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Bem-estar animal (e humano), e o que está por trás da indústria patronal da carne

Ao passo em que a indústria convencional da carne segue como foco de denúncias e causadora de externalidades graves, iniciativas que valorizam o bem-estar animal e o consumo consciente trazem um novo olhar para o sistema alimentar 

Arte: Denise Matsumoto

São muitos os aspectos simbólicos e culturais por trás do consumo da carne ao longo da história, mas é evidente que, nas últimas décadas, o crescimento desenfreado da sua produção trouxe consequências devastadoras à saúde do homem e do planeta. É o que comprovam denúncias e escândalos envolvendo essa ponta da cadeia, e que dizem não apenas respeito às condições de confinamento animal e à qualidade da carne produzida, mas também aos aspectos sociais e políticos envolvidos em uma indústria de dimensão monumental. 

Recentemente, com a disseminação do novo coronavírus pelo mundo, a situação de insustentabilidade dessa ponta da cadeia ficou ainda mais evidente, uma vez que se comprovou nas últimas décadas que o surgimento de pandemias está intimamente ligado a uma série de pilares em que se baseiam esse sistema produtivo. 

Animais confinados, aglomerados, mutilados, padronizados e suscetíveis a toda sorte de doenças — e por consequência sujeitos a uma série de antibióticos e remédios para barrar o aparecimento de possíveis enfermidades —, antes mesmo de virar alimento, já são a receita perfeita para a disseminação de novos agentes patógenos. Ou uma “bomba relógio”, como disse o veterinário Pedro Xavier da Silva, ativista Slow Food e membro do Grupo de Trabalho (GT) Slow Meat.

Antes de se tornar ativista, entretanto, o veterinário trabalhou em frigoríficos de Santa Catarina, estado que leva o segundo lugar no número de plantas de criação de aves e suínos no Brasil. “No início da formação, a gente foi orientado para não pensar aquele frango como uma unidade animal, mas víamos o lote como uma vida. A gente pensava em grandes protocolos de vacinação, grandes medidas sanitárias de confinamento. Se busca um padrão de lote em um frigorífico, ele não vai querer receber animais com lotes diferentes. Vai desregular a máquina, vai afetar as embalagens dos pedaços de carne”, rememora. 

Isso porque, para além das situações de estresse e tensão que os animais perpassam ao longo da curta vida confinada, e que também podem afetar seu sistema imunológico, a padronização genética dos espécimes que serão abatidos por essa indústria culmina na formação de um rebanho uniforme e, portanto, conjuntamente mais vulnerável ao desenvolvimento de possíveis patologias. E por consequência, mais propensas estão as pessoas que trabalham nesses espaços.

Pois tão degradante quanto a vida dos animais em confinamento é a dos funcionários da indústria da carne. “Densidade humana enorme, frio, [trabalhadores] em pé, circulação de ar baixíssima, excesso de luz artificial. Essa é a vida dentro de um frigorífico. Um negócio fechado, cheio de gente, populoso”, lembra Pedro. Às condições de trabalho insalubres, soma-se o trabalho ininterrupto, “E não pode parar, o que mais impacta no rolo todo. A justificativa vai pro lado do abastecimento, porque ‘precisa alimentar o mundo’. Mas se ficar um turno sem funcionar deixa de ser viável economicamente.” 

24 horas por dia, três turnos de trabalho, muitos funcionários circulando e mais uma vez o espaço do frigorífico se consolida como um prato cheio para o surgimento de doenças, bem como para a dispersão de seus agentes causadores. No caso da Covid-19, uma reportagem recente de O Joio e O Trigo mostrou que cidades brasileiras que contam com frigoríficos de inspeção federal são campeãs em casos confirmados de contaminação, ainda que proprietários insistam em esconder esses dados.

Leia: Os dados inéditos sobre Covid-19 em frigoríficos de pequenos municípios, d’O Joio e O Trigo

“Surge um discurso de que a culpa é dos trabalhadores, de que não são as empresas que estão escondendo dados, de que os funcionários estão se recusando a usar máscaras. Isso coloca um enorme desafio do ponto de vista da informação, que mostra que vai ser muito difícil fazer essa discussão por dentro das estruturas tradicionais do poder econômico, porque o jornalismo é uma estrutura corporativa como outras”, aponta o jornalista João Peres, um dos fundadores do Joio, veículo especializado em jornalismo investigativo em alimentação.

Segundo ele, a pandemia está ajudando a evidenciar o aspecto limitador do jornalismo tradicional em entender as estruturas, ficando na superfície e não se aprofundando nas causas e consequências da manutenção do sistema produtivo atual por conta do “rabo preso”, com o perdão do trocadilho, com determinadas corporações. 

“O agravante mais evidente da Covid são as doenças crônicas, estratégias corporativas voltadas a aumentar o consumo de cigarro, álcool e ultraprocessados. Os nossos hábitos foram transformados nas últimas décadas e agora temos esses problemas. Uma pandemia dentro de outra pandemia, e as causas das primeiras pandemias de doenças crônicas não são expostas por questões econômicas”, explora João. 

