“Uma boa amizade começa pela barriga”: comida e afetos entre migrantes e refugiados colombianos em Santa Maria, Rio Grande do Sul

Dario, um dos mais de 400 mil refugiados colombianos pelo mundo, me disse, um dia: “uma boa amizade começa pela barriga”. Dario tem 52 anos e uma história de longa data com a fome. Ele e sua família saíram fugindo da Colômbia, pois grupos paramilitares o acusavam de ser colaborador da guerrilha das FARC. Se ficasse, a morte era certa, mas se fugisse, ninguém sabia. Ele escolheu a segunda opção.

Estávamos em um evento da Universidade. Eu o convidara para falar sobre comida colombiana e afetos, já que ele costumava ser o anfitrião dos encontros entre colombianos em Santa Maria, posicionando-se abertamente sobre a comida e o cozinhar como terapia. Na plateia, diversos estudantes da pós-graduação em ciências sociais, ansiosos por ouvi-lo. A iniciativa fora minha, como uma espécie de retribuição por todos os anos de pesquisa desenvolvida entre as famílias de refugiados colombianos reassentados em Santa Maria. Dario amava conversar e mostrar-se como expert diante do público. Por isso, acreditei que levá-lo à universidade para falar sobre sua especialidade seria, para ele, um ato de afeto.

Ele começou a palestra falando, brevemente, sobre sua vinda para o Brasil. Até que, em determinado momento, começou a discorrer sobre tudo que cozinhar, comer e partilhar comida colombiana significava para ele e sua família. Ele, então, aproveitou a oportunidade para comentar considerar no mínimo irônico que, em um evento sobre comida, não houvesse comida. Segundo ele “uma boa amizade começa pela barriga”. Assim sendo, sem comida para partilhar entre todos, seria muito difícil ele conseguir palestrar.

Eu tinha cuidado de todas as etapas do evento com muita atenção. Um cartaz de divulgação lindo, um espaço adequado para o palestrante, boas perguntas para a mediação, água para quando cansasse a voz, mas no detalhe que não passaria despercebido por Dario, eu não havia pensado. Corri rapidamente e peguei tudo quanto era biscoito e salgadinho para levar até a mesa. Ele, descontraído, agradeceu o gesto, ofereceu à plateia e continuou sua fala se posicionando como um conhecedor da matéria.

A comida é muito importante para ele, sabe bem o que é ficar durante dias na selva, correndo, fugindo e tendo o dinheiro contado para comprar pão ou qualquer outra coisa que “faça bem para o estômago”. Mas hoje, no Brasil, a história é outra. Não precisa mais se esconder e, sem dúvidas, não conta mais as moedas para comprar comida ou, pelo menos, não o deixa transparecer. A mesa sempre farta, mas no coração, uma falta. Ele e a família que formou há mais de 20 anos com Maria, que refletiu no nascimento de Hugo e José, seus filhos, acolhem a todos e a cada um dos colombianos que passam por Santa Maria, Rio Grande do Sul. Junto às demais famílias de refugiados colombianos em Santa Maria, como a de Pedro e Rosa, e a de Cristina, abrem suas casas para receber seus conacionais que, assim como eu, deixamos nossas famílias para trás e viemos estudar na cidade.

Aos sábados tem sancocho de gallina (sopa de galinha com banana da terra e batata, mais espessa do que outras sopas), tem bandeja paisa (semelhante à feijoada, mas com mais ingredientes: feijão com carnes, acompanhado, entre outros, por arroz branco, carne moída, banana da terra frita, ovo frito, linguiça assada, abacate, salada), tem arepas (feitas a base de milho moído, de forma arredondada e plana, assadas na grelha ou na chapa), tem churrasco, ou o que os convidados preferirem. Uma mesa abundante, composta de entrada, prato forte, molhos, sobremesa, sucos naturais, refrigerante, bebidas alcoólicas e temperos coletados na horta familiar. A fartura, tanto na panela, quanto no prato, é fundamental para Dario e sua família.

Além de acolher colombianos, convidá-los para sua casa e permitir o acesso a sua vida íntima, apesar de todos os percalços sofridos, é uma maneira de a família alimentar os convidados, que são cuidados quase que maternalmente, atenção ofertada sem pedir nada em troca. Aliás, alguém se oferecer para pagar pela comida, é uma ofensa. A solução é levar uma cerveja para agradar o anfitrião ou um vinho, para agradar a anfitriã. Dario observa com bons olhos todo mundo fazendo fila para se servir, enquanto no fundo se escuta “gotas de lluvia, no es el rocío, lágrimas que vienen del corazón” do Grupo Niche, uma salsa (gênero musical de origem caribenha e africana) que tocava nas rádios colombianas quando deixaram o país. Servir-se uma vez é obrigatório, servir-se duas vezes é bom sinal, servir-se mais vezes é presente para Dario.

