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“Comida orgânica é mais cara”: questionando o mito

Feira do Modelódromo do Ibirapuera BDesde seu início, a modernização da agricultura se espalhou pelo mundo levando a promessa de que, por meio do uso de agroquímicos, poderíamos produzir alimentos baratos e em quantidade suficiente para acabar com a fome do mundo. No entanto, essa promessa não levava em consideração a qualidade de alimentos ou tampouco a saúde de trabalhadores e consumidores. Considerava, menos ainda, os impactos sociais e ambientais.  

Porém, não demorou muito para que os efeitos colaterais desse modelo de produção viessem à tona. Ainda em 1962, quando a Revolução Verde recém chegava aos países do hemisfério sul, a bióloga Rachel Carson publicava o livro “Primavera Silenciosa”, relatando os impactos dos agrotóxicos ao meio natural. Na época, a descoberta foi polêmica e altamente questionada. Hoje em dia, a quantidade de pesquisas e evidências já não nos permite negar o impacto nocivo dos agrotóxicos, seja na produção ou no consumo.

No entanto, desde o início das manifestações que defendiam comida de qualidade e sem agroquímicos, foi criado certo mito de que a comida orgânica é mais cara. Essa ideia-força tem sido bastante prejudicial, pois faz com que esses alimentos sejam associados com um consumo de tipo privilegiado e elitizado e, logo, inacessível à maior parcela da população. A máxima é, inclusive, usada como argumento por aqueles que defendem a produção com agrotóxicos. Ilustrativa disso é a declaração dada pela atual ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Kátia Abreu: “Milhares de brasileiros que ganham salário mínimo ou que não ganham nada e que, portanto, precisam comer alimento com defensivo sim. Porque é a única forma de se fazer alimento mais barato” (FERNANDES, 2011). A fala em questão foi proferida em 2011, quando Kátia atuava como senadora, tentando pressionar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para que agilizasse a aprovação de certos agrotóxicos.

MICC BA 6ª edição dos Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, lançada em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que os produtos classificados como perigosos são os mais vendidos no país, ultrapassando a cifra de 64% (IBGE, 2015). No mesmo ano, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) divulgou documento no qual afirma que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, tendo um consumo médio anual de 5,2 quilos de veneno agrícola por habitante (BRASIL, 2015). Em outras palavras, temos um modelo de produção agrícola que gera alimentos literalmente envenenados!

A afirmação de que “orgânico é mais caro” generaliza e encobre fatores que afetam a formação dos preços, mas que precisam ser esclarecidos. A produção de alimentos com agroquímicos foi implementada no contexto de um modelo de desenvolvimento social e econômico que visava à subordinação da agricultura à indústria, de forma que a agricultura pudesse tornar-se consumidora de insumos e máquinas à medida que gerasse matéria prima para a indústria produzir alimentos processados. Provocando, portanto, uma dupla dependência dos agricultores em relação aos mercados e retirando a possibilidade de autonomia sobre seus recursos, visto que, nessa lógica, passam a comprar fora o que precisam para produzir. Ou seja, o modelo tende a aumentar o custo da produção. Esse fator foi essencial para o êxodo rural que ocorreu no país nas décadas de 1960 e 1970, pois muitos agricultores não tiveram condições financeiras de adotar o modelo ou estavam fora das regiões prioritárias para a produção de grãos, café e cana-de-açúcar (cultivos alvo da modernização à época). 

Estudos contemporâneos têm indicado que a maior diferença de preços entre o que chamamos de produtos convencionais e orgânicos se dá não pela produção em si, mas por fatores como o tipo de certificação e os espaços em que este alimento é comercializado. É nesse sentido que a pesquisa “Alimentos sem veneno são sempre mais caros?” recentemente lançada pela Rede Brasileira de Grupos de Consumo Responsável e Instituto Kairós traz importantes contribuições. Os dados apresentam uma comparação de preços praticados para 22 produtos em cinco cidades brasileiras, considerando quatro canais de comercialização diferentes, a saber: supermercado, feira convencional, feira orgânica e Grupos de Consumo Responsável. 

cesta sem venenoO levantamento de dados aponta que circuitos curtos de comercialização, aqueles em que há venda direta, feiras e grupos de consumo, tendem a ter valores menores em relação aos espaços que envolvem cadeias longas de comércio com a atuação de diferentes atravessadores, tais como supermercados e feiras convencionais. Assim, uma cesta com 17 produtos orgânicos vendida no supermercado custa R$ 144,00, enquanto que nos Grupos de Consumo Responsável os mesmos produtos podem ser adquiridos por R$ 69,00. Os preços de orgânicos comercializados em supermercados podem chegar a ser quatro vezes mais caros em relação aos que circulam nos Grupos. Quando comparados produtos convencionais comercializados nos supermercados com orgânicos oferecidos nos Grupos de Consumo, esses tiveram um valor médio equivalente, apresentando valores mais baixos para alguns produtos tais como alface americana, brócolis ninja e abacate.

MICC AOs dados revelam que além de preço mais justo ao consumidor, a venda direta garante maior remuneração para o agricultor. Destaca-se que um dos Grupos de Consumo participantes da pesquisa é o MICC – Associação de Integração Campo-Cidade –, que atua desde meados dos anos 1980 na Zona Leste de São Paulo, composto por aproximadamente 800 famílias de média a baixa renda. Ainda que a pesquisa se limite a apenas cinco cidades brasileiras, não contemplando, por exemplo, dados de cidades do Sul ou Norte do país, ela abre caminhos para que o mito de que a comida saudável e de qualidade é um privilégio acessível a poucos possa ser questionado e, oxalá, desconstruído.

O documento na íntegra pode ser acessado aqui.

 

Referências

BRASIL. Inca. Ministério da Saúde. Posicionamento do Instituto Nacional e Câncer José Alencar Gomes da Silva acerca dos agrotóxicos. Rio de Janeiro: Inca, 2015.

CARSON, Rachel L. Primavera Silenciosa. São Paulo: Gaia, 2010.

FERNANDES, Vivian. Kátia Abreu pede agilidade na liberação de agrotóxicos. 2011.

IBGE. Indicadores de desenvolvimento sustentável: Brasil, 2015. 2015.


* Potira V. Preiss é Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq.

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