Marvada Carne, filme brasileiro de 1985, de direção de André Klotzel, foi premiado no festival de cinema de Gramado, entre outros festivais. O filme narra, desde a perspectiva de Nhô Quim, personagem principal da trama, uma trajetória inspirada pelos desejos de “uma mulher que cuide de mim” e “comer carne de boi”. Imerso na cosmologia rural do interior de São Paulo, provavelmente da década de 1970, o filme é carregado de narrativas, lendas e crenças do universo caipira. Saindo de seu lugar de origem, Quim encontra Carula, filha de Nhô Totó, que, até então, mantinha com Santo Antônio, o santo casamenteiro, uma relação de amor e ódio, esperando que lhe proporcionasse um marido. Quando Quim chega ao vilarejo e Carula o vê como potencial futuro cônjuge, ela recorre aos conhecimentos mágicos da vizinha Nhá Tomasa, para descobrir o que o homem viera buscar naquele local para, assim, poder engatá-lo na ideia de casar. Assim que ficou claro para ela que era carne bovina o que ele queria, Carula inventa que seu pai tem um boi, que seria carneado no dia de seu casamento. Quim, sem saber da artimanha de Carula, convence-se de que deveria casar, afinal de contas, era o que buscava: uma esposa e comer carne.
A repetição
Nhô Quim, nas primeiras cenas do filme, narra seu descontentamento com a repetição de seu cotidiano. Sozinho, apenas com a companhia dos animais, entre os quais se destaca a figura do cachorro, que se mantém fiel até o final do filme, o personagem relata a monotonia de seu cardápio diário: “feijão, arroz, farinha”, “farinha, arroz, feijão”, “arroz, farinha, feijão”. Para além da reclamação sobre a monotonia alimentar, falar da repetição do cardápio também traz à cena a monotonia de fazer as refeições apenas consigo, sem partilha ou convivência.
Comer, segundo Giard (2002), é bem mais do que nutrir um corpo, carrega consigo uma porção de significados que se atualizam a cada refeição. Desde a relação da criança com a mãe, que a alimenta esperando ser amada, a comida se coloca no cotidiano humano não apenas como necessidade fisiológica, mas também como necessidade simbólica. Comer está relacionado também à inscrição de um sujeito a um grupo social ou familiar: “Comer serve não só para manter a máquina biológica do nosso corpo, mas também para concretizar um dos modos de relação entre as pessoas e o mundo, desenhando assim uma de suas referências fundamentais no espaço-tempo” (GIARD, 2002, p. 250). Para além da diversidade do cardápio, Nhô Quim clama por companhia: “uma mulher que cuide de mim”.
Ao discorrer sobre a alimentação rural paulista do início do século XX, Antônio Candido (1987) evidencia a monotonia alimentar como fato na região estudada, sujeita a variações apenas em ocasiões festivas, em que se comia algum tipo de carne, de aves ou de porco. “O leite, o trigo e a carne de vaca eram e são excepcionais na dieta do caipira, constituindo-se índice de urbanização ou situação social acima da média” (CANDIDO, 1987, p. 54).
A vontade de comer carne: comer como ato sexual amoroso
Não por acaso, o protagonista do filme associa a vontade de comer carne de boi à vontade de ter uma esposa e, assim, saciar seus desejos carnais. Para além da partilha social, comer também está relacionado a prazer. Cheiro, gosto, saciedade; o que se sente com a boca, com os lábios, com os dentes. Segundo Giard (2002, p. 265), “O amor é cheio de uma fantasmagoria de devoração, de assimilação canibal do outro a si mesmo, nostalgia de uma impossível fusão identificatória”. O título do filme, Marvada Carne, traz referência ao que pode ser visto, sob o olhar cristão – atmosfera em que a narrativa está envolvida –, como pecaminoso, àquilo que faz sair dos trilhos da “pureza” e adentrar em um universo “desviante” ou “perigoso”.
