Fortalezas Slow Food e Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) – Comunidades de Fundo de Pasto: Possibilidades de Intersecção foi o tema do Webinário, realizado pela equipe do projeto Slow Food na Defesa da Sociobiodiversidade e da Cultura Alimentar Baiana. Com o objetivo de debater propostas de diretrizes para articulação de Fortalezas de sistemas agrícolas tradicionais, com foco nas comunidades de Fundo de Pasto, a atividade reuniu 19 participantes de diversos órgãos e instituições parceiras que atuam no campo dos sistemas e comunidades tradicionais, além de representantes da Associação Slow Food do Brasil (ASFB).
O encontro foi aberto por Pedro Xavier, coordenador técnico, que fez um resgate do projeto e do objetivo da reunião em tratar da proposta metodológica para articulação de sistemas agrícolas tradicionais como fortaleza. “A atividade foi pensada diante da impossibilidade de realizar as visitas de campo previstas inicialmente no projeto devido a pandemia causada pela Covid-19. Nesse caminho de construção foi criado um grupo de trabalho com pessoas que atuam nos territórios, envolvendo membros de comunidades de Fundo de Pasto. A ideia aqui é escutar os convidados sobre essa articulação tendo como objeto de análise os sistemas tradicionais de fundo de pasto”.
Lígia Meneguello, coordenadora de programas da ASFB, explicou, em seguida, o que são as Fortalezas Slow Food e sua diferença para a Arca do Gosto. “Enquanto a Arca do Gosto é um catálogo colaborativo de alimentos em risco de desaparecimento biológico e cultural, a Fortaleza parte do alimento da arca e faz uma relação mais profunda com as comunidades produtoras. É um passo a mais para que o Slow Food e outros atores sociais somem esforços para a superação de desafios”. Lígia ressaltou ainda que a Fortaleza pode ter um foco na salvaguarda de alimentos, nos saberes, nas práticas e nas paisagens ameaçadas, fazendo uma conexão com mercados alternativos. Ao todo, são mais de 603 Fortalezas no mundo e, no Brasil, cerca de 20.
Segundo Lígia, as articulações para novas fortalezas tem refletido perspectivas para alinhamento com políticas públicas – como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) ou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – com foco na soberania e segurança alimentar e nutricional, da conservação e valorização da cultura de sistemas agrícolas tradicionais. “Isso vem acontecendo por meio de dois projetos. Esse da sociobiodiversidade, realizado aqui na Bahia, e o outro é o Território e Cultura Alimentar, no Ceará. As etapas para a articulação das Fortalezas envolvem reuniões e encontros, visitas a campo, diagnósticos participativos, capacitações, elaboração dos protocolos de produção, uso da logomarca nos rótulos e de etiquetas narrativas. Constrói uma comunicação para além do produto, com foco na cultura, na história do lugar de onde veio”, concluiu.
Para apresentar a proposta, Nathan Dourado, que integra a equipe do projeto, relatou todo o percurso feito para o levantamento das informações e construção dessa metodologia para articulação de uma fortaleza de SAT. A ideia teve início em agosto de 2020, a partir da necessidade de remanejamento das atividades presenciais do projeto por conta da pandemia que impediu a realização de visitas de campo. Junto aos representantes de territórios e comunidades tradicionais, apoiadas pelo projeto Pró-Semiárido, e representantes da Companhia de Ação de Desenvolvimento Regional (CAR/SDR) foi formado um grupo de trabalho para construir essa metodologia. “Foram realizados quatro encontros desse coletivo e a realização desse Webinário é justamente uma validação pública do que foi elaborado coletivamente a partir dos olhares de especialistas e pessoas que atuam nesse campo para fazer esse diálogo conosco. Também está sendo elaborada uma cartilha que irá sistematizar essas propostas e diretrizes de aproximação das fortalezas de SAT”. Nathan cita que, a partir dos relatos, as comunidades de Fundos de Pasto foram caracterizadas pelos seus modos de vida, suas culturas e festejos, ofícios e fazeres e hábitos alimentares.
A partir das reuniões com o grupo de trabalho, as diretrizes levantadas foram pensadas em quatro etapas. A primeira delas se refere a aproximação da comunidade para diagnóstico territorial, com aplicação de questionário/entrevista, oficinas de apresentação do Slow Food e concepção dos SATs, gerando como produto um protocolo de caracterização do SAT. A segunda trata do inventariamento da cultura alimentar, a partir do levantamento participativo dos alimentos e saberes-fazeres, além da realização de uma oficina de formação sobre o que é uma Comunidade Slow Food. Essa etapa gera um inventário de saberes-fazeres e de indicação de alimentos para Arca do Gosto, além da formalização da comunidade como parte da rede Slow Food. A terceira é a de elaboração do protocolo de salvaguarda, considerando a sistematização dos acordos coletivos para uso comum e demandas para conservação do SAT. Esta fase gera um protocolo de salvaguarda assinado pelos membros da comunidade com projeção de cinco anos. Por fim, a quarta e última etapa é a celebração, com a entrega do documento que identifica a Fortaleza Slow Food, dos postais e das etiquetas narrativas.
