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O papel dos grupos indígenas na formação da cozinha brasileira

biju-mandioca-indigena.jpg Este artigo aborda a contribuição dos grupos indígenas no processo de formação da culinária brasileira a partir das obras de Gilberto Freyre e Luiz da Câmara Cascudo, autores das obras mais significativas sobre a temática e referências obrigatórias para pesquisas na área.

A leitura desses autores passa a impressão de que a contribuição indígena para a cozinha brasileira se resume ao fornecimento de ingredientes, deixando de aportar ao saber-fazer e demais elementos dos sistemas culinários. No entanto, o curioso é que justamente nas obras desses autores encontramos informações que contrariam essa noção.

Assim é que este artigo pretende pensar a contribuição indígena à culinária brasileira a partir das entrelinhas de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo.

Freyre destaca a participação das três raças (índios, negros e brancos) na formação da cozinha brasileira. Os portugueses, ao ancorar no Brasil, teriam se apropriado das comidas indígenas, conseguindo, assim, se estabelecer nestas terras. Logo após, as portuguesas e africanas, valendo-se também de ingredientes indígenas, teriam criado os pratos da culinária brasileira. A criação é atribuída às portuguesas e africanas, enquanto que parte dos ingredientes é indígena. Essa idéia fica ainda mais evidente na análise dos doces brasileiros desenvolvida por esse autor (Freyre, 1966 e 1997).

panelaCascudo é mais radical. Esse autor afirma não tratar da escassez e da fome, mas sim da comida e do paladar. No entanto, não é assim que age no que tange aos grupos indígenas. Seu discurso em referência a eles é justamente o da escassez e da fome. Analisando os escritos de Cascudo, notamos que para ele o paladar inexiste nos indígenas: tudo o que é consumido serve apenas para o sustento. Aos indígenas, falta tudo. Falta óleo, doces, sal, acompanhamentos, ovos, leite, frituras, comensalidade etc. A interação culinária, como em Freyre, teria se dado tão somente via troca de ingredientes. O descaso com as cozinhas indígenas é tal que Cascudo afirma que foi a mulher branca quem ensinou as indígenas a cozinhar (Cascudo, 1967 e 1972).

Entretanto, esses mesmos autores apresentam outras informações, contraditórias com as sintetizadas acima. Freyre destaca que uma das estratégias dos portugueses na colonização do Brasil foi o casamento com índias. Assim, ainda que com um número reduzido de indivíduos, conseguiram se estabelecer no território. Desde os primórdios, formou-se no Brasil uma sociedade híbrida de índio. As índias foram as esposas e mães dos colonizadores nos dois primeiros séculos após o descobrimento, período em que faltaram européias no Brasil (Freyre, 1966). Assim, além de se valerem dos alimentos indígenas, os portugueses também se valeram das cozinheiras indígenas. Em outras palavras, nos primeiros dois séculos, a cozinha brasileira era indígena.

peixe Mas, além do alimento em si, pode-se presumir que os casamentos com índias proporcionaram aos brancos a inserção nas redes de parentesco indígenas e o correspondente compartilhamento de direitos e deveres. A partilha dos meios e formas de produção, a inserção na rede de distribuição dos alimentos, a reciprocidade, os mutirões, aspectos característicos das sociedades indígenas, em muito facilitaram a sobrevivência dos portugueses no Brasil. Assim, pode-se sugerir que cada uma das etapas (obtenção, armazenamento, processamento, preparação, consumo etc) da alimentação dos colonizadores se dava, em boa medida, no modelo indígena. 

Freyre (1966, p.220) afirma que, diante do contato, "do indígena se salvaria a parte por assim dizer feminina de sua cultura".

Inserindo-se na vida dos colonizadores como esposas legítimas, concubinas, mães de família, amas-de-leite, cozinheiras, puderam as mulheres exprimir-se em atividades agradáveis ao seu sexo e à sua tendência para a estabilidade (Freyre, 1966, p.203 – grifos meus).

Quanto aos homens indígenas, a imposição ao trabalho – escravidão – tornou muito mais difícil a convivência com o branco. Daí pode-se intuir que, sendo os afazeres culinários tarefa feminina, a alimentação se encontra na parte da cultura indígena que se salvou. Por outro lado, pode-se deduzir que o estereótipo do índio como arredio e indolente aplica-se, no período, apenas aos homens.

