Saberes e Sabores do Chocolate – Relato de Viagem à Região Cacaueira da Bahia – Parte 1

Em maio de 2013 foi organizada uma viagem à região cacaueira do sul da Bahia, numa parceria entre o Convívio Slow Food Rio de Janeiro, Convívio Amazônia e Rede Ecológica. A viagem teve como objetivo principal conhecer produtores de chocolates orgânicos ou agroecológicos para serem inseridos nas compras coletivas da Rede Ecológica. O convite para a participação dos chefs Fabio Sicilia e Margarida Nogueira visou auxiliar na avaliação da qualidade dos produtos e na identificação de possíveis melhorias no processamento, bem como ajudar na divulgação e abertura de mercados para estes produtos junto a restaurantes e consumidores do Slow Food.

 

O Brasil é o quinto produtor de cacau do mundo e o cacau é uma fonte importante de renda para milhares de produtores. Os mercados das amêndoas de cacau e o processamento do chocolate são altamente concentrados na mão de poucas grandes indústrias multinacionais. Somos reféns de chocolates de baixíssima qualidade, que pioraram depois que a Nestlé e Garoto se fundiram, numa operação contestada pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) por caracterizar formação de monopólio, mas que nunca foi revertida.  

Se observarmos os rótulos dos chocolates vendidos no comércio, nos daremos conta que o cacau é apenas uma pequena parte dos seus componentes. Para baixar o preço do chocolate, as indústrias retiram das amêndoas a manteiga de cacau, que é vendida a melhores preços para a indústria de cosméticos. E a substituem por gordura hidrogenada nos chocolates em barra. Existe no mercado comum europeu um conflito em torno dos limites máximos de gordura hidrogenada que podem ser adicionados ao chocolate, para que continue sendo chamado de chocolate. Segundo a legislação brasileira, para ser chamado de chocolate, é preciso que o produto tenha um mínimo de 25% de cacau, o que já é pouco, mas há denúncias de que cerca de um terço dos chocolates produzidos pelas grandes indústrias têm menos que isso. Os rótulos em geral não informam o percentual de cacau e há suspeitas de que os chocolates amargos, que dizem ter mais de 50% de cacau, nem sempre têm o percentual declarado na embalagem. Boa parte da população mais pobre consome chocolate apenas na forma de “biscoitos de chocolate”, que de cacau tem quase somente aroma e sabor artificial… Uma leitura dos ingredientes utilizados nos chocolates vendidos no mercado nos assusta pela grande quantidade de aditivos químicos. Mesmo os chocolates vendidos em lojas de produtos naturais não escapam. Percebe-se uma grande falta de alternativas para os consumidores que buscam chocolates mais naturais e de qualidade. Isso sem falar nas grandes injustiças presentes nas condições de trabalho e nos baixos preços pagos a produtores e produtoras de cacau, alvos de denúncias em campanhas como a da Cresça – Oxfam. Enfim, é um mercado que prejudica as duas pontas: produtores e consumidores.

No processo de organização da viagem à região cacaueira da Bahia fomos percebendo que há inúmeras iniciativas locais que vem permitindo ofertar produtos bons, limpos e mais justos. As sucessivas crises pelas quais a região passou – entre as quais uma das mais profundas foi a provocada pela doença “vassoura de bruxa” nos anos 1990, que se somou a um período de baixos preços internacionais – por um lado trouxeram abandono de plantações e pioras nas condições de produção e comercialização, mas por outro estimularam a busca de alternativas, seja na diversificação da produção, seja na busca de novos mercados para cacau orgânico e de qualidade. As iniciativas variam no seu escopo, algumas se voltando mais para a produção ambientalmente sustentável de amêndoas cacau, outras centrando na produção de amêndoas de qualidade (não necessariamente orgânicas ou agroecológica), ou ainda no processamento de chocolates mais naturais ou então de maior qualidade. Embora algumas sejam mais “boas, limpas e justas” do que as outras, todas estas iniciativas parecem ter um grande valor, contribuindo com experiências e conhecimentos locais que permitem uma produção (ainda incipiente) de chocolates de qualidade e com maior independência das grandes indústrias.

