Anouk e Vianne na Chocolateria Maya

Que bons ventos o tragam: o chocolate e a renovação dos afetos

Anouk e Vianne na Chocolateria MayaO filme Chocolate narra a história de Vianne e Anouk, mãe e filha que chegam a uma pequena cidade no interior da França, numa tarde de inverno, levadas pelo vento norte. É Anouk, já adulta, quem conta o que ali se passou, nos dias de sua infância, em fins dos anos 1950. Sua narrativa assume a forma de uma fábula, cujas palavras iniciais – ‘era uma vez’ – anunciam que eventos mágicos e, quem sabe, um final feliz, podem ser esperados.

 Elas alugam uma loja e o apartamento no andar superior, próximos da praça e da igreja da cidade. Enquanto Vianne limpa, pinta e decora a loja, Anouk brinca com seu amigo imaginário, Pantoufle, um canguru ferido. Logo elas recebem a visita do prefeito, o Conde de Reynaud, que lhes dá boas vindas, as convida para a missa dominical e adverte que a Quaresma não é tempo adequado para a abertura de ‘uma confeitaria’. Poucos dias depois, elas inauguram a Chocolateria Maya.

cacau e sementesVianne e o prefeito são personagens opostos, que representam dois modos de vida em princípio incompatíveis. Ela é filha do boticário francês, George Rocher, e de uma mulher nativa da América Central, Chitza. Ambos dominavam a arte de elaborar remédios, ele como farmacêutico e ela como detentora de conhecimentos milenares, do povo Maia, como a domesticação do cacau, ao qual se atribuíam propriedades curativas e a de ‘liberar desejos ocultos e revelar destinos’. Herdeira desse saber, que a mantém “ligada ao grande corpo de mulheres de (sua) linhagem” (Giard, 2009:214), Vianne segue a tradição de sua mãe – cujas cinzas carrega na bagagem – levando uma vida nômade e com o compromisso de disseminar a ‘cura pelo cacau’.

Ela usa a técnica tantas vezes observada, triturando as sementes de cacau em uma mó de pedra manual. Há uma memória sensorial que a orienta, memória dos gestos, dos aromas, das consistências. Repetindo o já feito, Vianne mantém vivas antigas receitas, como o chocolate quente com pimenta chilli. Ao mesmo tempo, ela “caminha através do recebido” (Giard, 2009:218), criando novos doces, como os Mamilos de Vênus.

Vianne não frequenta a igreja, usa sapatos vermelhos, é mãe solteira e, além de exímia doceira, possui habilidade divinatória. Em sua chocolateria, a cura se traduz em experiências de prazer sensorial, cujos significados são definidos em conformidade com as questões existenciais de cada frequentador(a). Com o auxílio de um ‘objeto maia’ – um círculo de cerâmica que ela gira sobre o balcão – ela descobre, através do que cada um(a) vê/imagina no objeto em movimento, o doce que lhe é adequado, aquele que vai ajudá-lo(a) a perceber seus desejos silenciados, motivando-o(a) a realiza-los. A cura é o autoconhecimento, a partir dos sentidos, sobretudo o do paladar.

Reynaud é descendente da nobreza local, homem rígido, católico fervoroso, que encarna os valores cristãos de ordem, disciplina e retidão moral. Faz de sua vida o exemplo de sobriedade a ser seguido pelos cidadãos, mantidos sob vigilância e controle – inclusive o jovem padre Henri –, pois nada escapa ao Conde, de modo que na cidade ‘tudo tinha o seu lugar’. No contexto da Quaresma, essa rigidez tem seu ápice na prática da penitência, por meio do jejum. Há pelo menos duas cenas em que ele, embora tentado, nega a refeição frugal que lhe é oferecida pela empregada (velha senhora que lhe diz que precisa comer ‘alguma coisa’). Sua ‘voz’ é a da contenção dos comportamentos: negação do corpo pela negação do prazer da comida, associada à privação sexual, pois sua esposa o deixou há meses, situação que ele não reconhece, afirmando que ela está em uma longa viagem. Com sua conduta de recusa dos sentidos, ele afirma o poder da comida como elemento configurador não só do corpo físico, mas também do ‘corpo moral’, o ‘caráter’ (Mintz, 2001:32) – que deve primar pelo controle dos prazeres – e opera uma separação entre o mundo sensível e o mundo espiritual que, a seu ver, é o que deve ser exaltado (Lima, 1996:7).

Os demais personagens se situam nos dois campos em contraste. Uma mulher inconformada com seu papel social, Josephine Muscat, casada com o violento Serge, e que se refugia ‘em seu mundo’, falando sozinha e praticando pequenos furtos de objetos ligados à imagem pessoal (um estojo de maquiagem) e ao prazer (uma caixinha de chocolate). A ela, Vianne oferece um chocolate recheado de creme de rosas com Cointreau. E Armande, idosa insurgente que não vai à igreja, lê ‘livros obscenos’, bebe e se recusa a mudar-se para um asilo e a tratar da saúde, abalada pelo diabetes. Por não se comportar como o esperado de uma mulher de sua idade e condição social, ela é proibida pela filha, Caroline, de conviver com o neto Luc, o que a torna especialmente amarga. Ao provar o chocolate quente com pimenta chilli, ela se lembra de aventuras amorosas de sua juventude – burlando as regras morais impostas por sua mãe – e ri. Por intervenção de Vianne, a Chocolateria Maya se torna o espaço de transformação dessas e de outras personagens: Josephine abandona o marido e passa a viver na loja, tornando-se doceira aprendiz, e Armande tem encontros prazerosos com o neto, sem o conhecimento de Caroline.

