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Hipermercados e uma pequena mercearia. Reflexões sobre o caso de Rimouski (Estado de Quebéc, Canadá)

Viver localmente, comer globalmente: super e hiper-mercados em Rimouski

Causa impressão às pessoas do hemisfério sul observar e conhecer a alimentação, a comida e os produtos agrícolas do hemisfério norte; chamam atenção, particularmente, as diferenças. Uma das primeiras constatações é a de que, no hemisfério norte aparentemente com maior intensidade do que no sul, o clima e as estações do ano interferem diretamente no cotidiano de aquisição alimentar. Segundo, é possível observar, no caso do Canadá, a presença de conjuntos de produtos e alimentos com diferentes procedências nacionais, regionais e, portanto, vindos de diversos ambientes naturais e sociais, formando um mosaico de alimentos de diferentes partes do mundo.

bananas.jpgPor exemplo, as grandes redes de supermercados (regionais ou transnacionais) existentes em uma cidade no leste do Canadá comercializam, mesmo no rigoroso inverno, entre outros: bananas e abacaxis da Costa Rica; morangos, pêssegos e uvas do Chile; pepinos do México; limões, mangas, tangerinas, tomates e laranjas dos Estados Unidos; kiwis da Itália… cenouras e maçãs, do Canadá. Dizer que o clima interfere na presença de produtos alimentares é dizer da circulação e do comércio macro-regional, mas é dizer também da condição em que são vendidas as frutas, como no caso das bananas, colocadas à venda nas prateleiras ainda na coloração verde, resultante de tratamento que retarda seu amadurecimento de modo a permitir um maior intervalo de tempo entre sua colheita e a oferta ao consumo. A maturação e o tempo de espera do melhor estado para ingerir as bananas apresentam-se ainda necessários, após a venda, prática diferente da observada em países em que as bananas são produzidas. Segundo afirma Bruno Jean, professor na área de Desenvolvimento Rural na Universidade de Quebéc, a banana é um típico exemplo de produção, circulação e consumo em uma cadeia agrícola industrializada.

Em Rimouski, uma cidade do Canadá com pouco mais de 40 mil habitantes, localizada na região do Baixo Rio São Lourenço, é possível observar e fotografar as redes de supermercados que vendem produtos originários de outras macro-zonas climáticas mundiais.

produtos_supermercado_1.jpgUma delas é o supermercado "Super C", que é uma das quatro grandes redes de supermercados daquele País. Embora seja possível dizer que nem todas as frutas e verduras comercializadas nos grandes mercados de Rimouski tenham origem em outros continentes – como a tangerina e a laranja, por exemplo, que são procedentes dos Estados Unidos -, o que caracteriza grande parte do setor hortifruti dessas redes é a longa distância entre a origem (produção) e o comprador final. Mesmo as frutas vindas da Califórnia devem percorrer aproximadamente 5 mil quilômetros até a região do Quebéc, em que se localiza Rimouski. O que essas grandes redes possibilitam a seus consumidores e clientes é justamente objeto de uma das críticas mais contundentes que faz o movimento ambientalista, em defesa do planejamento de um desenvolvimento sustentável:  a manutenção de um comércio não favorável à realização da "agricultura de proximidade". Em outras palavras, a persistência de um modelo diferente daquele que se denominou "comer localmente" deve-se, em grande parte, à existência das grandes redes que abastecem seus clientes com produtos que, para chegarem ao destino final, percorrem longas distâncias, consumindo recursos naturais finitos e escassos.

Nas grandes redes de supermercado, encontra-se a efetivação de alguns aspectos da globalização, que pode ser expressa pela oferta de diferentes produtos, originários de vários países e nações, o que possibita em parte, na pequena Rimouski, "viver localmente", mas "comer globalmente". O que talvez seja interessante problematizar é: a crítica ecologista ou sócio-ambiental ao sistema econômico-comercial mundializado, afirma: "pense globalmente, coma localmente". Contudo, tal reflexão e crítica devem ser efetuadas, apenas, às grandes redes de supermercados? Ou também aos pequenos armazéns, mercearias, quitandas, lojas e bancas?

 

O caso da mercearia "Mercado do Mundo"

marche_du_monde.jpgO nome é sugestivo. Quem observar também na cidade de Rimouski a pequena mercearia "Marché du Monde" (em português, "Mercado do Mundo"), somente encontrará produtos alimentares de origens outras, não canadenses: produtos asiáticos (como os chineses), africanos ou da latino-américa. A logomarca da loja é um planeta ao fundo, com dois coqueiros, dando sensação de tropicalidade, e o nome do estabelecimento entre as imagens das duas árvores. Além de diferentes tipos de feijão, pode-se ali comprar e consumir bebidas, alimentos e produtos variados, incluindo chuchu, que pode ser adquirido já embalado pelo valor de um dólar canadense a unidade (aproximadamente R$1,60). Há também chá "gaúcho", procedente da Argentina, assim como a erva-mate vinda do mesmo País e pequeninas cuias, essas com valores superiores a dez dólares canadense (aproximadamente R$18,00).

