"Olha tudo o que nós plantamos pro nosso gasto! Não compramos quase nada! Frango, nós criamos; queijo, nós fazemos aqui. Esses produtos pra comida, muito pouco nós compramos. Açúcar, essemascavo, se faz aqui. Se olha de poupar o quanto mais dá. Batata, aipim… E, sabe, esses alimentos, dá pros filhos, também. Ela [a esposa] leva para as filhas, leva galinha já pronta, limpa. Temos vaca pra tirar leite, fazemos nosso queijo. Galinha, peru, pato, eu tenho. E esses bichinhos ali, criados a milho: não tem nada de ração. A carne de uma galinha dessas, fazer um brodo, fica bom!"
É desse modo, com orgulho, que Seu Ângelo, agricultor, descreve os alimentos que ele e sua esposa produzem para o consumo familiar. Essa produção, que entre os agricultores gaúchos também é chamada de produção "pro gasto", no meio acadêmico tem sido estudada como produção para autoconsumo.
Carnes, feijão, batata, batata-doce, mandioca, cenoura, alface, cebola, repolho, laranja, bergamota, maçã, mel, leite, queijos, embutidos, pães, biscoitos… são apenas alguns dos alimentos que vão direto da roça à mesa dessas famílias rurais, sem a intermediação dos mercados. São alimentos provenientes da criação animal, da horta, do pomar, da lavoura e da transformação caseira.
Embora haja diferenças quanto aos tipos e quantidades de alimentos produzidos para o autoconsumo, o certo é que essa é uma prática recorrente entre os agricultores familiares, de norte a sul do Brasil, ainda que, muitas vezes, passe como despercebida ou "invisível" aos olhos de quem formula políticas para a agricultura e o meio rural ou para quem os estuda. Seja na propriedade de Seu Ângelo, localizada no Rio Grande do Sul, seja no interior do Rio Grande do Norte, de Minas Gerais ou do Pará, encontramos a produção voltada ao autoconsumo, que garante a alimentação de tantas famílias.
Várias motivações levam as famílias a produzirem "pro gasto". Entre elas, citamos especialmente a qualidade dos alimentos produzidos, a economia decorrente do fato de não precisar comprar esses alimentos, a manutenção e fortalecimento dos laços sociais e a associação dessa produção com a identidade de agricultor.
Geralmente, os produtos destinados ao consumo familiar são produzidos com menor emprego de agrotóxicos e outros insumos químicos, dando-se preferência à utilização de esterco de animais, palhadas, restos de cultivos etc. Talvez por isso os agricultores vejam esses alimentos como mais naturais e saudáveis quando comparados àqueles adquiridos, cuja origem e manejo são desconhecidos. Ademais, em virtude de serem consumidos diretamente no pé (no caso das frutíferas) ou logo que colhidos, ou ainda devido ao manejo diferenciado, os alimentos produzidos pela família são considerados mais saborosos do que aqueles comprados.
Ainda, produzindo "pro gasto", a família evita gastar parte importante de seus recursos monetários na aquisição de alimentos, no mercado. Como mencionou Seu Ângelo, "não compramos quase nada. (…) Se olha de poupar quanto mais dá." De fato, é uma economia relevante para a unidade familiar. Estudos têm apontado que essa produção responde por valores expressivos na renda total e nos gastos com alimentação. Segundo Santos e Ferrante (2003), em estudo realizado junto a famílias assentadas em São Paulo, a produção para autoconsumo corresponde, em média, a 58% do gasto mensal total com alimentação.
Com freqüência, produtos destinados ao autoconsumo são doados a familiares e vizinhos. É muito comum o citadino, ao visitar seus familiares, deliciar-se com as comidas da roça e, ao retornar para sua casa, carregar consigo um pão caseiro, um doce, um queijo etc. Ou ainda, também é costume que agricultores, em visita a familiares que residem na cidade, levem como presente um pouco do "gostinho" da roça, como faz a esposa de Seu Ângelo, com galinhas "prontas e limpas" para as filhas. Também é habitual a troca de alimentos, sementes, mudas e outros produtos com os vizinhos. Fornecendo alimentos que o vizinho não tem, essas trocas contribuem para a diversificação da alimentação e, principalmente, reforçam os laços sociais. Com as trocas de alimentos, são firmadas relações, estabelecidos compromissos, consolidada a vida comunitária e, assim, alimentada a sociabilidade das famílias rurais.