Isso sem falar nas apropriações constantes da indústria da carne, que ao longo dos últimos anos vem se empenhando cada vez mais em produzir “carne artesanal” e “carne vegetal” — essa última fruto da mesma soja que, junto com a pecuária, avança nas fronteiras agrícolas para servir de ração para os mesmos animais confinados, destruindo biomas, a biodiversidade silvestre, comunidades e modos de vida, e arrastando com ela uma série de outras externalidades negativas. “Quando as marcas grandes passam a se apropriar, junta fome com vontade de comer, porque a pessoa quer voltar às origens, mas quer a garantia de um alimento padronizado”, fala João Peres sobre a produção da carne dita artesanal pela indústria dominante.

É preciso transparência, como falou e repetiu Pedro Xavier em entrevista a essa reportagem e durante a live organizada pelo projeto Tecendo Redes, “Transparência nas cadeias, nas condutas, nas transações e nas práticas que fazem com que aquela carne chegue até você, divulgando alternativas ao mainstream, ao hegemônico.” 

Dentro do GT Slow Meat, criado em 2018, ele e outros pesquisadores, produtores e cozinheiros exploram a diminuição do consumo da carne, a produção de uma carne de melhor qualidade e, sobretudo, a proteção e a valorização das tradições e saberes populares, como lembra o chef de cozinha baiano Caco Marinho, integrante da Aliança de Cozinheiros Slow Food e um dos idealizadores do grupo de trabalho. 

“Há o viés ético da questão da vida animal, do sofrimento e da morte desnecessária, mas há também a preocupação com as consequências da produção extensiva para a saúde humana e para o meio ambiente. O bem-estar não faz parte dos manuais de produção em larga escala”, pontua o chef que apoia produtores locais e artesanais, como as cooperativas de criadores de caprinos e ovinos do sertão da Bahia, os produtores da carne de fumeiro do Recôncavo Baiano (notadamente, do município de Maragojipe) e os extrativistas de manejo sustentável de peixes e mariscos da Ilha de Itaparica e Vera Cruz/BA.

Como bem lembra Caco, as questões ambientais envolvendo a produção massiva de produtos cárneos são também devastadoras. Para além dos aspectos sociais, psicológicos e de saúde animal e humana que envolvem as rotinas dos frigoríficos, o modelo produtivo agronegocial é responsável por práticas como: desmatamento de biomas, expulsão de comunidades e povos tradicionais do campo, poluição dos recursos naturais necessários à produção agrícola, extinção de espécies nativas, entre outras consequências graves.

Por outro lado, a priorização das cadeias curtas e justas de produção é uma das bases do movimento Slow Food e se torna também pilar fundamental para pensar o bem-estar animal e o consumo de carne dentro do GT Slow Meat. “A partir do momento que já vemos a possibilidade de uma carne e produção animal boa, limpa e justa, identificamos alguns produtores rurais, de produções de bases comunitárias, com raças nativas, e que identificam potenciais dentro de ambientes tomados pela agroindústria e enxergam a transição agroecológica nesses lugares. É possível — num país dominado por esse modelo agronegocial, de grande escala, padronização e oligopólios — enxergar que existem alternativas”, coloca Pedro.

Do ponto de vista do jornalismo, Peres também lembra, é necessário “expor um sistema alimentar hegemônico cheio de problemas, e mostrar sistemas alimentares possíveis e necessários. É mostrar que existem alternativas, por quê elas são melhores e por quê já foram dominantes”.  

Charcutaria no sertão de Pernambuco 

Em Taquaritinga do Norte, a quase 200 km da capital Recife, a produtora rural e integrante do Slow Food Recife, Tatiana Peebles, cria porcos de acordo com os princípios do bem-estar animal, além de produzir café, mel, frutas e verduras em um sistema de agricultura regenerativa, termo cunhado pelo norte-americano Robert Dale, que denomina uma produção agrícola sustentável aliada à recuperação do solo. “Praticamos a policultura diversa, que é uma tradição antiga local. Já veio assim o pacote (risos). Nossa meta é manter essa mata e plantar. São duas sementeiras grandes, temos o carinho de colher sementes de tudo, de madeira de lei, de café. Vamos plantando e replantando”, comenta Tatiana.

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Foto: Tatiana Peebles

Desde 1978, a família Peebles produz alimentos na propriedade rural conhecida como Yaguara Ecológico, no sertão do estado de Pernambuco, mas foi em 2005 que Tatiana passou a desenvolver os produtos de charcutaria suína. No começo, ela distribuía os produtos para os chefs e cozinheiros experimentarem, em cafés, restaurantes, hotéis e eventos. Aos poucos, o negócio foi crescendo e, com ele, a valorização dos produtos artesanais de suínos criados livres não só por esses atores sociais, mas também pelos consumidores. “No Nordeste, temos apoio de grandes chefs, como Wanderson Medeiros, Onildo Rocha, Joca Pontes, [André] Saburó”, conta Tatiana.

