Este trabalho tem como objetivo apresentar características que apontam para a resistência cultural de famílias que utilizam a produção de alimentos derivados da mandioca, tais como tapiocas, bolos, beijus, broas, etc, como estratégia de reprodução socioeconômica e cultural. Essas famílias vivem em Miai de Baixo, povoado pertencente ao município de Coruripe, em Alagoas.
O município apresenta concentração de terras e a utilização das mesmas está sob o domínio da produção de cana-de-açúcar, com destaque para três grandes usinas, a Usina Coruripe, a Usina Guaxuma e a Cooperativa Pindorama, além de grandes fazendas de coqueirais e de criação de gado. Em contraste com as grandes extensões de terras destinadas à monocultura, o município é composto por várias povoações, tanto ao longo da costa litorânea como em seu interior. Miai de Baixo, que está localizada entre Feliz Deserto e a cidade de Coruripe, sede do município, é um deles e está a uma distância aproximada de 13 km da sede.
Caracterizado durante muito tempo por casas de taipa, sem energia elétrica e água encanada, as famílias desse povoado apropriaram-se dos recursos naturais para sobreviver, mas, desde o final da década de 1980, esse espaço vem sofrendo várias transformações como, por exemplo, aquelas relacionadas à construção da rodovia estadual que liga o povoado a outros núcleos de povoações e a cidades próximas, ao acesso à energia elétrica e água encanada, como também a perda de terras destinadas às roças. Essas mudanças introduziram novos hábitos no cotidiano dos miaienses.No entanto, é a força do valor identitário que permeia a produção dos derivados de mandioca, conhecidos como guisados, uma das proposições argumentativas que explica a permanência de traços culturais diante das transformações espaciais daquele lugar.
Guisados são definidos pelos habitantes do povoado como sendo os produtos derivados da mandioca, tais como beijus, tapiocas, broas, farinhas, que trazem como característica a produção para a comercialização e/ou o envolvimento de várias pessoas no processo de preparo. O cuscuz de puba, apesar de ser um alimento derivado da mandioca, não é considerado um guisado, pois seu preparo é individual e o produto final não é comercializado.
A preparação dos guisados se inicia com a aquisição da mandioca. Ao descascá-las, separam-se as raízes que irão fermentar para obter a massa puba, para fazer, por exemplo, o pé de moleque, daquelas que serão raladas para fazer os beijus e, ainda, das que serão utilizadas para extração da fécula, para fazer as tapiocas.
As maneiras de preparar as receitas são transmitidas de geração a geração. Os jeitos de descascar e os horários de pôr as mandiocas de molho para amolecer exigem técnicas e envolvem também crenças, pois se acredita que a mulher, no período de menstruação não está, como dizem popularmente, com “a cabeça boa” e, assim, a mandioca colocada de molho por ela demoraria muito para ficar mole.
As técnicas de modelar as tapiocas e os pés de moleques, por exemplo, exigem habilidade com as mãos, pois não se utilizam fôrmas para este fim. Do mesmo modo, a raspagem do coco e o manuseio dos produtos sobre o forno a lenha requerem habilidade para não haver acidentes com cortes e queimaduras.
O valor identitário do saber-fazer dos derivados da mandioca, que apresenta técnicas próprias que caracterizam a cultura dos miaienses, caminha paralelamente com a importância econômica que esses produtos têm para essas famílias, uma vez que a finalidade de produzi-los é a comercialização para a geração de renda, destinada à reprodução socioeconômica das famílias produtoras.
Os produtos são vendidos nas cidades de Coruripe, Feliz Deserto, Piaçabuçu e em Pontal de Coruripe, em feiras ou nos logradouros públicos (de porta em porta). Os produtos mais procurados são a tapioca amassada, o pé de moleque e o bolo de macaxeira com queijo.
Ao passo que os traços culturais são passados de geração a geração, esses ainda se deparam com as transformações que ocorrem na sociedade e no espaço. De um espaço eminentemente familiar com possessão de terras por meio de herança, os miaienses defrontam-se, nas últimas décadas, com a inserção da cana-de-açúcar, cultivo que forçou os moradores a venderem ou arrendarem seus pedaços de “chão” onde plantavam mandioca, matéria-prima principal para a produção dos guisados. Por isso, atualmente, as mulheres são obrigadas a comprar a raiz em outros povoados ou em municípios vizinhos.