Após a apresentação da proposta, os participantes interagiram com suas impressões, dialogando com o trabalho que desenvolvem. O representante da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO Brasil), Marcello Broggio, fez um breve histórico do programa em que atua, Globally Important Agricultural Heritage Systems (GIAHS), e que já promoveu o reconhecimento de 63 comunidades tradicionais. Para ele, o GIAHS e o Slow Food podem caminhar conjuntamente nesse reconhecimento das comunidades. “Um primeiro passo seria apresentar as ferramentas para as comunidades, com vantagens, objetivos, custos, para que conheçam esse trabalho. Com as condições favoráveis, construir um protocolo conjunto onde um pode fortalecer o outro”, apontou.
Aurélie Fernandez, também do GIAHS, lembrou que as Fortalezas estão alinhadas com o programa. “É importante começar a trabalhar juntos desde agora, identificar como as fortalezas Slow Food podem apoiar o trabalho do GIAHS. As etiquetas dos produtos tem uma sinergia potencial muito importante para agricultores e campesinos. Pode-se aproveitar a experiência do Slow Food no desenvolvimento de atividades culturais, empreender o gastroturismo e turismo sustentável. São muitas atividades que se poderia imaginar, muita coisa para explorar juntos e me alegro que começamos hoje essa conversa. Sou uma apaixonada pela valorização e conservação do patrimônio brasileiro”, completou.
André Araújo, da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo, ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SAF/MAPA), afirmou ser fundamental não olhar só os alimentos, mas os sistemas alimentares, que é o que a Fortaleza traz. “Um olhar mais completo cabe à comunidade. Temos ainda muito o que fazer em relação a valorização dos produtos também e colocar essas estratégias à disposição das comunidades é o nosso papel e elas decidem o que é mais estratégico para elas”. Também integrante do SAF/MAPA, Anderson Bonilha, complementou sobre a importância do reconhecimento da sociobiodiversidade focada no SAT. “Nesse momento, pensando em uma nova fortaleza voltada para SAT, é importante pensar quais as complementaridades entre essas estratégias e as que estão sendo tocadas pelo poder público. Quais as novas estratégias que o Slow Food está pensando e como podem ser complementares às políticas públicas? Como vai promover os produtos e os saberes associados? O que busca conservar? Agrobiodiversidade, paisagens, saberes tradicionais? O que constitui uma fortaleza de SAT? O que é chave é o processo e não apenas o reconhecimento em si”.
A representante do Departamento de Patrimônio Imaterial, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Natália Guerra Brayner, reforçou que as políticas de salvaguarda de natureza imaterial têm forte relação com a cultura alimentar. “Os reconhecimentos são os pontos de partida. A partir daí o estado brasileiro vai desenvolver ações de preservação. Os SATs no Brasil envolvem referências culturais, direitos sociais, culturais e processos de afirmação identitária”. A Embrapa Alimentos e Território, também presente por meio dos pesquisadores Patrícia Goulart Bustamante e João Roberto Correia, pontua que reconhece no SAT um instrumento de pesquisa que permite dialogar com outras áreas de conhecimento. “A Embrapa tem muito interesse nessa aproximação dos SAT com fortaleza Slow Food”, afirma Bustamante. Pelo Instituto Federal Baiano, estava o professor Aurélio Carvalho, que lembrou das muitas ameaças que as comunidades vêm sofrendo, apesar das suas riquezas genéticas. Por isso, vê com bons olhos a aproximação da instituição de ensino com o Slow Food, com a FAO, com as comunidades de Fundo de Pasto e suas organizações.
Carlos Eduardo Cardoso Lima, da Articulação Estadual de Fundo de Pasto (AEFP), a partir da sua vivência como morador da comunidade de Fundo de Pasto Monte Alegre, município de Andorinha (BA), destacou a função das associações que se organizam para fazer a defesa do território diante das ameaças de grilagem, mineração, agronegócio, carvoarias e eólicas. “Essas comunidades são as que mais preservam porque sem a Caatinga não conseguem sobreviver. Sofremos ameaça desde os anos 70 e o enfrentamento não pára. As comunidades não vivem mais em paz e essa identidade de Fundo de Pasto surge em torno da luta. São comunidades centenárias e a forma de ocupação teve escravos, vaqueiros, compras de terra, viam de fora, relação com indígenas em algumas delas”. Carlos Eduardo denunciou ainda que as empresas de eólica e a mineração estão levando o coronavírus para as comunidades. “As empresas continuam trabalhando na pandemia e contaminam as comunidades”, alertou.
Diante dos relatos, Gabriella Pieroni, da ASFB, e pesquisadora dos SATs falou da importância das experiências se apoiarem por serem complementares e poderem beneficiar de fato as comunidades. “Precisamos pensar metodologias e ferramentas de maneira que uma não se sobreponha à outra, mas que se apoiem”. Da mesma forma, Valentina Bianco ressaltou a sinergia que está sendo construída entre os diferentes atores. “Quando cada um chega com seus programas, mas não dialoga entre si não leva a nenhum impacto nas comunidades, fica como campo de experimentação das organizações de fora. Por isso a importância desse momento. A gente vem conversando com Slow Food internacional para fazer com que essa visão de SAT como fortaleza seja de fato reconhecida. Uma nova visão do que o Brasil vem construindo enquanto fortaleza, como mais uma forma de articular fortalezas Slow Food”, finalizou.
O projeto Slow Food na Defesa da Sociobiodiversidade e da Cultura Alimentar Baiana é fruto de uma parceria entre a Associação Slow Food do Brasil e o Pró-Semiárido, executado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), com financiamento do Fundo Internacional Agrícola (FIDA).