Cacau brasileiroO chocolate – que por sua origem histórica e geográfica é um elemento externo – desempenha, de certa forma, um papel ritual, como marcador dessas transformações. Sua incorporação desperta desejos e coragem. Com o passar do tempo, e apesar das proibições do prefeito, cada vez mais moradores passam a consumir as iguarias de chocolate vendidas por Vianne, pecado de que se redimem no confessionário. Mesmo as personagens que a ele resistem, como Caroline, que é secretária do Conde (por quem é apaixonada), Serge (homem grosseiro que o Conde tenta, sem sucesso, educar) e o padre Henri (cujos sermões são corrigidos pelo prefeito) são, de forma indireta, por ele afetados.

Em meio à batalha que se trava entre o Conde e Vianne, outra ameaça à ordem se apresenta com a chegada de um grupo de viajantes, identificados pelos moradores como ‘ciganos’ (ou ‘piratas’, aos olhos de Anouk). Vivendo em cabanas sobre barcos, acampam na beira do rio. (O mundo externo sempre atinge a cidade por meio de caminhos naturais, incontroláveis, como o vento e o rio). Sem nada que lhes permita estabelecer uma ponte com os moradores da cidade, sua alteridade não é tolerada e eles passam a ser boicotados por determinação do prefeito. A Chocolateria Maya é o lugar em que são bem recebidos, na figura de Roux, o único cujo chocolate preferido Vianne não consegue decifrar.

O desfecho da história acontece com o banquete de aniversário que Vianne oferece a Armande, com a presença de Luc (que fugiu de casa para estar com a avó), dos frequentadores mais fieis da chocolateria e de Roux, levado por ela. No ambiente delicado do jardim, juntos numa longa mesa, os convidados se deliciam com a fartura e o cardápio inusitado que combina carne de ave com molho de chocolate. A sobremesa é servida no acampamento dos ‘ciganos’, acompanhada de música e dança. De longe, ao ver o filho se divertindo com a avó, Caroline entende que poderá perde-lo e vai para casa lubrificar a bicicleta do menino, que ela o proibira de usar.

Cozinha da Chocolateria MayaA indignação do prefeito diante de tão ruidosa alegria e transgressão leva Serge a incendiar os barcos. Este ato de violência marca o limite (de civilidade?) entre os dois homens, causando a expulsão de Serge da cidade. Além do incêndio, a morte de Armande tem grande impacto sobre Vianne, que está prestes a desistir da festa que planejava realizar na Páscoa. Ouvindo o chamado do vento norte e sob os protestos de Anouk, ela arruma as malas para partir. O pote com as cinzas da mãe cai e se quebra. Desolada, ela ouve, então, o ruído de vozes vindo da cozinha da chocolateria. Por iniciativa de Josephine, lá estão as mulheres cujas vidas foram transformadas pelo chocolate, preparando as iguarias para a festa. Até mesmo Caroline!

Nessa mesma noite, ao ver pela janela de seu escritório Caroline saindo da chocolateria, o conde-prefeito se desespera. Invade a loja e com um abridor de cartas trava sua última batalha contra o chocolate, destruindo uma escultura de Afrodite, a deusa do amor e da sexualidade, que adornava a vitrine. Quando uma lasca de chocolate atinge sua boca e ele o toca com a ponta da língua, finalmente ele sucumbe e devora os pedaços, descontroladamente. Chora e ri até cair no sono, de pura exaustão.

No dia seguinte, domingo de Páscoa, Vianne e o jovem padre o resgatam da vitrine. Generosos, prometem manter segredo sobre o ocorrido, o que leva à mudança de atitude do prefeito. O padre pode, então, fazer o primeiro sermão realmente seu. Ao invés do costumeiro julgamento e promessas de punição ele fala aos fiéis sobre a humanidade de Cristo, sua bondade e tolerância, que considera os verdadeiros parâmetros para uma vida católica.  

O Festival de Páscoa, realizado na praça – o espaço mais simbólico de sociabilidade da cidade – marca a libertação de todos ‘de sua antiga tranquilidade supervisionada’, numa clara metáfora ao significado cristão de renascimento. Também Vianne se transforma. Ao decidir se fixar na cidade, ela joga as cinzas de sua mãe ao vento norte. Como observa Nei Clara de Lima (1996) sobre a Festa de Babette, as esferas opostas se encontram porque, de algum modo, puderam traduzir seus enunciados.

Chocolaterie MayaPara Anouk é também um momento de passagem, marcado pela partida de Pantoufle, o amigo imaginário, cuja perna, milagrosamente, curou-se. Outra metáfora da passagem é o retorno de Roux, supostamente para consertar a porta da chocolateria. Ele veio no verão, trazido ‘por uma nova brisa’ quando, finalmente, Vianne, sem usar seus dons divinatórios, descobre o chocolate preferido do ‘homem do rio’.


Referências:

GIARD, Luce. Cozinhar. In: A invenção do cotidiano 2 – morar, cozinhar / Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre Mayol. 9a edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

LIMA, Nei Clara. A festa de Babete: Consagração do corpo e embriaguez da alma.  Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 2, n. 4, jan/jun. 1996.

MINTZ, Sidney W. Comida e Antropologia. Uma breve revisão. RBCS, v. 16, n. 47, outubro/2001.


* Beatriz Muniz Freire é historiadora (UFF/RJ) e mestre em Educação (PUC/RJ). Trabalhou no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN do Rio Grande do Sul, coordenando a implementação da Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial.

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