Do campo à cidade: do passado ao presente
A paisagem em que se passa o filme é mergulhada em uma cosmologia própria ao contexto rural paulista da década de 1970: o Curupira que vem pedir tabaco aos que perambulam à noite; a magia de beber água no mesmo copo de quem se quer descobrir os desejos; a possibilidade de ganhar dinheiro vendendo uma galinha ao demônio. Essa cosmologia também passa pela materialidade dos fatos que se sucedem ao longo do filme: construir uma casa de barro em regime de mutirão comunitário para aqueles que vão casar e servir comida feita na panela de barro e no fogo de chão aos trabalhadores vizinhos são exemplos das provas que o pretendente deve submeter-se para mostrar que está apto a casar com a mulher desejada. Não raro a expressão “naquele tempo era assim” é proferida pelo personagem principal e remete o espectador à sensação de que aquilo que está sendo visto são hábitos do passado que estão desatualizados, remetendo à ideia de que haveria necessidade de modernizar a vida que ali assistimos, como se os hábitos e crenças apresentados pelo narrador fossem substituíveis por hábitos e crenças “modernos”. Esse discurso, da necessidade de modernização, é, entre outros aspectos, o que levou milhares de pessoas a migrar do campo para cidade, em movimento que foi se dando forçosamente, estimulado por tendência global de industrialização das atividades rurais. Como consequência, a situação de camponeses e camponesas ficou ainda mais desfavorável. Esses, em decorrência do que o meio impôs, foram buscando saídas de vida nas cidades. Ou, ainda, buscando outro meio de saída do campo, alimentaram o imaginário/subjetivo que se foi configurando: o “futuro” está na cidade e o rural, atrasado, é algo que deve ser “superado”. Entretanto, como sabemos, a migração do campo para a cidade foi e é, possivelmente, um futuro de incertezas e, muitas vezes, de fome, de necessidades não atendidas.
No filme, vemos que a busca de Nhô Quim por realizar seus desejos na migração do campo para a cidade tem seus desafios. Como a promessa de festejos de casamento envolvia carnear “o boi”, farsa de Carula para fisgar o noivo, Nhô Quim faz um trato com o demônio: vende-lhe uma galinha preta a preço de ouro para ter condições financeiras de fazer seu futuro, com Carula – e, agora, seus dois filhos –, na cidade. A negociação é feita de modo a realizar, enfim, o desejo de consumir carne. Porém, na primeira oportunidade, um malandro citadino, rouba de Nhô Quim os tostões fornecidos pelo demônio. Assim, ele se encontra sem dinheiro e sem perspectivas de prover seu sustento. A última cena do filme mostra Nhô Quim sentado na sarjeta de uma rua qualquer da cidade. A partir daí, imagina um futuro (im)possível: carne, cerveja, esposa e amigos. Uma vida, então, moderna, como fora buscar, afastando-se da cena inicial, de marasmo e solidão.
Essa cena remete à análise de Woortmann (1978), que, no relatório “Hábitos e Ideologias Alimentares em Grupos Sociais de Baixa Renda”, explica que muitos camponeses são saudosos em relação ao tempo em que viviam no meio rural, empregando o termo “fartura” para rememorar a condição que tinham enquanto eram ainda proprietários de alguma terra: “fartura” é um estado de abundância existente na roça, onde as pessoas “não se preocupavam com a compra de alimentos, mantinham sacos de mantimentos […]. Este quadro é o inverso do que descrevem na cidade, pois o salário ganho na indústria não lhes permite adquirir alimento suficiente à subsistência familiar, ainda mais em quantidade semelhante a que declaram ter tido como lavradores, ou seja, na posição de produtores de alimentos” (MENEZES, 1976 apud WOORTMAN, 1978, p. 27).
Nas cenas do filme, podemos ver que as famílias do vilarejo conseguiam tirar seu sustento do local onde residiam, pois ali havia galinhas, ovos, roçado, caça, pesca, sem precisar ter dinheiro em espécie para alimentar-se. Essa situação contrasta com as cenas do filme que se passam na cidade: Quim vende seu bode em troca de algumas poucas moedas e, com elas, compra um pouco de farinha e carne de sol, o suficiente para alimentar o casal durante apenas uma refeição. A comida, que antes era produto da relação com a terra, do cultivo, da caça e da criação de animais, transforma-se em mercadoria. As cenas do casal que se passam na cidade acabam por lembrar a fala de um dos interlocutores de Menezes, citado por Woortman (1978) “Na cidade se eu tivé dinheiro eu como, se não tivé, eu faço só oiá” (MENEZES, 1976 apud WOORTMAN, 1978, p. 27).
Referências
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1987.
GIARD, Luce. Cozinhar. In: CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2002.
WOORTMANN, Klaas. Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda. Relatório final. Série Antropologia, Brasília, n. 20, 1978.
* Cristiane Veeck ([email protected]) é psicóloga, funcionária da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e mestranda em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.