Etapas para a obtenção de um chocolate de qualidade

Para se chegar a um bom chocolate, cuidados precisam ser tomados em todas as etapas de produção, desde o fruto de cacau, o tratamento das amêndoas (que são as sementes do fruto) até a produção do chocolate propriamente dita. Um problema para os chocolates brasileiros é a baixa qualidade das nossas amêndoas de cacau. Como as grandes indústrias compradoras não diferenciam o preço pago por amêndoas de menor ou maior qualidade, a maioria dos produtores deixou de tomar os cuidados necessários à obtenção de amêndoas de maior qualidade.


Frutos de cacau – Assentamento Terra Vista

A obtenção de um cacau ecológico e de qualidade começa na escolha da variedade e na forma de plantio, passa por um conjunto de cuidados com a planta, incluindo o manejo da doença vassoura de bruxa. A crise da vassoura de bruxa levou a uma crise da monocultura de cacau, com respostas variadas. Muitas grandes fazendas de cacau foram abandonadas e algumas delas acabaram se transformando em assentamentos de reforma agrária, a partir de lutas e ocupações de terras envolvendo ex-assalariados do cacau, como é o caso do Assentamento Terra Vista. Entre os agricultores familiares e assentados, várias iniciativas vêm sendo tomadas no sentido de diversificar a produção e fugir da dependência da monocultura de cacau. Há iniciativas, entre os produtores com pouca terra, de produção de cacau agroecológico em sistemas agroflorestais diversificados, com espécies comerciais arbóreas e não arbóreas, nativas e não nativas, como no caso da AMAREA – Associação de Moradores e Agricultores de Rio de Engenho e Adjacências, acompanhada pela Ceplac (empresa governamental de pesquisa e extensão rural).

E está havendo um esforço de recuperação de sistemas tradicionais de produção do cacau sob a sombra das árvores da exuberante mata atlântica do Sul da Bahia. Isso porque, a partir da década de 1960, a “modernização” agrícola e tecnológica do cacau, influenciada pela “revolução verde”, incentivou a produção em monocultura, com eliminação das matas nativas. O sistema tradicional, que apenas raleia a mata nativa para o plantio de cacau, é conhecido como sistema “cabruca” e dá nome a uma ONG, o Instituto Cabruca, que atua na região incentivando a produção de cacau orgânico. Dá nome também à Cooperativa Cabruca reúne fazendeiros de cacau que estão convertendo seu cultivo para orgânico, obtendo a certificação.  Há iniciativas ainda de diversificação das variedades de cacau plantadas, como no caso do Assentamento Terra Vista, que tem uma belíssima “coleção” de cacaueiros, de diferentes tipos.


Roça de cacau – Assentamento Terra Vista – Diferentes variedades de cacau

A qualidade da amêndoa de cacau depende também de cuidados na colheita para separar frutos bons de frutos doentes. Após a seleção, o fruto é cortado ainda em campo, separando a casca e a polpa e deixando escorrer o “mel”. As amêndoas (sementes do cacau) passam então por um processo de fermentação realizado em cochos de madeira, que dura de 2 a 7 dias, precisando ser reviradas todos os dias.


Cochos de Fermentação – Modaka Cacau e Assentamento Terra Vista

A seguir vem o processo de secagem, em barcaças ou secadores, que tem telhados móveis para proteger da chuva. A secagem também exige vários cuidados, de espalhar e revirar as sementes. Neste ponto, obtêm-se as amêndoas e a maior parte dos produtores as vendem para as grandes indústrias processadoras, que não têm preços diferenciados para amêndoas de qualidade.


