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Do camponês ao queijeiro: grandes e pequenas histórias no Pirineu catalão

paisagem4.jpgDe minhas recentes viagens ao Pirineu, impressionou-me a ternura que os pagesos (como são chamados os camponeses na Catalunha) ainda hoje conservam pela montanha. Ternura entendida como uma mistura bem feita de amor e respeito.

Até um passado muito próximo, a montanha foi provedora de todos os alimentos, sendo ainda capaz de curar, com as ervas que abundavam por seus campos e bosques, os males de homens e criações. As estações do ano eram como páginas de uma agenda sempre cheia. Tudo tinha que ser feito num tempo preciso e inadiável, sob pena de se perder o compromisso diário com a sobrevivência.

Em alguns momentos mais emocionantes das visitas e entrevistas que tive oportunidade de realizar, acho até que pude compreender – ainda que seja incapaz de transmitir – porque a montanha é, em muitas culturas e em diversos pontos do planeta, um lugar de veneração.

paisagem5.jpgCabe aqui uma observação: há pelo menos um século, a vida no Pirineu catalão se faz sob condições mais duras do que no francês. Beneficiados pela topografia mais suave, um regime de chuvas mais generoso e, sobretudo, por uma resposta mais antiga e mais consistente do Estado aos desequilíbrios territoriais provocados pelo desenvolvimento industrial, os franceses puderam manter algum freio sobre a sangria demográfica e souberam "ajardinar" a paisagem sem excessivo trauma. Do lado catalão, aos enormes obstáculos físicos se somaram o desespero de famílias que se viram surpreendidas, primeiro pelos agouros da guerra civil, depois pelo desprezo da política franquista, que os abandonou à própria sorte.

mapa_fonte_wikipedia.jpgO despovoamento no século XX enfraqueceu a montanha: com a retração da agricultura e da criação de cabras e ovelhas, observa-se o abandono de terras e a quase paralisia na circulação de produtos. Até o surgimento das primeiras estações de esqui, na década de 1960, apenas o cooperativismo pôde responder à crise e dar alguma sustentação à economia da montanha, investindo nas criações intensivas e semi-intensivas de vacas leiteiras e no processamento industrial de leite.

O estudo de Rafael Juan i Ferrollar, encarregado pelo Ministério da Agricultura da Espanha, mostra que a década de 1960 foi o momento de inflexão para o pleno desenvolvimento da agroindústria leiteira espanhola. Naquela década, na bacia leiteira do Pirineu catalão, a produção de queijo deslocou-se para as cooperativas e a manipulação artesanal foi perdendo importância social na medida em que – principalmente nas cidades – crescia a demanda pelo produto pasteurizado. Hoje, tem-se a impressão de que a oferta de queijos processados fora das indústrias é muito tímida, especialmente frente à crescente demanda por alimentos artesanais.

paisagem1.jpgPercorremos inúmeras estradas sinuosas nas comarcas de La Cerdanya, Pallárs Sobirà e Alt’Urgell. No entanto, não foram muitos – apenas seis ou sete – os queijeiros-artesãos de ofício que pudemos identificar. Ao entabularmos a conversa, minha primeira preocupação era indagar-lhes porque se consideram produtores artesanais. Deparei-me com duas respostas, presentes em quase todos os casos: (a) a maior exposição, tanto dos rebanhos quanto dos processos de transformação, aos fatores naturais e (b) a pequena escala de produção.

Pude notar entre esses queijeiros artesanais dois grupos bem distintos: por um lado, aqueles que, mostrando-se convencidos o suficiente de sua condição camponesa, buscam assegurar a reprodução de conhecimentos e práticas herdadas de seus antepassados; por outro lado, aqueles que poderíamos classificar como neo-rurais cansados da vida na metrópole ou filhos pródigos desencantados com experiência urbana.

O primeiro grupo é o que mais nos agrada, enquanto visitantes urbanos: inclui os "autênticos" protagonistas da resistência do mundo rural, evidência de que os valores tradicionais não foram plenamente tragados pela sociedade moderna. Mas esse "congelamento ideológico" do mundo camponês pode ser enganoso. Explico: aqui há uma contradição só facilmente superada quando a família camponesa era numerosa. No início do século XX, o artesanato do queijo era uma dentre tantas atividades previstas pelos camponeses em seu calendário anual; o queijeiro-artesão era um especialista num universo generalizado. Hoje, as famílias são pequenas, algumas envelhecidas, e dificilmente podem manter a produção artesanal sem contratar mão-de-obra externa. Boa parte delas, inclusive, já não possui rebanhos próprios e compra o leite de vizinhos. O queijeiro-artesão é, agora, um especialista num universo especializado.

O segundo grupo provém do esgotamento do modelo fordista de produção e da perda de confiança na organização científica do trabalho, que lhe serviu de base (taylorismo). São professores, profissionais liberais e aposentados que testemunharam o esvaziamento das fábricas e dos sindicatos, sua hostilidade a esse mundo sendo cuidadosamente calculada. A supressão de técnicas consagradas no processamento industrial (como a pasteurização do leite e o controle artificial da temperatura e umidade durante a cura do queijo) deve menos ao aprendizado na lida do que à formação profissional que receberam antes de passarem a exercer a atividade de queijeiro. Um deles é diplomado em curso de gastronomia e, vez por outra, freqüenta seminários e feiras para estabelecer contatos técnicos e comerciais.