Entre os pés de café, as árvores de frutas e outras nativas, e as plantações de verduras e ervas para temperar os embutidos é que passeiam e também se alimentam os porcos da Yaguara. “Eles comem muito capim, cana e frutas, e quando saem para passear eles fuçam e comem o que encontrem. Chupam seriguela e jogam fora o caroço, semeando. Comem o que for de época, porque isso vem em ciclos, o que traz para carne uma riqueza de sabor muito grande, além de ter uma dieta balanceada, em termos de verduras, legumes e capim”, conta a criadora. Diferente da indústria, os porcos também passam quase o dobro do tempo mamando, e aprendendo a fuçar e a comer com a mãe.

Somado à dieta diversificada e rica em nutrientes, os porcos tomam banho duas vezes por dia, assim como tem seus espaços higienizados. “O porco é super limpo, ele separa dentro da área os afazeres dele. Só que ele não sua, então precisa se refrescar. Se não tem lama, no confinamento, ele vai deitar sobre as fezes”, compara Tatiana. Uma realidade bem diferente da grande indústria, em que os animais são criados em confinamento e quase amontoados, muito medicados e engordados forçadamente para serem abatidos de maneira precoce, causando alto nível de estresse e tensão nos espécimes.

Além das cinco matrizes e dos três porcos reprodutores, a fazenda conta com uma média de 50 porquinhos, sendo que dois ou três são abatidos mensalmente, com quase o triplo do tempo de vida dos animais da indústria e com muita seriedade, como frisa a produtora rural. “A gente consegue usar basicamente tudo pra charcutaria e coisas que não podem ser usadas, como pêlo e ossos, vão para compostagem. É um processo longo. Para você ter o pensamento de aproveitar o suíno todo, é uma responsabilidade muito grande”, comenta a produtora.

A responsabilidade, contudo, vai além das boas práticas. Para Tatiana, uma das premissas principais para criar animais de forma livre e sustentável é entender o próprio ambiente, o terroir. Como a Yaguara está no sertão de Pernambuco, os porcos são abrigados nos períodos mais quentes do dia e também na parte da noite, pelo fato de a fazenda se erguer em meio à zona de mata. “Em Santa Catarina, eles criam soltos, comem pinhão. Não posso necessariamente aplicar o mesmo sistema aqui. Quanto mais você se abre e conversa com outros produtores, você vai aprendendo e juntando o que é melhor pro seu local, seu ambiente”, conta Peebles. 

Tatiana também falou bastante sobre a importância da educação e da troca para o desenvolvimento de outras iniciativas que prezam pelo bem-estar animal. “Tem que haver troca produtor-cozinheiro-consumidor. O produtor tem que entender o que as pessoas na área urbana comem, assim como as pessoas da área urbana tem que entender os ciclos, o que está disponível. É um grande ciclo e um está unido com o outro, não podemos encaixotar cada um deles”, ressaltando a importância do profissional da cozinha dentro dessa cadeia, “Sem o produtor, o cozinheiro não vive, e sem o cozinheiro, o produtor não vive. É uma relação simbiótica”. 

É por meio dessa troca de conhecimento e experiências entre os atores da rede que o Slow Food Brasil vem atuando nos últimos anos em relação a esse tema, não só expondo a problemática do modelo produtivo atual, mas também propondo alternativas e ações através de campanhas, de articulações de grupos como GT Slow Meat, GT Slow Fish e GT Queijos Artesanais, dos programas Fortalezas Slow Food e Arca do Gosto, além de outras iniciativas baseadas nas boas práticas listadas no documento de posicionamento sobre bem-estar animal e consumo de carnes do Slow Food Brasil. 

Criação de porcos nos Campos de Cima da Serra Catarinense _ Foto_ Pedro Xavier 4.jpeg
Criação de porcos na Serra Catarinense. Foto: Agenor Scarabelot

As ações para apoiar a produção de uma carne boa, limpa e justa vão desde resoluções diárias, como reduzir o consumo de carne e boicotar as grandes marcas processadoras e varejistas, até soluções de maior mobilização social, como trabalhar as CSA dentro das questões agropecuárias, promovendo escalas localizadas e não centralizadas de produção, incidir sobre políticas públicas e irmanar com movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais e campesinos.

Como colocou o jornalista João Peres, estamos promovendo “modelos de negócio que tem no sofrimento sua razão de ser, um sistema que deixa ainda mais explícito como ele é calcado na desigualdade inerente e na infelicidade da maioria, em benefício da felicidade da minoria.” Está na hora de romper com o modelo agronegocial de produção. De carnes e pandemias.

Conheça os outros materiais do projeto Tecendo Rede pelo Alimento Bom, LImpo e Justo para Todos, sobre o tema do Bem-Estar Animal e Consumo de Carnes:

Animação sobre bem-estar animal e consumo de carnes
Documento de Posicionamento
Live Agroecologia – Bem-Estar Animal e Consumo de Carnes: Responsabilidade socioambiental   

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