado nas encostas do Monte Ararat há mais de 3.000 anos, o damasco Shalakh tem consistência macia, é doce e suculento. Enfim, um perfeito companheiro de viagem. O Brasil conta com 24 produtos na Arca do Gosto. Do berbigão à farinha de batata-doce Krahô, que você vai conhecer a seguir.
Babaçu
Com o óleo extraído do coco do babaçu (Orbignya speciosa) se faz muita coisa: sabonetes, cosméticos diversos, além de gorduras especiais e óleo de cozinha, cujo aroma se assemelha ao de avelã. Os cocos pequeninos são coletados das palmeiras e quebrados pelas “quebradeiras de babaçu”, espalhadas pelas regiões mais pobres do Brasil. A produção de babaçu concentra-se no norte do Tocantins, no Pará e no sul do Maranhão. Neste Estado, mais de 1.500 famílias de agricultores e extrativistas dependem economicamente do babaçu e de seus derivados.
Berbigão
É conhecido por diversos nomes: papa-fumo, pedrinha, samanguaiá, sarro-de-peito, marisco-da-areia, vôngole, maçunim e, o mais popular, berbigão. Os nomes curiosos pertencem ao Anomalacardia brasiliana, molusco bivalve encontrado ao longo de quase toda a costa brasileira. Para os pescadores que fazem parte da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé, em Santa Catarina, o berbigão é particularmente importante: além de fonte de renda para diversas famílias, é o ingrediente-chave de uma sopa tradicional.
Farinha de batata-doce Krahô
Produzida pelos índios craós, a farinha de batatadoce é feita segundo métodos e tradições muito antigos. Os índios craós vivem em 16 aldeias da reserva situada no Cerrado do Tocantins. O preparo da farinha começa na estação da seca, de abril a junho. Diversas variedades de batata-doce são cozidas, socadas e amassadas com as mãos. Em seguida, a massa é posta para secar sobre esteiras de catu, uma palmeira local, por cerca de três dias. A farinha dura mais de um ano e é usada para preparar cremes, acrescentando água, leite de vaca ou leite de coco e mel.
Mangaba
“Coisa boa de comer.” Assim foi batizada a mangaba (Hancornia speciosa), palavra de origem indígena que vem de mã’gawa. Fruta nativa do Brasil, a mangaba é comum no Nordeste, especialmente em áreas de restinga, no Cerrado e em parte da Amazônia. Cresce em solo arenoso e pobre, mas dá um fruto apetitoso, bom para suco, sorvete, geleia, compota e licor. No Nordeste, é fonte de renda de diversas famílias que vivem da colheita da fruta em áreas nativas. Quando cai da árvore, significa que está madura e pronta para o consumo.
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*Texto de Serena Milano – diretora da Fundação Slow Food para a Biodiversidade / Publicado na Revista Prazeres da Mesa