O proprietário (JB) fundou a loja em 15 de outubro de 2007. Nascido na Costa do Marfim, ele veio à cidade de Rimouski realizar seus estudos no ensino médio, quando a guerra civil em seu País dificultou seu retorno. JB começou a perceber que, asssim como ele, outras pessoas vindas de outros países sentiam falta de produtos da terra natal e que ele poderia fazer comércio trazendo o que essas pessoas solicitassem. Foi o que fez. Abriu a mercearia, inicialmente com poucos produtos, e a partir das demandas e pedidos dos consumidores, passou a buscar os produtos junto a empresas importadoras especializadas. Assim ele diz trabalhar até hoje: da demanda de seus clientes, ele faz pedido a seus fornecedores. Quando algum cliente pede, por exemplo, um refrigerante guaraná, vindo do Brasil: "eu pego a encomenda e compro das empresas de importação", afirma o comerciante. É claro que ao longo do tempo, ele já mantém um estoque e pronta-entrega. Os produtos vendidos em sua loja não são encontrados nas grandes redes de supermercado, são produtos específicos e, às vezes disponíveis em pequenas quantidades, que os imigrantes demandam ou os próprios canadenses que, após conhecerem aspectos alimentares de outros países, acabam fazendo pedidos de comidas de lugares aonde foram. JB diz que metade de seus clientes são canadenses e metade são estrangeiros, dos mais diversos lugares do mundo. Entre os estrangeiros, predominam os colombianos, que costumam vir para o Canadá como imigrantes em famílias, diferentemente dos migrantes temporários (quase maior parte estudantes) de outros países, que vêm sozinhos.     

produtos_marche_du_monde.jpgÉ claro que a comercialização de inúmeros produtos longínquos, vindos de ambientes variados, não é realizada da mesma maneira pelos hipermercados e pequenas mercearias ou bancas. O primeiro busca atingir o maior número de clientes, massificar ao máximo a mercadoria e ampliar a venda, o segundo tende a oferecer aos imigrantes, descendentes ou pessoas ligadas a determinadas culturas alguns produtos e alimentos, atuando "na brecha" da grande rede, oferecendo o que o grande mercado não oferece. Enquanto a merceraria tende a comercializar para "os nativos" produtos de seu país e para aqueles apreciadores e que encaram como exótico e diferentes os produtos não-canadenses, as grandes redes de supermercados tendem a comercializar os produtos fora da estação ou que não são viáveis nesse clima do hemisfério norte. Talvez, as diferenças e semelhanças entre as pequenas mercearias e as grandes redes de mercado não sejam apenas nas escalas (de quantidade) em que importam alimentos de todo mundo, mas são diferentes os consumidores, com intenções de satisfazer demandas diferentes. Contudo, a lógica de transporte e chegada de produtos que percorrem milhares de quilômetros é a mesma. Ou seja, a realização de uma agricultura e de um abastecimento alimentar que não é de proximidade, embora possa ser de afetividade.  

 Se a agricultura de proximidade tem sido apontada como alternativa viável ao abastecimento e acesso alimentar com menor degradação ambiental e melhor desempenho da gestão dos recursos – pois privilegia satisfatoriamente os produtos locais, evita deslocamentos e transporte de longas distâncias (consumindo menos combustível fóssil), diminuindo os riscos e sensações de insegurança alimentar -, por outro lado ela implica em abrir mão de trocas comerciais e culturais no que se refere ao plano alimentar. Fazer uma opcão pela agricultura de proximidade também significa aceitar apenas os produtos em que o clima e o ambiente tornem favorável a produção e, talvez, reduzir as possibilidades do cardápio das comidas, inclusive, com uma ampliação de monotonia alimentar, principalmente para as regiões de clima temperado e invernos longos, como é o caso do Canadá.

marche_du_monde_1.jpgDo ponto de vista cultural, talvez seja necessário compreender a importância para a identidade de quem se encontra em situação de diáspora e migração, quando em uma mercearia como o "Mercado do Mundo" encontra os produtos de sua cultura, de sua terra. Mas é preciso dizer que a distância percorrida pelos produtos, que são mercadorias, torna-os de algum modo semelhantes aos vendidos no "atacado" pelas grandes redes. Como entendeu e exemplificou o geógrafo brasileiro Milton Santos, em se tratando da forma como comemos, a maneira como guardamos e estocamos nossas comidas e a mundialização mercantil e tecnológica tornam a relação entre o global e o local íntima, entre a economia-mundo e a alimentação-doméstica, entre o que comemos, como esta comida é transportada e aquecida em nossas cozinhas, tendo o congelador doméstico, por exemplo, um papel importante nessa dinâmica:

Lembremos, por exemplo, a relação entre os elementos da cadeia do frio, hoje tão essencial ao cotidiano de boa parte da humanidade. Há uma relação necessária, entre a geladeira e o freezer domésticos, o caminhão refrigerado, os depósitos frios nos comércios e os grandes frigoríficos e fábricas. Trata-se de um todo cujos elementos apenas são viáveis em conjunto (SANTOS, 2008, p.71).

No mesmo processo de definição e busca do comer localmente e da realização de uma agricultura de proximidade, deve-se levar em conta quais produtos são realmente locais. Ao realizarem-se análises desse tipo, levando-se em conta fatores ambientais, históricos e culturais, é perceptível que o tempo presente é também momento de intenso hibridismo alimentar entre regiões do mundo, algumas produzem e vendem mais (ofertam), outras compram e consomem mais (recebem). E é de relações como essas, entre os hemisférios sul e norte, que nesse último encontram-se produtos tropicais, mesmo em um inverno marcado por ondas de frio e tempestades de neve… compram-se e comem-se produtos colhidos em um verão distante.

Referências

HODGE, Helena Norberg; MERRIFIELD, Tood; GORELICK, Stven. Manger local: un choix écologique et économique. Montréal: Les Editions Écosociété, 2005.

JEAN, Bruno; DIONNE, Stève; DESROSIERS, Lawrence. Comprendre le Quebéc rural. Rimouski: Chaire de recherche du Canada en développement rural, Université du Québec à Rimouski-UQAR, GRIDEQ, 2009.  

SANTOS, Milton. A natureza do espaco: técnica e tempo, razão e emoção. 4ªed. São Paulo: Ed. USP, 2008.  


* André Souza Martinello   é licenciado em Geografia. Historiador e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS), atualmente está realizando estágio na Universidade de Quebéc (UQAR), em Rimouski.

 


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