Parte I desta história
Observe esse papo entre Girolamo Benzoni e um americano (desconhecido) em 1575 D.C:
Isto (chocolate) mais parece bebida para porcos que alimento para gente. Eu estive no país por mais de um ano e nunca quis experimentar isto, e sempre que passava num local e recusava esta bebida oferecida pelos índios (indígenas), eles ficavam pasmos e se afastavam sorrindo. Mas então, como havia escassez de vinho, eu tomava outras bebidas pra não ficar bebendo água. O sabor é algo amargo, ele satisfaz e refresca o corpo, mas não inebria, e é o produto mais valioso do mercado, segundo os índios (indígenas) do país (Império Asteca – México).
Girolamo Benzoni – La História del Mondo Nuovo, 1575 D.C.
Um americano (desconhecido) responde:
Dizem que em tempos antigos uma xícara de cacau era compartilhada com cada pessoa querida que visitava as casas das comunidades Maias, tomando juntos o chocolate para falar desde o coração e criar relacionamentos duradouros, vínculos profundos que reforçavam o elo entre os povos. Quando você fala com o coração, fala desde sua a verdade e de aí é possível criar uma nova realidade.
Assim se inicia a fascinante saga do chocolate pelo mundo. Confira!
Parte II desta história
Os Maias, por volta de 600 A.C, já comercializavam o cacau e produziam o suficiente para toda comunidade, foram os primeiros presentes no continente americano e, por isso, os pioneiros a terem grandes habilidades com o cacau, o que depois se transformou em chocolate.
Inicialmente, se tratava de uma bebida feita com o cacau e água quente – xocoatl xoco (amargo) e atl (água) em náuatle, a língua asteca. A maioria das vezes, era aromatizada com pimenta e canela e, mesmo a produção da bebida sendo priorizada aos nobres, que podiam consumir com frequência, era super possível estender essa singularidade em um formato horizontal na época. Yucatán e Guatemala desempenhavam muito bem esse papel.
O cacau era preparado com um tipo de vinho e purê de milho fermentado, adicionado de especiarias, pimentão, pimentas, e, algumas vezes, cogumelos alucinógenos. Os preparos acrescidos de mel e baunilha eram reservados à nobreza (BATISTA, 2008, p. 7).
Os americanos tinham a bebida de xocoalt como parte da dieta diária naqueles dias e era algo muito sagrado que caracterizava esse povo como prósperos com agricultura vibrante e abundante. Até o europeu chegar, e então, tudo tomou outro rumo…
Depois dessa invasão, Colombo leva a famosa bebida que entra no continente europeu – na data de hoje – e a relação com o cacau se estende a outros povos, provocando um silenciamento culinário na América que fez o nativo se afastar de um alimento pertencente ao seu contexto alimentar.
A novidade recém chegada se espalha em progressão geométrica pela nobreza européia. Hernán Cortez leva todo o conhecimento de aplicabilidade sobre o cacau, desde colheita até secagem e produção e, durante todo século XVI, os espanhóis guardavam às sete chaves todo domínio sobre a iguaria, sem intenções de compartilhar com qualquer outro país e o que era exportado em quantidades, teve seu potencial de primeira grande remessa em 1585, diretamente de Vera Cruz – México para Espanha.
A América já não mais fazia por ela e essa dissolução das civilizações americanas, culmina no apagamento da culinária nativa também. A desconexão total se deu após trinta anos da invasão espanhola, onde se encerrou um mundo de tradições e a eliminação de civilizações de extrema potência.
Pronto, o chocolate estava instaurado como um delicia de origem europeia. E por que estamos comemorando, então?
Porque precisamos ampliar o olhar sobre a trajetória do chocolate e entender a cadeia produtiva do cacau e os diversos posicionamentos em relação a essa iguaria.
Parte III desta história
Após introdução na Europa e, ao longo dessa jornada chocolateira, muitas mudanças foram alcançadas: casas de chocolates se multiplicaram, receitas foram ressignificadas, grupos de gastrônomos associados às questões políticas e econômicas se reuniam para discussões acerca do cacau – expansão da cadeia produtiva em outros territórios e aumento das importações para Europa, tudo que pudesse satisfazer os desejos desse continente em relação à existência do cacau. A mesma Europa que hoje em dia, quer oferecer os financiamentos para os créditos de carbono e regeneração dos solos dos trópicos para não perder a demanda e soberania sobre o cacau, porque sem ele jamais haverá chocolate.
Com o advento da Revolução industrial, o chocolate deixa de ser uma receita intimista e alcança popularização e alta comercialização. Há relatos de que os nobres de tanto usar a bebida, tinham os dentes bastante escurecidos e frequentemente eram mais de 3.000 pessoas que faziam uso da bebida na corte de Luís XIV. Quando os espanhóis começaram a perceber a infertilidade dos solos do México e Guatemala para produzir mais cacau, começaram adentrar o território venezuelano, o que se tornou o principal fornecedor na época, sobretudo porque tinham o tão amado cacau criolo, do qual o europeu tanto priorizava.
Séculos se passaram, América esvaziada e Europa abastecida e vibrante com as criações em torno da iguaria. Na segunda metade do século XIX, com Henri Nestlé o chocolate ao leite tornou-se a estrelinha da fila e foi sendo aprimorado com adição de mais manteiga de cacau para estabilidade e textura, técnica aprimorada anos mais tarde por Rudolf Lindt, na Suíça, e que foi batizada de conchagem. Nesse momento, o chocolate com perfeito derretimento começa a atravessar os oceanos e alcançar os hemisférios para encantar o paladar de muita gente, sendo a China, um dos últimos territórios a conhecer o chocolate.
E, até hoje, fixa-se as diretrizes deixadas por Lindt para se fazer um excelente chocolate em barra, depende-se muito do cuidado e domínio do uso da manteiga de cacau e, por fim, o boom chocolateiro estava instaurado. Dessa forma, ressignificando-se rapidamente, com certa intensidade, a cada 5 anos ou menos que isso.
Parte IV desta história
A volta desse alimento para América, já em forma de barra e com açúcar, nos obriga a (re)conhecer o novo chocolate, seduzindo paladares através do dulçor. O mundo não pensa cacau e chocolate como se pensava antigamente. A identidade do chocolate contemporâneo requer hoje que o cacau seja de procedência ou origem conhecida, em que se possa criar um elo de trabalho mútuo com o produtor. Para, assim, envolver economia solidária e muitas diretrizes em prol da saudabilidade em cada barra. Além de, nutricionalmente falando, possuir antioxidantes preservados em consequência de um trabalho feito por mãos e coração em prol da sustentabilidade e chocolates reais.
Estas mãos e corações possuem algo em comum, a confluência com a agroecologia e a convicção de que o cacau e chocolate podem transformar a vida de pessoas. Pessoas essas que são comuns e que estão nas comunidades, nos assentamentos, nas cidades, no campo, nas favelas, nas universidades, nos órgãos, nas instituições e em todo e qualquer ser humano que deseja resgatar a memória alimentar e ancestral daquilo que sempre foi nosso.
Esse é o significado do verdadeiro chocolate. Viva o chocolate bom, limpo e justo para todos!