Sancocho de gallina com arepas no fogão a lenha na casa de Maria e Dario

A despedida sempre se dá com a falsa promessa de que “na próxima, será lá em casa”. Mas todos sabem que isso dificilmente acontecerá, porque Dario e Maria adoram receber e nos fazer sentir como na Colômbia, mesmo longe dela.

A memória afetiva de migrantes e refugiados colombianos aflora a cada prato “tipicamente colombiano” servido. E é isso que querem dividir com os demais. Não se trata, apenas, das arepas servidas, mas de seu significado para o recém-chegado ou para aquele que chegou há anos e não consegue reproduzi-las em casa, seja por falta de utensílios, de ingredientes ou de habilidade. Trata-se, sim, de compreender o lugar que esta comida, servida em um sábado qualquer, em uma vila de Santa Maria, ocupa nas narrativas e trajetórias deste grupo social.

Na Colômbia, existem mais de 75 variedades de arepas, mas as que Maria, Johana e Rosa moem, montam e assam não estão nessa conta. Elas são especiais, escassas, artesanais e representativas. Quando alguém as come, é como se ingerisse um sentimento inteiro. A gente se lembra da mãe, da avó, da casa, das manhãs de domingo, da vizinha que as faz e vende e, com isso tudo, das ruas empoeiradas e estreitas de um bairro colombiano qualquer. Comer as arepas não catalogadas das mulheres-mães-refugiadas em Santa Maria é lembrar e é emocionar-se lembrando.

As arepas com guacamole servidas sobre a mesa comprida forrada com toalha de plástico de flores amarelas da casa de Maria e Dario significam o vínculo com o país de origem, envolvem lembranças boas e ruins e negociam gostos, por exemplo, ao adicionar – diferentemente do que se faz na Colômbia –  o guacamole como molho principal. Além disso, reivindicam uma ideia de identidade nacional, atualizam memórias, ressignificam dores do passado e as transformam em sociabilidades no presente.

Na Colômbia, as arepas eram prato cotidiano. Agora, no exílio, transformam-se em prato-tótem, de difícil reprodução, na medida em que demandam envolvimento, tempo disponível e, principalmente, habilidade. Mas nas reuniões celebradas entre colombianos em Santa Maria,  as arepas não podem faltar. Durante os encontros de sábado, eu me deliciava observando os rostos dos colombianos recém-chegados na cidade se iluminando ao saber que teríamos arepas. É quase como se alguém dissesse “tua mãe veio te visitar” ou “você ganhou uma passagem para Colômbia”.

Maria preparando guacamole para as arepas

Comer é compartilhar a própria cultura, dividir sabores, gostos e repugnâncias (LE BRETON, 2016).  Dario trazia tal entendimento muito claro. Fazer amizade e socializar não podem estar distantes do ato de comer, de afetar o outro com aquilo que é produzido na cozinha. Não é de surpreender que o maior cômodo da casa de Dario seja justamente a cozinha, o local para confraternizar, para receber o outro, para agradá-lo, consenti-lo e demonstrar sua importância por meio do preparo, consumo e partilha de comida.

A comensalidade, a sociabilidade mediada e possibilitada pela comida no contexto migratório está carregada de afetos. É a forma como damos as boas-vindas, como nos despedimos de quem está retornando, como lembramos de quem está ausente, como narramos, como damos forma a um discurso unificador ou divergente, por vezes, de um país distante. Se, como propõe Fischler (1995), o alimento nos transforma desde o interior e traz efeitos sobre o corpo, funda a identidade coletiva e, ao mesmo tempo, a alteridade, se é a partir do alimento que incorporamos propriedades da comida, então o que os colombianos em Santa Maria comem é a cura da fome do passado, a cura da depressão por estar longe do país de origem em datas festivas, a cura de ter tido que sair correndo, deixando casa, família e amigos.

REFERÊNCIAS

FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995.

LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016.


* Diana Bolaños Erazo ([email protected]) é colombiana, jornalista, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria e pesquisadora associada ao NECON-Núcleo de Estudos Contemporâneos. Este texto é parte de sua pesquisa de doutoramento, que resultou na tese De Colômbia con amor”: a comida no processo de construção de memória das famílias de refugiados colombianos em Santa Maria, RS.

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