Freyre (1966, p.53) destaca a falta de ingredientes europeus no Brasil. "Tudo faltava: carne fresca de boi, aves, leite, legumes, frutas; e o que aparecia era da pior qualidade ou quase em estado de putrefação". Isso significa que, depois, quando as portuguesas passam a tomar conta das cozinhas, a dieta européia não podia ser posta em prática, restando como alternativa a culinária indígena. Tal escassez de ingredientes europeus, somada à tradição indígena vigente, teria proporcionado a miscigenação culinária. A cozinha tornou-se híbrida, tal qual o povo brasileiro. Das 108 receitas apresentadas por Freyre em Açúcar, 95 contêm ingredientes e/ou técnicas indígenas (Freyre, 1997).

Freyre, advogando em favor da preservação da culinária brasileira, defende que doce tradicional tem que ser feito com utensílios tradicionais. O uso de um outro utensílio, que não o tradicional, seria suficiente para alterar o gosto, já não sendo mais o mesmo doce. O interessante é que, dentre os utensílios listados por Freyre (1997), encontramos pilões de pau, colheres de pau, peneiras de taquara, folhas de bananeira, palhas de milho, panelas de barro, utensílios empregados pelos grupos indígenas.

em_volta_do_fogoJá Câmara Cascudo (1967, p.31) destaca que entre os índios as panelas estavam sempre no fogo. "A comida tinha outro sabor pela continuidade com que os alimentos sofriam a ebulição incessante". Tal característica também se percebe na alimentação colonial, com uma série de receitas que ficam "dias cozinhando". Característica presente ainda hoje, até mesmo em pratos tidos como típicos.

Cascudo também chama atenção para a nomenclatura de comidas brasileiras, muitas delas oriundas de línguas indígenas. Moqueca, caruru, paçoca, tapioca, beiju, mingau não são nomes de simples ingredientes, são nomes de pratos que envolvem todo um saber-fazer. Acredito ser esse mais um indício de que a contribuição indígena à culinária brasileira não se resume aos ingredientes. Ou portuguesas e negras teriam criado pratos e os batizado com nomes indígenas? Os pratos têm nomes indígenas porque são indígenas.

Em Paula Pinto e Silva (2005), encontramos outros dois aspectos interessantes sobre o uso das práticas alimentares indígenas pelos colonizadores. O primeiro se refere à forma de ingerir os alimentos, muito semelhante aos indígenas:

Mesmo em casas abastadas não havia mesa, nem bufete, nem aparadores. A comida era então servida sobre esteiras indígenas colocadas no chão, a cuia de farinha ao centro, cada comensal com seu prato de barro, comendo com as mãos, aos bocados (Silva, 2005, p. 32).

Esteira, farinha, cuia, panela de barro, comer com as mãos: tudo indígena.

O outro aspecto se refere à presença de duas cozinhas nas casas dos colonizadores, a de dentro e a de fora. Na cozinha de dentro, em ocasiões especiais, as sinhás preparavam receitas finas. Na cozinha de fora eram preparadas as comidas do dia-a-dia, não pelas sinhás. A cozinha de fora, podemos supor, tem influência dos grupos indígenas.

panelaPor fim, procurei reunir alguns argumentos que contrariam a impressão de que a contribuição indígena à culinária brasileira se resume a simples ingredientes. Advogo o contrário: os indígenas contribuíram com verdadeiros sistemas culinários.

Essa noção ainda pode ser ampliada se considerarmos as centenas de etnias indígenas existentes no Brasil, cada qual com práticas e simbologias singulares, cada qual contribuindo a seu modo para a formação da cozinha brasileira. A cozinha brasileira não surgiu em uma única região e num determinado espaço de tempo. Ao contrário, trata-se de uma confluência das diversas regiões e de uma lenta e contínua construção histórica. Dessa forma, em cada região, em cada período, diferentes povos indígenas estiveram em contato com portugueses e negros (sem falar nos demais imigrantes), produzindo interações específicas. Mapear a contribuição de cada grupo indígena, nos diferentes períodos, é uma tarefa quase impossível. Mas é possível afirmar que, de conjunto, a contribuição indígena para a alimentação brasileira é mais complexa do que se tem noticiado.

mandioca

 


REFERÊNCIAS

CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

______. Seleta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.

______. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijão e carne seca: um tripé culinário no Brasil colonial. São Paulo: Senac, 2005.


* Mártin César Tempass  é antropólogo, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS).


Nota da Editora – se você quer ler mais sobre a alimentação e cultura em grupos indígenas, vale a pena conferir outros dois trabalhos de Mártin, disponíveis na internet:

* Orerémbiú: a relação das práticas alimentares e seus significados com a identidade étnica e a cosmologia Mbyá-Guarani

* O belo discreto: a estética alimentar Mbyá-Guarani 

Comments:

Lucas
3 de novembro de 2021

Amei o texto! Perspectiva necessária sobre a história da nossa alimentação.

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