Na outra ponta da cadeia, está um conjunto heterogêneo de compradores, que tem por principal ponto em comum o fato de estarem dispostos a pagar mais do que pagariam por um produto industrial similar. A maioria são lojas especializadas, restaurantes e pequenos distribuidores. Ainda, dependendo da estação do ano, aparecem muitos turistas para a compra direta, o que motivou quase todos os produtores a adaptarem suas instalações para visitas e disporem de parte do tempo de trabalho para o atendimento ao público.paisagem3.jpg

Os produtores se queixam de que, apesar do maior preço obtido por seus queijos – comparando com os similares de padrão industrial -, os benefícios não são tão grandes quanto aparentam. O custo final para produzir cada queijo é elevado, pois não é possível amortizá-lo quando a escala de produção é pequena e, além do mais, a produtividade é consideravelmente menor, medida em litros de leite por vaca (ou ovelha ou cabra), dado o sistema de manejo. Um dos produtores chegou a afirmar que persiste no queijo artesanal tão somente por uma "questão de fé".

Para onde vai, então, o valor agregado? No livro Tres Lecciones sobre la Sociedad Postindustrial, o economista Daniel Cohen avalia que na "nova economia" os valores se concentram na produção imaterial (concepção, design, marketing etc), mais que na própria produção material dos bens. Isto é, o bem em si passa a ser uma mercadoria mais barata que o conjunto de serviços associados à sua introdução e manutenção no mercado. Se aplicadas essas idéias à produção artesanal dos alimentos, a agregação de valor se daria, por um lado, pelos conhecimentos e receitas capazes de produzir um produto superior ao industrial e, por outro lado, pela habilidade em convencer o consumidor de que a aquisição do produto é necessária ou oportuna. Pois bem, apenas um dos queijeiros-artesãos que visitamos parece envolver-se de forma substantiva no processo produtivo imaterial – que se estende além das fronteiras da propriedade e que, geralmente, demanda relações sociais extra-locais, como treinamento, regulação oficial e publicidade -; os demais dedicam praticamente todo seu tempo de trabalho à produção material, sendo, portanto, incapazes de acessar a maior parte do valor agregado.

paisagem2.jpgDe maneira geral, a produção imaterial é vista com desconfiança pelos queijeiros, porque é aí que se inserem aqueles que "não são da agricultura". Comparemos, como exemplo, com o que ocorre com o caso de um bem acabado, improrrogável, cujo processo de fabricação pode ter como senhor um único artesão: o sapato. Amparado pelo direito de propriedade intelectual, o sapateiro-artesão pode controlar todo o processo de produção imaterial de seu produto (design, marca, patente etc). Já o queijeiro-artesão, perde essa capacidade de controle quando seu produto final não é consumido imediatamente, convertendo-se em matéria-prima culinária. Nesse caso, a responsabilidade pela produção do paladar, apresentação e forma de consumo pode trocar de mãos: do queijeiro para o chef de cozinha. Não é por outro motivo que o catalão Ferrán Adriá – proprietário do El Bulli, de Barcelona, apontado como o melhor restaurante do mundo – experimenta queijos artesanais de várias procedências em seu laboratório gastronômico.

O queijeiro que se mostrou uma exceção ao participar ativamente da produção imaterial é um neo-rural que especializou-se no ofício e que costuma freqüentar seminários técnicos, feiras e eventos comerciais. Após vencer um concurso numa feira regional, um de seus queijos passou a ser exportado, com regularidade, para um sofisticado restaurante de Nova Iorque. Contada com detalhes pelo simpático queijeiro, essa história se assemelha ao conto de Cinderela. Certamente, algo um tanto inusitado naquelas paragens inóspitas. Mas, como diria a bela senhorita, se o baile é bom, o príncipe aparece…

 

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REFERÊNCIAS

Cohen, D. Tres lecciones sobre la Sociedad Postindustrial. Trad. De Víctor Goldstein. Madrid, Katx Difusión ed., 2007.

Juan i Fenollar, R. La Formación de la Agroindustria en España: una aproximación causal y regional. Madrid, Servicio de Publicaciones Agrarias, 1978.


* Clécio Azevedo da Silva  é professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, está realizando um estágio pós-doutoral na área de geografia da alimentação junto ao Departamento de Geografia da Universitat Autònoma de Barcelona.

Nota do autor: Este texto foi produzido com o apoio da Fundação CAPES (bolsa de pós-doutorado no exterior). Consiste num relato de impressões de duas viagens ao Pirineu realizadas no ano de 2007: a primeira, entre os dias 18 e 19 de novembro, uma saída de campo às comarcas da Cerdenya e do Pallars Subirà, organizada pelo Prof. Romà Pujadas (Depto. de Geografia Humana da Universidade de Barcelona); a segunda, entre os dias 3 e 6 de dezembro, por ocasião do Seminario de Desarrollo Rural y Transformación del Paisaje en el Pirineu Catalán y Andorra, realizado na comarca do Alt Urgell pelos Departamentos de Geografia da Universidade Autônoma de Barcelona e Universidade de Toulouse. Aos colegas que oportunizaram-me a aproximação a esta gente do Pirineu e suas histórias apaixonantes, minha gratidão.

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