Separação da massa do soro na preparação artesanal de queijo

Queijos artesanais de leite cru – diversidade, sabor e cultura

O que são queijos artesanais feitos de leite cru?

Queijos de leite cru são os queijos fabricados artesanalmente à moda tradicional, isto é, são elaborados a partir de leite recém-ordenhado e não pasteurizado. A maioria das pessoas não sabe, mas todos os queijos tradicionais do mundo eram originalmente fabricados a partir do leite cru, queijos famosos como o camembert, o brie, o roquefort, a muzzarela. Atualmente, estes mesmos queijos são mais facilmente encontrados pasteurizados e em versão industrializada para atenderem às exigências da legislação sanitária internacional, mas quem já teve o prazer de conhecer as versões originais sabe que a diferença é muito grande.

Os queijos industrializados, geralmente disponíveis em supermercados, são produzidos em maior escala, a partir da coleta de leite de vários produtores. Nesse processo, o leite é pasteurizado antes da elaboração dos queijos. A pasteurização – que consiste em aquecer o leite a 62ºC por cerca de meia hora e depois resfriá-lo – tem como objetivo eliminar bactérias indesejáveis transmissoras de doenças assim como bactérias responsáveis por deteriorar o leite. No entanto, a pasteurização desnatura proteínas, altera o sabor e elimina bactérias lácticas benéficas, estas responsáveis pelas características especiais dos queijos tradicionais.

Separação da massa do soro na preparação artesanal de queijo
Separação da massa do soro

No Brasil há queijos tradicionais feitos de leite cru em diversas regiões, eles são fabricados em pequena escala e por pequenos produtores rurais, como é o caso dos queijos da Canastra, Salitre, Serro e Mantiqueira, em Minas Gerais; dos queijos Colonial e Serrano, no Sul, dos queijos de Coalho e de Manteiga no Nordeste. Por não atenderem aos requisitos legais estabelecidos pela legislação sanitária – esta baseada nos padrões da produção industrial de grande escala – muitos desses queijos são comercializados de maneira informal, diretamente pelos produtores em feiras ou por intermediários, em mercados locais. No entanto correm o risco de serem apreendidos pela fiscalização, causando prejuízos aos produtores e dificultando o acesso a mercados mais distantes.

Diferentemente do que alegam os órgãos de fiscalização sanitária, há poucas evidências concretas de que esses queijos possam fazer mal à saúde. Houve um tempo em que foram vendidos em grande escala (e continuam sendo, em algumas regiões) e apesar disso são muito poucos os casos notificados de toxinfecçãoalimentar. Esta é razão pela qual, também no Brasil, o Movimento Slow Food defende que queijos de leite cru não apresentam riscos para a saúde dos consumidores se o gado leiteiro estiver saudável e o processamento for feito em boas condições de higiene logo após a ordenha.   

Além disso, se olharmos o problema sob uma perspectiva histórica, o processo de pasteurização é recente na história da humanidade – possui pouco mais de 150 anos – ao passo que a produção e o consumo de queijos de leite cru fazem parte da história de diversas sociedades há milênios. Estes queijos são alimentos vivos que, com a maturação, adquirem texturas, aromas e sabores diversos.

Queijos artesanais de leite cru
Estante para maturação dos queijos

Por não ter terem sofrido tratamento térmico, possuem bactérias lácticas que, além de terem papel importante para evitar a proliferação das bactérias causadoras de doenças, são benéficas para a digestão. Não é à toa que os franceses mantém o costume de comer queijo após a refeição como parte da sobremesa e, ainda hoje, costumam comer os queijos de casca “mofada”, como camembert e brie, para regularizar a flora intestinal e proteger o organismo, por exemplo, dos efeitos nocivos dos tratamentos à base de antibióticos.

Uma iniciativa importante para a salvaguarda dos queijos artesanais, ainda que geograficamente restrita, foi seu registro como patrimônio imaterial pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, como foi feito com os queijos do Serro, da Canastra e do Alto Paranaíba, em Minas. Isso no entanto não resolveu o problema do seu reconhecimento legal. Os produtores continuam enfrentando sérias dificuldades com a legislação sanitária que, ignorando os métodos e equipamentos tradicionais de produção, exige uma série de alterações nas instalações das queijarias.

Prensagem do queijo
Prensagem do queijo

Os produtores que não conseguem se adaptar deixam de produzir ou ficam cada vez mais limitados ao comércio informal. Além de implicar em custos muito elevados, a adaptação às exigências legais coloca em risco a manutenção das características originais desses produtos, sua qualidade e riqueza de texturas, sabores e aromas que os diferenciam de queijos industrializados, e os produtores sabem disso.

Os produtores sozinhos não têm forças para mudar essa situação, precisamos por isso nos juntar a eles, nós consumidores, chefs, gastrônomos, pesquisadores e quem mais se interesse pela permanência de nossas tradições alimentares. O reconhecimento e a valorização dos nossos queijos artesanais podem ser atingidos por vários meios, dentre eles: pela aproximação, conhecimento e divulgação da realidade dos produtores, pela pressão por uma legislação adequada ao alimento artesanal, e pela promoção da compra, ainda que informal, e do consumo desses queijos para que seus produtores possam continuar existindo enquanto tal.

A luta pela salvaguarda dos queijos de leite cru é mundial e contrapõe-se aos interesses da grande indústria de laticínios. O Slow Food Internacional participa dessa luta em vários países. No Brasil, 2011 pode ser considerado o início da campanha local com a criação do Grupo de Trabalho do Slow Food Brasil sobre queijos artesanais de leite cru; a história desse começo será tema dos próximos artigos da coluna “Com a mão no queijo“.


Texto produzido pelo Grupo de Trabalho do SlowFood Brasil sobre Queijos Artesanais de Leite Cru

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