Por fim, ao produzir a própria alimentação, os membros da família se reconhecem e são reconhecidos como agricultores. Há uma estreita relação entre essa prática e a identidade de agricultor (Brandão, 1981; Seyferth, 1991). As famílias sentem orgulho em mostrar que muito do que comem é resultado de seu trabalho na terra e discriminam a compra de alimentos que poderiam ser produzidos, como pão, leite, carne. Desse modo, entre esses agricultores, para ser considerado como tal, é necessário produzir ao menos parte de sua alimentação.
Embora as motivações e a importância dessa prática, algumas pesquisas têm indicado que, ao longo dos anos, as famílias rurais vêm diminuindo a produção de alimentos para o próprio consumo. Não é raro encontrarmos famílias que compram grande parte da alimentação. Frutas e verduras são compradas de fruteiros, verdureiros e outros comerciantes, que vendem na porta das casas. Biscoitos, massas e até mesmo pão são, muitas vezes, adquiridos nas padarias ou mercados próximos. Margarina, enlatados (leite condensado, creme de leite, extrato de tomate etc), refrigerantes, embutidos estão, entre outros alimentos industrializados, presentes na mesa e incorporados nos cardápios das famílias rurais.
Vários fatores podem estar contribuindo para a redução da produção para autoconsumo. Destacamos: o incremento dos cultivos comerciais, que demanda tempo de trabalho e espaço antes dedicados à produção para o autoconsumo; famílias cada vez menos numerosas, com os filhos saindo para estudar e as mulheres (geralmente as principais responsáveis pela produção de alimentos voltada ao autoconsumo) exercendo atividades fora da agricultura, o que significa menos "braços para trabalhar"; a produção de cultivos comerciais intensivos em trabalho; condições socioeconômicas precárias, que estimulam as famílias a se dedicarem aos cultivos comerciais ou a venderem sua força de trabalho; o recebimento de outras rendas como a aposentadoria rural; a facilidade de acesso aos mercados; a comodidade na aquisição de alimentos prontos; alterações nos hábitos alimentares, influenciados pelos meios de comunicação e a incorporação de novos eletrodomésticos.
Resgatar e fortalecer a produção para autoconsumo na agricultura familiar é importante não apenas por atender às necessidades nutricionais dessas pessoas – o que poderia ser suprido a partir de alimentos comprados -, mas pelo que representa em termos de garantia de sua segurança alimentar, dadas as relações que a alimentação guarda não apenas com as condições socioeconômicas das famílias rurais, mas com sua cultura, identidade social e sociabilidade.
Geralmente, as famílias de agricultores são percebidas quase que exclusivamente como produtoras de alimentos para a população urbana. Esquece-se que elas próprias se alimentam e que esses alimentos nutrem o corpo, o (ser) agricultor, o (ser) vizinho, o (ser) parente.
A convite de Seu Ângelo, observemos o que ele e a esposa produzem e comem. Olhemos para a produção e consumo alimentar de Seu Pedro, sua esposa e seus filhos. Vejamos o que está sobre a mesa de Dona Maria e família. Para enxergar os alimentos em suas várias dimensões.
Referências
BRANDÃO, C.R. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Graal, 1981. 181p.
GRISA, C. A produção "pro gasto": um estudo comparativo do autoconsumo no Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural/UFRGS. Porto Alegre – RS, 200p., 2007.
SANTOS, I.P.; FERRANTE, V.L.S.B. Da terra nua ao prato cheio: produção para o consumo familiar nos assentamentos rurais do Estado de São Paulo. Araraquara, SP: Fundação ITESP/UNIARA, 2003. 116p.
SEYFERTH, G. Identidade camponesa e identidade étnica (um estudo de caso). Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, p.31-63, 1991.
* Catia Grisa é engenheira agrônoma (UFPel) e Mestre em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS).