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A quinta do caranguejo

caranguejosQuinta-feira é o dia! E o ritual é à noite! Vem do mangue para a praia, à beira mar, da lama à mesa.

A fonte de tal iguaria pode ser de perto ou de longe. Chega em um amarrado chamado corda, ainda vivo. É morto com uma faca de ponta fina. Se colocado vivo na água quente, soltam-lhe as patas. Antes de cozinhar, é lavado, esfregado, raspado. Depois, é escaldado. Durante o cozimento, sua cor vai mudando, até que chega "ao ponto".

O sabor é ressaltado pelo acréscimo de ervas, pimentas e leite de coco. Da cozinha, é levado, em bacia plástica ou de barro, por entre mesas, coberto pelas folhas verdes do coentro, regado com o leite de coco, fumegante. Despejado sobre a mesa o conteúdo da bacia, dá-se início ao ritual propriamente dito. São várias mãos, a um só tempo, em busca do maior caranguejo. Em seguida, com pancadas firmes e ansiosas, as carnes são tiradas fora, para o prazer dos comedores.

É assim a quinta do caranguejo, que ninguém sabe como começou e todos reivindicam onde começou. Há muitos anos tem sido associada a um nome, "Chico do caranguejo", a barraca de praia que colocou caranguejo como sobrenome de um tal Francisco, que agora tem nome e endereço. É o cidadão do caranguejo na cidade de Fortaleza, desde 1987.

Antes disto já havia uma turma que se reunia na Praia do Futuro antiga, no Toninho, no Mendes, Itaparicá e tantas outras. Turma de amigos, familiares, que largavam suas casas e dedicam-se, noite adentro, a este momento, que se repete a cada semana.

Às quintas feiras a cidade se transforma. No litoral, as barracas acolhem nativos e estrangeiros, antigos e novos iniciados no ritual do caranguejo. Cedo começa o movimento da formação dos grupos de rapazes e moças, homens e mulheres, de pouca, meia e muita idade, que, em caravana, enfileiram-se rumo à praia, nas noites de quinta-feira, para o ritual. Há a turma da escola, da igreja, do bairro. Mas a turma que não se desgruda, é a turma do caranguejo.

Já não há mais espaço na praia, então resolveram ritualizar em toda a cidade, nos restaurantes dos bairros, esquinas e clubes. Das pizzarias às churrascarias, nas quintas, servem caranguejo.

comendo caranguejoTodos se põem à mesa, que é limpa para receber os instrumentos necessários: uma pequena tábua e um pauzinho para bater no bicho, que já está mortinho. Enquanto se come, o ritual pode ser acompanhado por música, ou por uma conversa, apressada ou vagarosa, a depender da habilidade do comensal. Sim, habilidade, porque nem todo mundo sabe comer: tem os que comem tudo, os que comem só as patas, os que comem rápido, os que comem devagar, os que chupam as patas, sujam as mãos, se lambuzam. É uma unanimidade! Para os que gostam de caranguejo, é inadmissível que alguém não goste. Os que desgostam, não é pelo sabor, mas pelo trabalho que dá para comer.

Como dito, o caranguejo é um crustáceo que exige certo esforço e habilidade na hora de saboreá-lo. No entanto, quem o experimenta, não deixa de voltar a provar. O bicho é estranho, duas patolas em forma de pinças e quatro pares de patas articuladas, que devem ser arrancadas, uma a uma – o modo certo de comer é ir arrancando as patas. Deixa-se de lado o casco, que se come por último, retirando-se a parte inferior, separando-o da carapaça e limpando-o, leva-se à boca, extraindo, das partes internas, a carne branca e macia. No final, abre-se o corpo do caranguejo, para comer, com farofa, a gordura que fica depositada no casco. A gordura é levemente amarga.

Os que não adquiriram a destreza e não se acham capacitados, comem só a carne retirada e preparada na casquinha, e aí cada cozinheiro cria sua receita. Há diferença entre comer o caranguejo inteiro e a casquinha. No primeiro caso, percebe-se o cuidado de sugar a carne, as pessoas fazem barulho, lambem as patas mais finas, cheias de pêlos, que vêm com cebolinhas, coentros, tomates e cebolas enganchadas. Reviram-se os olhos, lambem-se os dedos…

criança e caranguejoHá competição para pegar aqueles de patas maiores. Mães de filhos pequenos retiram as patas grandes e separam-nas para os filhos que, depois de muitas tentativas e erros, conseguem retirar a carne – só querem as patas que têm mais carne. Com crianças por perto, os pais não conseguem comer sossegados.

Ninguém fica limpo, mas as caras são satisfeitas e felizes. A bebida habitual que acompanha a iguaria é a cerveja, da marca preferida do bebedor, ou o refrigerante, para os não bebedores de álcool, e ainda a água de coco. Se a cerveja for ruim, mas o caranguejo bom, tudo bem! Se a cerveja for boa, gelada, e o caranguejo grande, carnudo e gordo, então…!

Nesse ritual, tem-se o cuidado de comer apenas os caranguejos machos. Não se comem fêmeas, para não alterar o ciclo de reprodução. Dizem que os caranguejos estão bons nos meses que não têm a letra "A", o que coincide com o período do defeso

Noites de quinta-feira, é possível ver e ouvir toda aquela gente em torno das mesas. Entre sons, aromas e sabores, é o encontro dos comensais, dos amigos, da família, dos namorados… com o caranguejo.

No domingo, comem caranguejo os que não foram na quinta. Aqui e ali, vê-se um solitário, com um companheiro de dez patas.

Afinal, qual o dia!? Na quinta! E a hora? Pode ser agora!

Vai quinta pro caranguejo? Claro!

Quinta, vou pro caranguejo, vamos?

Ver: A alimentação e seus estranhos rituais


* Maria Lúcia Barreto Sá é nutricionista, professora, especialista em Nutrição Humana, mestre em Educação e doutoranda em Saúde Pública. Comedora de caranguejo. Participa desse ritual todas as quintas-feiras.

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