Estima-se que, no período compreendido entre 1870 e 1970, cerca de 26 milhões de italianos deixaram sua terra em busca de melhores condições e oportunidades de vida. Desses, 1,5 milhão veio para o Brasil.
Os fluxos migratórios da Itália para os diversos países que receberam italianos ao longo desse período foram estabelecidos por redes sociais, construídas entre regiões da Itália e alguns destinos. Assim, observa-se a preferência dos imigrantes em se dirigirem a locais onde já estavam estabelecidos conterrâneos seus. Dessa forma, temos que o fluxo migratório para o Brasil foi, em grande parte, originário da região do Vêneto.
Ao emigrarem, os italianos levavam na bagagem sua cultura: costumes, hábitos alimentares, modos de ver a vida, língua, entre outros. Ao chegarem a seus destinos, tentavam reproduzir sua cultura, dando origem a adaptações e novas significações de antigos hábitos. No Brasil, em novas condições de vida, novos elementos foram introduzidos às práticas dos imigrantes italianos, assim como eles imprimiram suas marcas na cultura local. Atualmente, percebemos a força da imigração italiana nas culturas regionais.
Entre os italianos que migraram para o Brasil, a polenta destaca-se como alimento característico de grupos familiares provenientes de regiões rurais do Vêneto. A polenta manteve-se como alimento de base entre colonos descendentes de imigrantes da região Sul do Brasil.
Feita a partir de farinha de milho (originário das Américas), a polenta permaneceu como alimento cotidiano das famílias camponesas de origem italiana. A receita básica de polenta utiliza fubá, água e sal, sendo consumida cozida, na chapa ou frita.
A cozinha do imigrante italiano originário do Vêneto era, portanto, baseada na polenta, consumida diariamente e acompanhada por outros alimentos produzidos pela própria família. A localização das colônias italianas no Rio Grande do Sul, bem como sua organização social e as dificuldades de transporte, configuravam sua cozinha como sendo basicamente de subsistência, ou seja: comia-se o que era produzido.
Durante minha pesquisa, realizada junto a um determinado grupo familiar de descendentes de imigrantes italianos, percebi, nas falas dos familiares de diferentes gerações, o lugar central ocupado pela polenta, não só entre os mais antigos, mas também nas novas gerações. Mas o valor atribuído a esse alimento é diferente para cada geração.
Para entender a variação do valor da polenta, primeiro precisamos entender os elementos que influenciaram essa mudança. Em minha análise, percebi essa alteração de significado em três momentos. Ainda, é importante ter presente que as mudanças de significado da polenta ao longo das gerações não ocorrem em substituição ao significado anterior, mas sim adicionando novos conceitos aos já antigos, que passam a compor um novo cenário, conjugado com o anterior.
Assim, como vimos anteriormente, num primeiro momento a polenta vem da Itália para o interior do Rio Grande do Sul e permanece na mesa do imigrante italiano como alimento de base, que dá força para o trabalho diário na lavoura. Para essa primeira geração, a subsistência é a principal característica, assim como as relações próximas com vizinhos e familiares. Aqui a polenta é um alimento cotidiano, forte.
O segundo momento é marcado pela saída da geração seguinte das pequenas colônias em direção a outros locais, onde havia possibilidade de maiores áreas de terras por menores preços. Na família analisada, isso ocorreu com a ida a estados mais ao norte do País, como o Mato Grosso, na década de 1970. A saída das colônias colocou esses descendentes de imigrantes em novos contextos étnicos, políticos e sociais.
Esse contato provocou também alterações na culinária familiar. Além disso, esse segundo momento é também marcado pela aproximação entre campo e cidade, bem como pela desvalorização (relativa) dos produtos do campo pelos da cidade. Nesse segundo momento, a polenta deixa de ser alimento cotidiano, dando lugar ao arroz e feijão.
O terceiro momento pode ser descrito como uma crise originária do segundo. A partir de um quadro de insegurança alimentar, inicia-se uma revalorização do campo e de seus produtos, que passam a ser vistos como uma saída para a crise alimentar instaurada, gerando algo como uma busca pelas origens entre muitas famílias de raízes camponesas e imigrantes. Isso pude observar na família pesquisada, sendo fácil perceber o novo lugar que a polenta passou a ocupar na dinâmica familiar: a de um alimento que remete às origens da família, que liga e participa da história familiar inteira.
* Júlia Dalla Costa é antropóloga. A pesquisa relatada aqui foi realizada no processo de elaboração de sua monografia de conclusão de curso de graduação em Antropologia, pela Universidade de Brasília. A família cuja trajetória desde a vinda da Itália foi pesquisada é sua própria família, os Dalla Costa.
* Nota da Editora da Coluna Alimentação e Cultura: no Rio Grande do Sul, desde 2001, a cada 20 de maio comemora-se oficialmente o Dia da Etnia Italiana. A data é referência aos primeiros imigrantes que, em 1875, chegaram ao Estado, vindos do Vêneto. Em muitas localidades em que atualmente vivem os descendentes dos imigrantes italianos, neste dia são realizadas festas, em que são lembrados os antigos costumes. Como uma forma de homenagear a todos esses colonos e estimular o cultivo de suas tradições – especialmente as culinárias -, mantidas por essas famílias rurais, fazemos aqui menção ao Filó Comunitário do Jacarezinho. A festa realiza-se a cada ano, no 20 de maio, no Jacarezinho, comunidade rural situada no município de Encantado, Vale do Taquari, Rio Grande do Sul.
Naquela noite, em lembrança à prática dos filós – que era comum nas comunidades rurais constituídas por agricultores de origem italiana -, cada família traz alimentos e bebidas, que são compartilhados com todos os participantes. As tradições italianas são também revividas na celebração do culto e a partir de cantos, danças, encenações, jogos, vestimentas e objetos que buscam resgatar os costumes da época em que os filós faziam parte do cotidiano daquela gente. Tudo isso, claro, acompanhado do bom vinho e de muita polenta!