Os estudos de Manuel Correia de Andrade (2005), de meados do século XX, sobre a expansão da cana-de-açúcar no Nordeste, mostram as etapas pelas quais as terras coruripenses passaram. Dos engenhos para as usinas, a monocultura sempre prevaleceu nesses espaços, sufocando as culturas de subsistência das pequenas povoações. Inicialmente o cultivo da cana-de-açúcar se estabeleceu nas áreas de vales, mas com o avanço das técnicas agrícolas e o incentivo de políticas de desenvolvimento agroindustrial, tal como o Proálcool (ANDRADE 2005), o cultivo passou a dominar os tabuleiros costeiros, que, até então, eram usados por famílias que trabalhavam nos engenhos e usinas, tanto para moradia como para cultivo de mandioca, milho, feijão, etc. “Diante disso, as áreas destinadas à moradia e a produção de alimentos pelos trabalhadores foram apropriadas para o cultivo da cana-de-açúcar” (Santos et al., 2007, p. 31).
Os canaviais forçaram os trabalhadores rurais a diminuir os tamanhos de suas “roças”, designação dada aos pedaços de terras onde plantavam tubérculos, hortaliças, dentre outras culturas destinadas ao consumo e à venda em feiras próximas. Em Miai de Baixo, a ocupação das terras pelos canaviais foi significativa, ao ponto de não haver mais roças destinadas ao plantio de mandioca para a produção de bolos, farinhas, tapiocas.
A redução de roças para plantar mandioca constitui grande dificuldade para as guisadeiras continuarem com seus ofícios. Semanalmente, uma guisadeira produz cerca de duzentas unidades de mal casado e de pés de moleques; duas ou três dezenas de beijus e de tapiocas; duas ou três assadeiras de bolos de macaxeira e puba. Essa produção requer de quatro a cinco sacas de mandioca, mas nem sempre essa quantidade está disponível, prejudicando a renda familiar. A cada semana, observa-se o empenho dessas mulheres na procura de vendedores de mandioca.
A produção de farinha foi a mais prejudicada e, atualmente, só é produzida esporadicamente, pois, se comparada a outros produtos, é necessária uma quantidade consideravelmente grande de mandioca para o seu preparo. O desaparecimento das casas de farinha coletivas também está associado à diminuição drástica do cultivo da mandioca no povoado.
Diante dessas transformações, uma pergunta é pertinente: se há dificuldades em obter mandioca, porque as famílias persistem na produção dos guisados? Consideremos dois pontos. Primeiro, os guisados e tudo o que os envolve faz parte da identidade daquele povo, integra social e culturalmente as pessoas da comunidade e dá identidade ao lugar.
As mulheres entrevistadas não se reconhecem sem este ofício, todas elas aprenderam com suas mães e avós a preparar os guisados e a ter neles uma alternativa de renda. Raspar mandioca e ralar coco, cortar palha de bananeiras e catar lenha, peneirar e pôr ao sol a puba e a fécula, tudo isso faz parte da vida daquele povo e, de domingo a domingo, sempre há um horário destinado a esse ofício. O segundo ponto é que as famílias envolvidas na produção dos guisados precisam do dinheiro para complementar a renda, quando não dependem exclusivamente dessa fonte de recursos.
Atualmente, resta às guisadeiras apenas a força de trabalho e o saber fazer herdado, o que é suficiente para dar continuidade às suas práticas identitárias. As técnicas de produção permanecem fundamentadas nos trabalhos manuais, os instrumentos são rudimentares e as receitas sofreram algumas mudanças, como a agregação de ingredientes. Apesar das dificuldades existentes na obtenção das matérias-primas, as mulheres continuam a fazer seus guisados.
A produção dos guisados é considerada um elemento marcante na identidade cultural deste povo. É preciso considerar não só o fato da resistência da prática de produzir os alimentos, mas os modos com que são feitos, os utensílios utilizados e a maneira de repassar, geração a geração, a sabedoria de prepará-los.
Os guisados são vendidos e a renda adquirida serve como complemento e, para muitas famílias, constitui o principal recurso utilizado para a reprodução social e econômica. As mulheres são as líderes na produção, mas toda a família se envolve e, com isso, os mais jovens aprendem, fazendo.
A partir das informações coletadas é possível afirmar que a produção dos guisados de Miai de Baixo, como são conhecido nos lugares onde são comercializados, perdura há mais de 80 anos. E no que depender daquelas famílias, a prática terá continuidade.
Referências
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. Editora Cortes, 7ª ed. São Paulo, 2005.
CLAVAL, Paul. A geografia cultural. 2 ed. Florianópolis: ed. da UFCS, 2001.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Produção Agrícola Municipal, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010.
SANTOS, André Luiz da Silva et al. A expansão da cana-de-açúcar no espaço alagoano e suas consequências sobre o meio ambiente e a identidade cultural. Campo-Território: Revista de Geografia Agrária, v.2, n. 4, p. 19-37, 2007.
* Rafaela dos Santos é licenciada e bacharelanda em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e integra o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais (GRUPAM).