Milho crioulo, alimento sagrado. De norte a sul do país, populações lutam por essa – e outras sementes originárias –, em busca de soberania alimentar
Diversidade de milho. Foto: Tenondé_Porã
Para garantir o acesso ao alimento bom, limpo e justo para todos é imprescindível pensar em soberania alimentar – direito das comunidades de decidir o que cultivar, produzir e comer. Os caminhos são tortuosos e as ações transcendem a política institucional, sendo trilhadas no micro, através de iniciativas da sociedade civil em suas comunidades e aldeias.
Sim. É na Terra Indígena Tenondé Porã que Jera (lê-se Djerá) Tenondé Porã, liderança indígena Guarani Mbya, vem lutando há mais de dez anos pela salvaguarda das sementes, por autonomia alimentar e pela demarcação das terras de seu povo. Hoje, a Tenondé Porã compreende nove aldeias, em 16 mil hectares localizados em Parelheiros e Marsilac, distritos da Zona Sul da capital paulista, além de São Bernardo do Campo, São Vicente e Mongaguá.
Segundo Jera, perdeu-se muito da tradição guarani com a chegada da cultura “envolvente” dos jurua (lê-se djuruá; os não indígena, em guarani), inclusive em relação à comida. “Na tradição guarani, o alimento tem que alimentar o seu corpo e o seu espírito. Como os mais velhos sempre falam, o que não é plantado na terra pelos próprios guaranis não é uma comida muito saudável”, conta Jera.
O milho (Zea mays), por exemplo, é a base da alimentação guarani e, além de ser protagonista em várias preparações locais, conta com uma imensa variedade de tipos e cores, “Temos uns nove tipos mais conhecidos e outros que nunca antes foram vistos, os coloridos”, lembra Jera. Esses milhos são provenientes de sementes tradicionais, originárias e antigas – as tais sementes crioulas.
As sementes crioulas não possuem alteração genética em sua composição e não dependem de aditivos químicos para se desenvolver, o que garante a germinação de alimentos mais saudáveis por natureza, e a independência dos agricultores em relação às empresas que detêm o controle sobre as sementes patenteadas.
Além de alimento, o milho, ou avati, é sagrado para os guarani, e também representa o modo de ser e a religião do povo indígena. “A gente faz ritual de consagração para plantar, na hora da colheita. Do milho, tem os pratos que fazemos só pros mais velhos, só pras grávidas, só pros doentes, só pras crianças”, fala Jera.
O trabalho de resgate das sementes antigas percorre o país. Nos últimos anos, de acordo com Jera, foram muitos encontros e trocas de sementes com guaranis e juruas pelo Brasil afora, sempre em busca por nutrir novamente a terra com uma variedade de espécies, trazendo mais autonomia alimentar a esses povos originários.
Hoje, a aldeia Kalipety, onde Jera vive com a família, é referência em produção agroecológica de alimentos. Além do milho, são mais de 50 tipos de batata-doce, ou jety, entre outros produtos.
Na mesma época em que a Jera começava sua luta na terra Tenondé Porã, mais ao norte do país também se intensificava o movimento de revalorização das sementes tradicionais, inclusive do milho. Isso porque, no Rio Grande do Norte e na região Nordeste do Brasil, o milho também tem papel fundamental na alimentação e nas celebrações populares. “O milho faz parte da primeira capela que se ergueu no sertão e das festas de santos juninos”, ressalta Adriana Lucena, membro da Aliança de Cozinheiros Slow Food e referente Slow Food da Fortaleza da Abelha Jandaíra do Mato Grande no Cabeço, Rio Grande do Norte.
Há cerca de dez anos, comunidades desse estado voltaram a plantar milho crioulo, mas segundo Adriana os produtores ainda enfrentam dificuldades na comercialização. “O nosso consumidor é mais tradicionalista, diferente do paulista. Até porque nós temos essa tradição do milho verde, na canjica, no curau, nas comidas doces dos festejos… se consome muito ele cozido”, lembra Lucena.
Para além da soberania alimentar, a propagação das sementes livres depende também de uma criação de demanda por esses produtos, seja por parte do consumidor final, do cozinheiro ou do chef de cozinha. “Comer é um ato político”, dizem por aí. Então vamos juntos promover o cultivo de milho crioulo e optar por alimentos livres de transgênicos?