O vinho é uma bebida com cerca de sete milênios de existência. Sua produção e consumo se expandiram progressivamente ao redor do mundo, da bacia do Mediterrâneo até territórios bem distantes. Seja concebido a partir de seu caráter simbólico em rituais religiosos, como um item alimentar ou combustível para o trabalho braçal, seja associado à saúde ou ao prazer, o consumo de vinho também adquiriu significados diversos ao longo do tempo. Sua função social remonta à Antiguidade. No caso dos gregos, o vinho era item essencial quando se reuniam para discutir assuntos variados em um symposion, palavra cujo significado é “bebendo juntos”.
Dos gregos é também originado o termo Koinonia,traduzido como “comunhão”. Desde tempos remotos, a comunhão em torno do vinho vem acompanhando distintas transformações sociais e culturais e motivando inúmeros debates, que hoje incluem questões cada vez mais presentes, como as associadas às problemáticas ambientais. É o que se pode observar na Feira Slow Wine, que ocorreu na cidade de Bolonha (Itália), entre os dias 27 e 29 de março de 2022. O evento reuniu enólogos, entusiastas e os mais diversos profissionais do universo vitivinícola, signatários do Manifesto Slow Food pelo vinho bom, limpo e justo e integrantes da Aliança internacional Slow Wine – rede constituída em torno do universo vitivinícola, ancorada nos valores do Slow Food relacionados à proteção do território, seus ecossistemas e indivíduos.
A feira foi configurada como um grande espaço expositivo e de degustação de vinhos biológicos, biodinâmicos, naturais, veganos, originários de diferentes regiões do mundo, incluindo territórios renomados da Itália, como Toscana, Piemonte, Sicília, Trentino Alto Adige, Vêneto, e os igualmente celebrados Champagne (França) e Douro (Portugal). Essa primeira edição do evento promoveu também diversos debates, tendo o cultivo da uva e a produção de vinho status de protagonistas para o desenvolvimento de agriculturas mais sustentáveis e condizentes com os desafios de contornar as crescentes mudanças climáticas.
Associados à degradação ambiental, problemas decorrentes do aquecimento global vêm exigindo a adoção de medidas urgentes a fim de reduzir emissões de carbono. O aumento da frequência e da intensidade de ondas de calor em regiões diversas do mundo tem sido um dos sinais mais evidentes desse aquecimento. No mês de março de 2022, a Antártica registrou recorde absoluto de temperatura, chegando a valores entre 30 e 40º acima do normal. Relatórios recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) têm mostrado a intensificação dessas mudanças, a irreversibilidade de alguns processos relacionados a elas e o papel da ação humana nesse sentido.
As mudanças climáticas também vêm gerando impactos profundos na vitivinicultura. Nos últimos anos, áreas vitivinícolas reconhecidas mundialmente vêm sofrendo com geadas, granizo, calor extremo, proliferação de fungos e também com incêndios devastadores, como os ocorridos em França, Estados Unidos, Austrália e Chile. A frequência e intensidade desses fenômenos, além do desfiguramento de paisagens, têm colocado em evidência a insustentabilidade do sistema agrícola vigente.
Não é novidade que grande parte da viticultura ao redor do mundo vem seguindo o modelo de uma agricultura predominantemente predatória, voltada para a produção massiva, baseada na monocultura, no uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos. Além do comprometimento das águas, dos solos e do ambiente, esse modelo de produção vem colocando cada vez mais em xeque a biodiversidade da flora e da fauna e também a saúde humana, tanto de trabalhadores quanto de consumidores.
O debate em torno dessas problemáticas mostra, ainda, que não basta o desenvolvimento de novas tecnologias restritas à adaptação a um cenário ambiental progressivamente demarcado por eventos extremos. É também necessário resgatar relações mais harmônicas com o ambiente, o que, no contexto de produção de vinhos, significa a reconfiguração de práticas vitivinícolas objetivando-se mitigar os impactos ambientais crescentes. Já é possível observar, em diversos territórios ao redor do mundo, muitos empreendimentos seguindo nessa direção, indicando que os atributos de um “vinho bom” não se resumem a suas propriedades organolépticas, mas envolvem também o modo como a bebida é produzida.
No caso do Brasil, o fato de o país não possuir grande expressividade na produção de vinhos – e tampouco em termos de seu consumo – quando comparado a outros países com tradição vitivinícola instaurada há mais tempo, não anula a necessidade de repensar o modelo de produção da bebida e seus impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos. Tampouco significa que inexistam iniciativas para a produção de vinhos a partir de perspectivas condizentes com a necessidade de minimizar tais impactos. Um exemplo disso pode ser visto na Feira Naturebas, que, em junho de 2022, terá sua décima edição. A Feira reúne anualmente, na cidade de São Paulo, produtores de vinhos de diferentes regiões do Brasil e do exterior, alinhados com uma proposta mais ecológica e saudável.
No Brasil, essa modalidade de produção vitivinícola também foi explorada em uma das conferências virtuais que antecederam a feira Slow Wine. Marina Santos, vinicultora e proprietária da Vinha Unna, vinícola situada no município de Pinto Bandeira (RS) e voltada à produção de vinhos biodinâmicos, integrou – com palestrantes de Itália e França – a mesa de debates sobre mudanças climáticas e seu impacto crescente na vitivinicultura. A discussão ressaltou a grande preocupação com os recorrentes eventos extremos, como as altas temperaturas, chuvas intensas, granizos, geadas, profileração de insetos que atacam as vinhas, apontando para um cenário que tem sido demarcado por incertezas. Na ótica de Marina Santos, o futuro da vitivinicultura depende fundamentalmente de um comprometimento com a biodiversidade.
Considerando o contexto vitivinícola do Brasil, iniciativas de viés mais sustentável e sua persistência em um cenário de adversidades crescentes devem ser valorizadas e encorajadas. O desafio de constituir, no país, um panorama vitivinícola que priorize maior equilíbrio, sobretudo do ponto de vista social, ambiental, cultural e econômico, mais que os bons auspícios de Baco ou Dionísio e a determinação de alguns produtores, necessita de um compromisso com esse propósito em uma esfera mais ampla.
* Carla Pires Vieira da Rocha é Doutora em Ciências Humanas, pesquisadora na área de Alimentação e Vitivinicultura, pós-doutoranda da Universidade Federal de Santa Catarina, vinculada ao Laborátório de História Ambiental (LABINHA/UFSC) a partir do projeto: Da terra à mesa: uma história ambiental da vitivinicultura nas Américas, coordenado pela Profa. Dra. Eunice Nodari.