Em 28 de fevereiro de 2023, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva completa o segundo mês de seu terceiro mandato, ocorre a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, que havia sido extinto no primeiro dia de governo de seu antecessor. Para contextualizar a volta do CONSEA, vale ter presente, ainda que muito sinteticamente, sua trajetória recente. A isso se propõe este pequeno texto.
Em todo o país, o Banquetaço comemora o retorno do CONSEA e da política de combate à fome: participe na sua cidade!
Em 2014, após uma década em que o combate à fome fora colocado como eixo estratégico da agenda das políticas públicas do país, o Brasil deixou de constar do Mapa Mundial da Fome. Segundo Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO (2015), durante aquele período o número de brasileiros considerados em situação de subalimentação reduzira-se em 82%. Tal conquista decorreu “da decisão política de promover o crescimento econômico com distribuição de renda e o desenvolvimento de diversas políticas públicas com grande impacto nas famílias em situação de vulnerabilidade social” (FAO, 2016:1), cabendo destaque à agenda de Segurança Alimentar e Nutricional, em que se inscrevera, em 2003, a recriação do CONSEA.
O CONSEA é órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, de caráter consultivo, formado por um terço de conselheiros/as de governo e dois terços da sociedade civil, aí representados/as agricultores familiares, mulheres agricultoras, movimento agroecológico, agricultura urbana, indígenas, mulheres indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais (povos de matriz africana, pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, entre outros), movimento urbano, pesquisadores/as, pessoas com necessidades alimentares especiais, centrais sindicais, grupos religiosos e associações patronais. Nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional –realizadas em 1994, 2004, 2007, 2009, 2011 e 2015– reúnem-se milhares de participantes, deliberando sobre os princípios e ações do CONSEA.
Como parte desse processo, que tem como marcas a participação social e a intersetorialidade, em 2006 foi promulgada a Lei nº 11.346, Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que estabeleceu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (SISAN), composto por: Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional –que reúne os ministérios cuja atuação tem impacto na Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional–; órgãos e entidades de segurança alimentar e nutricional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes do SISAN. Ainda compondo o marco institucional de SAN no Brasil, temos que, em 2010, foi criada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e incluído na Constituição Federal o Direito Humano à Alimentação Adequada (CONSEA, 2015).
Foi, assim, estabelecido em lei que “A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” (BRASIL, 2006).
Tal conceito foi sempre orientador dos posicionamentos do CONSEA que, desse modo, pautou suas proposições no sentido de: democratização do acesso à terra e garantia dos direitos territoriais das populações tradicionais, fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica, restrição ao uso de agrotóxicos e rejeição aos cultivos transgênicos, proteção da agrobiodiversidade e reconhecimento dos direitos decorrentes dos conhecimentos tradicionais associados, denúncia das consequências do aumento do consumo de alimentos processados e ultraprocessados, reconhecimento de saberes e práticas da alimentação como patrimônio cultural. É nesse quadro que se colocam programas que foram propostos pelo CONSEA para implementação pelo governo federal, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que assegurou a compra institucional de alimentos da agricultura familiar, ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que estabeleceu que 30% de todo o orçamento da alimentação escolar seja destinado à aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar.
Cabe ainda menção, nesse processo, ao avanço representado pela segunda edição do Guia Alimentar da População Brasileira (Ministério da Saúde, 2014), que, tomando por pressupostos os direitos à saúde e à alimentação adequada e saudável, associou a alimentos minimamente processados o atributo da saudabilidade, estabelecendo relação entre obesidade, sobrepeso e doenças crônicas, que crescentemente têm atingido a população brasileira, ao consumo de alimentos processados.
É nesse quadro que se pode entender o lema escolhido para a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em 2015: “Comida de verdade no campo e na cidade”. O manifesto aprovado pela 5ª CNSAN afirma que:
“A comida de verdade é salvaguarda da vida. É saudável tanto para o ser humano quanto para o planeta, contribuindo para a redução dos efeitos das mudanças climáticas. Garante os direitos humanos, o direito à terra e ao território, a alimentação de qualidade e em quantidade adequada em todo o curso da vida. Respeita o direito das mulheres, a diversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais de matriz africana, povos de terreiro, povos ciganos, povos das florestas e das águas, demais povos e comunidades tradicionais e camponeses, desde a produção ao consumo. Protege e promove as culturas alimentares, a sociobiodiversidade, as práticas ancestrais, o manejo das ervas e da medicina tradicional, a dimensão sagrada dos alimentos. Comida de verdade começa com o aleitamento materno. Comida de verdade é produzida pela agricultura familiar, com base agroecológica e com o uso de sementes crioulas e nativas. É produzida por meio do manejo adequado dos recursos naturais, levando em consideração os princípios da sustentabilidade e os conhecimentos tradicionais e suas especificidades regionais. É livre de agrotóxicos, de transgênicos, de fertilizantes e de todos os tipos de contaminantes. Comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações. É aquela que considera a água alimento. É produzida em condições dignas de trabalho. É socialmente justa. Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado. Comida de verdade é caracterizada por alimentos in natura e minimamente processados em detrimento de produtos ultraprocessados. Precisa ser acessível, física e financeiramente, aproximando a produção do consumo. Deve atender às necessidades alimentares especiais. Comida de verdade é aquela que é compartilhada com emoções e harmonia. Promove hábitos alimentares saudáveis no campo, na floresta e na cidade. Comer é um ato político. Comida de verdade é aquela que reconhece o protagonismo da mulher, respeita os princípios da integralidade, universalidade e equidade. Não mata nem por veneno nem por conflito. É aquela que erradica a fome e promove alimentação saudável, conserva a natureza, promove saúde e a paz entre os povos.”
Após um golpe de estado que, em 2016, estancou os avanços sociais que vinham sendo conquistados pela sociedade brasileira; uma pandemia e um governo genocida (2019-2022), chegamos a uma situação em que mais da metade da população brasileira convive com a insegurança alimentar, sendo que 33,1 milhões passam fome (Rede Penssan, 2022). Esse é o tamanho do desafio que se apresenta, mas também da energia e motivação que mantiveram ativos, por todo o país, durante o período em que o CONSEA esteve extinto, conselhos estaduais e municipais de Segurança Alimentar e Nutricional, movimentos sociais, militantes, estudiosos/as… gente que agora, mais uma vez, se agrega na luta pela comida de verdade, para toda a população brasileira: o CONSEA voltou!
Referências
BRASIL. Lei nº 11.346, 2006.
CONSEA. Comida de verdade no campo e na cidade: 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – relatório final, Brasília, 2015.
FAO. O estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, Brasília, 2015.
FAO. Superação da fome e da pobreza rural: experiências brasileiras, Brasília, 2016.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia Alimentar da População Brasileira, 2014.
REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Penssan, 2022.
* Este texto foi elaborado a partir de extratos do trabalho escrito em parceria com Carmen Janaina Machado, “Elementos para uma agenda de pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional à luz da Antropologia”, publicado em 2019, no México, como capítulo do livro Inseguridad alimentaria y políticas de alivio a la pobreza. Una visión multidisciplinaria , organizado por Blanca Rubio e Ayari Pasquier.
* Renata Menasche é Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e conselheira do CONSEA.