Barcaças para secagem de cacau –Modaka Cacau e Assentamento Terra Vista

A etapa seguinte já é de processamento do cacau: as amêndoas precisam ser descascadas, em geral passando antes por um processo de torra, que facilita a separação da casca. Quando o descascamento é feito por máquinas, em geral as amêndoas se quebram, sendo chamadas comercialmente de “nibs” (amêndoas quebradinhas e descascadas). Para a obtenção de amêndoas inteiras (como vêm sendo comercializadas por alguns produtores), é preciso realizar um descascamento manual. Em seguida é feita a moagem das amêndoas, para a obtenção do liquor ou massa de cacau.  Além de um processo trabalhoso quando feito artesanalmente, a moagem é delicada, pois as amêndoas não podem esquentar.

Falhas em qualquer uma das etapas vão resultar num cacau de menor qualidade, com menos aroma ou sabor. Problemas na moagem ou na torra podem deixar no cacau um sabor de queimado, que é comum em chocolates artesanais.

Para a produção de chocolates em barra, o liquor ou massa de cacau é submetido a um refino e a um processo de conchagem, que adiciona sabor e textura ao chocolate. A massa de cacau recebe mais gordura e é mantida em movimento constante de refino. Uma das máquinas para produção em menor escala que faz este processo é composta por duas pedras, lembrando um moinho de pedra para fazer fubá, mas com um formato diferente. Nele a massa de cacau pode ser deixada refinando entre seis e 96 horas. Quanto mais tempo ficar, mais fina sua textura e mais emergem os sabores e aromas do cacau. Pelo que vimos nos chocolates artesanais de Ilhéus, com 12 a 24 horas de conchagem já se consegue um resultado razoável. Alguns produtores artesanais e chocolateiros de Ilhéus estão utilizando uma máquina Melanger importada dos Estados Unidos, utilizada para produção caseira.


Máquina Melanger para conchagem do cacau

Tanto na moagem quando na conchagem a temperatura não pode aumentar acima de 70ºC, pois isso traz um aroma de queimado.  É na conchagem que a massa de cacau pode receber outros ingredientes para ser transformada em chocolate. Nos chocolates de alta qualidade, a gordura adicionada é a manteiga de cacau. Pode-se adicionar leite em pó (nos chocolates ao leite) e açúcar e a proporção destes ingredientes é que dará os chocolates com diferentes percentuais de cacau.

Nos chocolates industriais, antes da conchagem a massa de cacau passa por uma prensagem, que separa a manteiga de cacau e a torta de cacau. A torta de cacau pode ser utilizada para fazer o chocolate em pó, moendo mais e adicionando açúcar. A máquina que extrai a manteiga de cacau parece ser uma das mais caras e inacessíveis à produção em pequena escala.

Em geral, as indústrias processadoras vendem a manteiga de cacau para a produção de cosméticos e utilizam apenas a “torta de cacau” para a produção de chocolates em barra, substituindo a manteiga de cacau por gorduras vegetais hidrogenadas artificialmente (obtidas a partir de processos industriais de hidrogenação de óleos vegetais, no Brasil em geral de soja). E adicionam emulsificantes (em geral a lecitina de soja), que dão uma maior sensação de cremosidade, além de um conjunto de outros aditivos químicos, conforme se pode notar nos rótulos dos chocolates vendidos no comércio.

Vimos que mesmo as fábricas da agricultura familiar que vêm sendo implantadas com apoio do governo da Bahia na região de Ilhéus, incluindo a fábrica modelo da Ceplac, são bastante dependentes das grandes indústrias: são feitos convênios com a Cargill Foods para que ela processe o cacau da agricultura familiar, devolvendo a manteiga e a torta, o açúcar refinado é comprado de grandes usinas, a lecitina de soja da Bunge, o leite em pó da Nestlé. Ou seja, mesmo que o processamento seja feito numa fábrica autônoma, com equipamentos próprios e utilizando cacau da agricultura familiar, um percentual razoável dos ingredientes (que pode chegar a 70%, no caso de achocolatados) é dependente de grandes indústrias. Também no caso dos chocolates orgânicos as cooperativas de produtores têm feito convênios com a Cargill Foods para que processe o cacau orgânico e devolva a manteiga e a torta.

 

Produtos alternativos: a “bola de cacau”, a “cocada de cacau” e os chocolates artesanais  (Continua na parte 2)

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