A comida fala

A temática aqui trazida contempla muito da riqueza de reflexões experienciadas a partir da disciplina de Antropologia da Alimentação, ministrada em 2021, conjuntamente no curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no curso de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. Isso se manifesta na própria distinção entre alimento e comida, trazida por DaMatta (1987), na perspectiva do alimento como algo universal, geral, enquanto a comida, por sua vez, “[…] manifesta especificidades, estabelece identidades”, relacionando-se diretamente à cultura, conforme destacam Amon e Menasche (2008, p. 15).

No dia a dia, manifestamos esses usos de modo espontâneo. Ao elogiarmos um prato saboroso, por exemplo, não diríamos “que alimento gostoso”, mas sim, “que comida gostosa”. Nesse sentido, na perspectiva de Ellen Woortmann (2013), “[…] para que o alimento se torne comida, ele deve, via de regra, sofrer um processo de transformação qualitativo, realizando a passagem do plano da natureza para o da cultura, mediado pela via da culinária”. Compreende-se, desse modo, por que o termo “comida” é tão mais usualmente utilizado nos estudos antropológicos, do que o “alimento”. Curiosamente, a comida está inserida de forma tão intrínseca em nossa vida, que muitas vezes não lhe damos o devido espaço de reflexão, de modo a explicitar seu significado simbólico.

Engenho de Arroz da Cooperativa dos Assentados de Tapes

A partir da análise de Woortmann (2013), destaca-se a estreita relação que há, especialmente no Brasil, entre a percepção da comida e do corpo, construindo-se, a partir dela, representações das relações sociais. Como destaca a autora, para os brasileiros, comer é um ato social e não privado e há, ainda, significativas diferenças entre o comer cotidiano e o cerimonial e entre o comer em família, em casa, ou em público. Para cada situação, expressam-se, na comida e no comer, diferentes linguagens, culturalmente construídas. Na perspectiva de Bourdieu (1983), trata-se do habitus, que consiste num saber social incorporado, que ocorre num duplo sentido, da sociedade para a pessoa, mas também desta para a sociedade. Na visão de Woortmann (2013), ainda que se trate da influência de padrões alimentares ditados pela mídia, pode haver uma reversão quando um grupo, por exemplo, traz novos elementos ao debate, que persistem no tempo. Entende-se, desse modo, que há um processo dialógico.

A partir de temática referente às tensões entre inovação e tradição na alimentação, a convite da professora Renata Menasche, a pesquisadora Ellen Woortmann palestrou, em 12 de novembro de 2021, em uma aula da disciplina. Segundo a discussão proposta, no que diz respeito à comida, o novo vem acompanhado de uma linguagem e de uma forma de falar que traz o exótico como algo sofisticado, que valoriza quem apresenta determinada comida, e também como forma de homenagear a pessoa que está sendo recebida. Em contrapartida, o tradicional mantém seu espaço como uma representação do dia a dia e da memória afetiva que, inclusive, vem renovando seu valor, diante de espaços cada vez mais homogeneizados, nos mais diferentes níveis. Dentre exemplos de situações festivas, a autora cita algumas que reúnem inúmeros descendentes de ancestrais comuns, eventos que, via de regra, servem comidas tradicionais, evocando e combinando, simultaneamente, a reunião da memória familiar com a memória gastronômica.

A autora apresentou, ainda, vários exemplos de comidas populares que são elaboradas a partir de uma agregação, como a feijoada, a paella, o fondue,  pratos que, ainda que tenham sido muitas vezes gourmetizados, trazem origem simples e marcada por simbolismo, uma vez que supõem a presença de mais pessoas e, tradicionalmente, são constituídos a partir de ingredientes vindos de diferentes contextos e famílias, que se reúnem, como narra Woortmann, para consumir algo que é quente física e socialmente – dentre os elementos de coordenação, o próprio fogo é agregador. Nesses encontros, as pessoas reunidas compartilham identidades e, de forma afetiva, cada um traz sua contribuição para partilhar o que cultivou, produziu, e será consumido, após o processo de transformação, sob a forma de comida. Nas palavras ditas pela autora, “trata-se de um processo produtivo e reprodutivo”.

Nesse quadro, remeto-me a uma das temáticas que abordei em minha dissertação, elaborada a partir de entrevistas no assentamento de Reforma Agrária Lagoa do Junco, vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), situado em Tapes, Rio Grande do Sul. Na pesquisa, um dos núcleos temáticos mais destacados no mapa de significações construído trata do que chamei de “Diálogo da Produção: Mercado Alternativo ao Agronegócio e à Bancada Ruralista – Agricultura Familiar”. Esse núcleo abordou o caminho que vem sendo trilhado pelos(as) assentados(as) na busca de alternativas de produção que incluam os(as) trabalhadores(as) e suas famílias e que valorizem e resgatem os diferentes saberes das populações do campo. A partir das falas desses(as) atores(as), explicitou-se o quão difícil foi o início no assentamento.  Como relatam, os comerciantes até fechavam as portas quando eles(as) chegavam na área urbana do município.

