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Lunchbox: a comida como cultura e comunicação

thelunchbox 1Situado em Mumbai, Lunchbox (2013) é um filme indiano dirigido por Ritesh Batra. São dois os personagens principais, que acabam se envolvendo em um romance platônico através de cartas, enviadas por meio de viandas, isso em um contexto em que, a cada dia, esposas costumam mandar, via entregadores, comida a seus maridos, que estão no trabalho.
Ila é uma esposa negligenciada em seu casamento, enquanto que Saajan Fernandes é um viúvo amargurado e prestes a aposentar-se. Em um ambiente de mudança tecnológica, é a partir de um erro no sistema de entrega de viandas que os caminhos dos dois se cruzam e que começam a relacionar-se.
Em uma tentativa de chamar atenção do marido, Ila lhe prepara um almoço especial. No entanto, ao retornar à casa, no final do dia, ele não faz qualquer comentário a respeito, levando-a a cogitar que a comida pudesse ter ido a destinatário errado. Para confirmar sua suspeita, no dia seguinte Ila manda uma carta junto com a vianda. Sr. Fernandes, que recebeu o almoço, responde apenas “hoje a comida estava muito salgada”… e assim o diálogo começa. Dessa forma, duas pessoas solitárias passam a comunicar-se e a envolver-se, a partir da alimentação. Sem que nunca tenham se visto e relacionando-se apenas através das cartas que acompanham as viandas, Ila capricha nas refeições para Saajan, chegando a cozinhar seu prato favorito, berinjelas recheadas. O filme retrata bem o simbolismo e o potencial comunicativo da comida nas relações em que vivemos, como parte de nossa cultura.

Ila Mas o que quer dizer cultura? Pode ser entendida como sistemas de significados criados e compartilhados pelo homem, que estabelecem e modificam a maneira de viver de determinados grupos, ou seja, que influenciam na maneira como eles pensam, estudam, classificam, alteram a si mesmos e o seu entorno. É justamente por compartilhar esses sistemas, ou parte deles, que nós, indivíduos com características distintas, conseguimos viver em conjunto, sentindo-nos parte de uma mesma totalidade. Assim, o modo pelo qual interpretamos o mundo, os diferentes comportamentos sociais, as apreciações de ordem moral e valorativa, os distintos comportamentos sociais e até a forma na qual posicionamos nossos corpos são resultados da operação de uma determinada cultura. Graças a isso, como expõe o antropólogo Roque de Barros Laraia (1986, p. 68), “indivíduos de culturas diferentes podem ser facilmente identificados por uma série de características, tais como o modo de agir, vestir, caminhar, comer”.
É bem verdade que nem tudo se deve à cultura. A natureza também influencia nossas escolhas, como no caso da preferência por doces, associada à capacidade de armazenamento de energia do açúcar. Mas, por exemplo, a apreciação ou aversão à pimenta não é algo essencialmente fisiológico, e sim também uma questão de gosto.
De acordo com o pesquisador Claude Fischler (2001), o gosto é um sentido que passa desde a simples percepção dos sabores, perpassando o conjunto das preferências e aversões alimentares de um indivíduo, estendendo-se pelo desejo em geral e pelas inclinações, primeiramente alimentares, mas também amorosas e juízos estéticos. Desse modo, é a partir da cultura em que estamos inseridos que julgamos aceitável ou não comer, por exemplo, carne de cavalo ou carne de vaca, mesmo que esses tipos de carnes sejam biologicamente comestíveis em qualquer lugar do mundo.
A partir dessa leitura, alimentar-se, para os seres humanos, é algo muito mais complexo, subjetivo e afetivo do que apenas nutrir-se biologicamente. Maria Eunice Maciel (2001, p. 145) explica: “O alimentar-se é um ato vital, sem o qual não há vida possível, mas, ao se alimentar, o homem cria práticas e atribui significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que vai além da utilização dos alimentos pelo organismo”. Isso faz com que nos diferenciemos de todas as outras espécies de seres vivos e com que consigamos utilizar o comer e as cozinhas para estudar e compreender o comportamento, funcionamento e a organização de sociedades inteiras.
the lunchbox 2Além disso, como já discutiram as pesquisadoras Denise Amon e Renata Menasche (2008), a relação que construímos entre comida e memória está fundamentada na ideia de que a comida tem uma dimensão comunicativa e, desse modo, ao mesmo tempo em que a comida reafirma e reconstrói memórias para as gerações futuras, pode incorporar novos traços, sedimentando e transformando nossa identidade e as visões de mundo em que estamos inseridos.
Por fim, podemos perceber que o comportamento relativo à comida, apesar de ter componentes biológicos e fisiológicos, está diretamente relacionado ao sentido de nós mesmos e à identidade social dos seres humanos, sendo um meio de revelar o sistema cultural em que cada um está inserido. É por meio da comida, que reflete as histórias e questões dos personagens, que Ila e Sajaan se relacionam e que o enredo de Lunchbox se torna apetitoso.

Referências
AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 1, 2008.
FISCHLER, Claude. L’homnivore. Paris: Odile Jacob, 2001.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 145-156, 2001.


* Caio Bonamigo Dorigon é publicitário, estudante de Gastronomia, mestrando em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS, conselheiro da Associação Slow Food Brasil e líder da Rede Jovem Slow Food Brasil – SFYN Brasil.

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