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Nem sempre visível, mas sempre presente: o arroz na culinária brasileira (Parte 1)

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Parte 1: um pouco de história 

A presença do arroz no Brasil remonta ao período do descobrimento, tendo sido pela primeira vez mencionado na famosa Carta do Achamento do Brasil, escrita por Pero Vaz de Caminha, que afirma que os indígenas "de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente ladão cozido, frio e arroz". Em sua forma silvestre, o arroz vermelho ou da terra é encontrado ainda hoje no Pantanal Matogrossense e na Amazônia, recebendo, entre os grupos tupi, denominações que destacam suas similitudes com o milho. No livro Tratado da Terra do Brasil, escrito por Gandavo (em 1568), consta que "há nesta terra muita copia de leite de vacas, muito arroz, favas, feijões, muitos inhames e batatas, e outros legumes que fartam muito a terra".

Há uma série de controvérsias quanto à introdução do arroz europeu no Brasil. Segundo Almeida Pereira (2002), a Oryza sativa foi provavelmente trazida de Cabo Verde, ainda na segunda metade do século XVI, juntamente com a cana-de-açúcar, o coco, o inhame e alguns animais, produtos importantes para a Capitania da Bahia, que então se configurava. No século XVII, açorianos introduziram o arroz no Maranhão e Grão-Pará. Produzido para subsistência, o arroz era cultivado e pilado pelas mulheres, prática que se mantém até hoje em regiões ribeirinhas e em seringais da Amazônia. No Nordeste, no vale do rio Piancó, encontra-se o chamado arroz vermelho cultivado ou "da terra", produzido em pequenas áreas de terra firme, em solos de alta fertilidade e capacidade de retenção de água (Almeida Pereira, 2004).

Historicamente associado ao consumo das populações mais pobres e ecologicamente considerado limpo porque não recebe tratamento agro-químico, o arroz vermelho atualmente é consumido como caldo pelas parturientes ou crianças com diarréia ou em pratos tradicionais, tais como o arroz-de-garimpeiro, associado a carne de sol e legumes. Em Goiás (Brandão, 1987), ele é conhecido por arroz de capivara e produzido tradicionalmente em pequenas quantidades. Di Stefano (2004) menciona seu consumo por camponeses na década de 1950, no sul de Goiás tal como em Minas Gerais, onde é denominado venez roxo (Almeida Pereira, 2004). É definido pelos grandes produtores de arroz branco como praga.

arroz_integral3jpg.jpgOtoniel Mota, citado por Antonio Candido no clássico Parceiros do Rio Bonito (1975), aponta que na Capitania de São Vicente houve grande produção de açúcar e arroz asiático (Oriza sativa), cuja produção desaparece, para apenas no século XIX voltar a ser encontrada em São Paulo.

A introdução do chamado "arroz branco" ou "Carolina", diferente do introduzido no século XVI, deu-se na segunda metade do século XVIII, por estímulo do Marquês de Pombal, pela calha do Rio Amazonas, as sementes sendo provenientes do Peru, Colômbia e Equador. Cultivado em maior escala, conduziu à instalação das chamadas "fábricas de soque", engenhos de descascamento, movidos a energia hidráulica. Ainda no mesmo período, esse arroz passou a ser exportado para Lisboa, quando o Maranhão consolidou-se como grande produtor.

No início do século XIX, com a chegada da família real portuguesa, criou-se uma nova camada de consumidores de arroz, até então produto secundário. Seu consumo, inicialmente concentrado na Corte e nas elites, posteriormente se popularizaria, substituindo parcialmente a farinha de mandioca. O arroz torna-se, então, um produto de consumo em larga escala, geralmente combinado com o feijão. É interessante que no final do século XIX um prato de baixo preço era o arroz de bacalhau, definido como comida de pobre. No final do século XX, ele é retomado, agora sob influência da mídia, como comida ritual, cara e altamente valorizada pelas camadas médias brasileiras.

arroz_integral.jpgNo Rio Grande do Sul, segundo Almeida Pereira (2002), há notícias de que o chamado arroz do sequeiro, isto é, o arroz cultivado em áreas naturalmente alagadas pelas chuvas e de solos que retêm umidade, após experiências inexpressivas anteriores, foi cultivado pelos imigrantes alemães nas colônias, logo após sua chegada, em 1824. Como parte do processo de adaptação culinária desses e de outros imigrantes, o domínio sobre a tecnologia da energia hidráulica, trazido inicialmente pelos imigrantes da região das montanhas do Taunus, levou a uma proliferação de moinhos coloniais que, ao lado do milho e da mandioca, beneficiavam o arroz a baixo custo ou em troca de uma parcela da produção. Essa produção familiar era parte constitutiva do sistema de autoconsumo nas colônias, com alguma comercialização para áreas urbanas do Sul. Ele prevaleceu até a década de 1960, quando sua produção cai em desuso, substituído pelo arroz irrigado, que passou a ser facilmente comprado.

Este último, que já vinha sendo cultivado nas planícies da região de Pelotas em grandes propriedades, a partir da década de 1980 passou a receber novas variedades associadas às pesquisas da Embrapa e Instituto Rio Grandense do Arroz – IRGA, das quais resultaram melhorias na qualidade e volume do produto por área plantada e expressivos investimentos. Esta área tornar-se-ia a maior produtora de arroz do Brasil, com um volume, na virada do milênio, superior a 4.900 mil toneladas, originários de 944 mil hectares de área plantada.

Paralelamente a esse esforço de produção em larga escala, a partir da década de 1980 outras variedades de arroz, até então importadas em pequenas quantidades e limitadas ao uso em pratos típicos de grupos de descendentes de imigrantes, passaram a ser produzidas no Brasil, tornando-se mais visibilizadas e consumidas, conquistando novos apreciadores. É o caso do arroz arbóreo ou Volano, associado aos ítalo-brasileiros, e os Midori Mai (verde), o Kuro Mai (preto) ou o Aka Mai (vermelho) muito apreciados na culinária nipo-brasileira.

arroz_selvagem.jpgAssim, no plano das classificações mais amplas do mercado urbano, no Brasil identificam-se, grosso modo, quatro categorias mais gerais de arroz: o arroz branco, consumido por todas as classes sociais no dia-a-dia e como acompanhamento de ingredientes mais valorizados ou sofisticados; o arroz arbóreo, de consumo mais restrito devido ao preço, usado em variados tipos de risotos mais finos, com ingredientes especiais, tais como cremes, carnes e cogumelos. O arroz integral, de consumo limitado pelo preço relativamente elevado, geralmente é consumido por seu valor nutricional, por pessoas particularmente atentas à relação entre alimentação e saúde ou com concepções "alternativas" de vida. Por fim, as variedades de arroz preto ou selvagem, que além de raros e caros, ainda são de consumo em condições especiais, como decoração.

[Leia aqui a segunda parte deste artigo]

Referências:

ALMEIDA PEREIRA, José. Cultura do arroz no Brasil: subsídios para a sua história. 1. ed. Teresina: Embrapa Meio-Norte, 2002. 226 p.

ALMEIDA PEREIRA, José. O arroz-vermelho cultivado no Brasil. 1. ed. Teresina: Embrapa Meio-norte, 2004. 90 p.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os Nomes do Trabalho. Anuario Antropólogico, v. 85, p. 107-137, 1987.

CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

DI STEFANO, José Geraldo. Modelo Tecnológico Tradicional em Porto dos Barreiras e a Hidrelétrica de Itumbiara (GO). 2004. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) – Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2004.


* Ellen Fensterseifer Woortmann  é antropóloga, professora da Universidade de Brasília (UnB).

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