Panificio da Cooperativa dos Assentados

O preconceito e a rejeição por parte da população somente foram vencidos a partir do momento em que eles(as), após toda uma necessária adaptação dos cultivos que mantinham em suas regiões, conseguiram iniciar a produção, e passaram a sistematicamente apresentar alimentos nos bairros, passando de carroça, fazendo feiras, enfim, vendendo e partilhando o fruto de seu trabalho. De uma forma muito viva, eles(as) resgatam essas memórias, contando que foi a partir dessas interações que de fato iniciou-se um processo de construção de sociabilidade entre os(as) assentados(as) e os tapenses, no espaço vivido e compartilhado.

Ainda no que tange à adaptação dos(as) assentados(as), cabe mencionar que foram precisos ajustes em relação aos cultivos com os quais estavam habituados (antes feijão e milho, passando a cultivar arroz) e, na sequência, à conversão para um modelo de cultivo orgânico – do qual, aliás, muito se orgulham. Nesse sentido, percebe-se a afinidade em relação à abordagem de Woortmann (2009) que, ao referir-se ao saber camponês e a suas práticas, considera que “O trabalho do homem implica respeito para com a terra (e a natureza em geral) esperando dela aquilo que ‘ela pode e quer dar’, em especial os alimentos que é capaz de produzir. O homem não deve forçar a terra a dar aquilo que não é de sua vocação […]”. Esse respeito à terra mostrou-se de forma bem marcada em vários momentos na pesquisa junto ao Assentamento Lagoa do Junco.

De modo mais amplo, quando se aborda a questão da alimentação, é interessante refletir sobre processos e confluências. Na pesquisa que apresento, relacionada à produção e ao alimento oferecido, identificou-se que o compartilhamento de saberes manifestado pelos(as) assentados(as) possibilitou evolução nas suas práticas e melhor compreensão das suas dinâmicas e interações, além de auxiliar na redução de riscos nas experimentações que aplicam a seus cultivos. Ainda, assentados(as) integrantes de cooperativas destacaram haver muitas trocas – de favores, serviços, produtos –, no intercâmbio de suas produções com a população da cidade.

Assim também ocorre com a comida, cuja preparação traz todo um ritual formado a partir de saberes que foram se complementando e evoluindo, inclusive no sentido de minimizar riscos à saúde a partir de seu consumo, sem deixar de enriquecer tal arte com experimentações. As trocas de experiência, de ingredientes, de fazeres intercambiáveis a partir da comida e de sua confecção tornam esse processo rico e vivo. Retomando Woortmann, a alimentação transita em diferentes esferas da vida social, construindo relações.

Ao rememorar a pesquisa de campo que realizei na dissertação, senti-me muito gratificada, dentre tantas contribuições que os(as) assentados(as) me brindaram, por um momento de partilha que vivenciei a partir da comida. Tive bastante dificuldade em estabelecer uma aproximação com os(as) assentados(as) para realizar a pesquisa, pois não conhecia essa população, tinha tempo limitado para o campo e identifiquei que eles(as) buscam manter certo distanciamento de pessoas estranhas, até por todo o contexto adverso que viveram, e ainda vivem, em diversos outros campos da luta camponesa para seguirem existindo.

Sede e Secretaria do Assentamento Lagoa do Junco

Mas, após realizar as entrevistas, buscando sempre uma aproximação, recebi um convite para almoçar na casa de uma interlocutora, que em meu texto chamei de Rosa. Foi um momento muito simbólico para mim, pois nesse dia tive que levar junto meu filho pequeno e sua prima, e acabamos todos almoçando com a família de Rosa. Ela me mostrou sua horta, o cuidado e a persistência necessários para produzir com as próprias mãos e poucas ferramentas o alimento que os nutre. Depois, com muita habilidade, ela preparou os alimentos colhidos ainda fresquinhos, confidenciando segredos culinários. Quando nos referimos a ritos, confesso que foi um momento que me emocionou, pois significou, para mim, a passagem de minha condição de estranha a alguém que merecia partilhar de um evento que, embora diário, é tão especial e valorizado por essas pessoas que vivem da terra, dela tiram seu sustento e sabem honrá-la. Nada mais significativo para explicitar que “a comida fala”.


Referências

AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 13-21, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renata (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. [p.82-121]

DA MATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, p. 22-23, 1987.

WOORTMANN, Ellen F. A comida como linguagem. Habitus, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 5-17, 2013.

WOORTMANN, Ellen F. O saber camponês: práticas ecológicas tradicionais e inovações. In: Diversidade do campesinato: expressões e categorias, v.2: estratégias de reprodução social. Emilia Pietrafesa de Godoi, Marilda Aparecida de Menezes, Rosa Acevedo Marin (Orgs.) – São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.


Naiara Machado da Silva ([email protected]) é doutoranda em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS

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