Se, por inescrutável planejamento divino, Cristo tivesse encarnado no Japão, teria consagrado o arroz e o saquê, e o mistério da Eucaristia continuaria a ser o que é. (ECO, 2009, p.49)
Na Colônia Ramos, localizada no meio-oeste catarinense, no pequenino município de Frei Rogério, em que se realizam diversas produções agrícolas, celebra-se o florescer de cerejeiras, o Sakura Matsuri. O festejo e ritual de admiração dessa árvore e da sua flor estão marcados, no calendário do Japão, no mês de abril. Do final do inverno e início da primavera, de lá do País do sol nascente, alguns japoneses trouxeram o hábito de festejar a flor(ação) das cerejeiras que, em Santa Catarina, ocorre entre os meses de agosto e setembro. A festa da floração da cerejeira tem sido realizada por essa comunidade rural nipo-brasileira desde o ano de 1997.
Há quem diga que a festa da floração da cerejeira em Frei Rogério é um caso recente de invenção de tradição. Mas os imigrantes japoneses que ali se estabeleceram atribuem sentido de niponicidade (UEMURA, 2011) à cerejeira: exótica ao ambiente natural catarinense, a planta conhecida no Japão como Sakura não é estranha às pessoas que ali se fixaram, sobretudo àqueles nascidos em terras japonesas, que trouxeram junto com as árvores os rituais de contemplação. No Japão, a árvore e sua flor simbolizam a sensibilidade da vida, tanto o sentir as mudanças das estações, como a fragilidade e finitude do viver.
A vontade dos promotores da festa de encenar e construir um pedaço japonês no Brasil não torna a celebração artificial, nem a invalida como espetáculo turístico. Alguém vindo de fora da colônia que vá pela primeira vez ao Sakura Matsuri poderá perceber que a autenticidade do ritual japonês é composta pela soma de celebrações e vários acontecimentos realizados junto do festar. Entre os rituais e aspectos da cultura japonesa celebrados estão a cerimônia do chá; kendô (arte marcial); yukata (mulheres vestidas de kimono, vestimenta japonesa atualmente utilizada em ocasiões solenes); taikô (tambores); odori (dança); ikebana (arranjo de flores); moti tsuki (bolinho macerado de arroz) e muitos outros aspectos da cultura e gastronomia que constroem, no seu conjunto, um ambiente "tipicamente japonês".
O empenho para que esse ambiente se consagre é percebido na linguagem: muitos se comunicam entre si em japonês e as canções tocadas são japonesas, embora algumas tenham frases e trechos em português. A própria manutenção do nome da festa apenas em japonês (Sakura Matsuri) evidencia a ligação com o Japão.
Ao analisar o ritual, seria exagero tratar a festa da cerejeira, com tantas outras realizações e encenações paralelas, apenas como um pretexto para a comunidade se mostrar como japonesa e arrecadar capital econômico com suas inúmeras atrações. Realiza-se todo um trabalho de festar (BRANDÃO, 2009), resultado da coesão das pessoas dali, caracterizando o evento como, de certa maneira, também uma celebração comunitária.
Talvez seja possível afirmar que, o mesmo modo que as árvores foram plantadas na colônia uma ao lado das outras, tanto as japonesas (as cerejeiras) como as nativas do clima subtropical brasileiro (as araucárias), a cultura da Colônia Ramos reflete hibridização.
Uma das mais curiosas "misturas" observadas na festa da Colônia Ramos é a bebida alcoólica feita com Saquê (produzido por um agricultor japonês do local). Se a "caipirinha" – não só pelo nome, mas pelos ingredientes – leva consigo a marca e identidade do Brasil, no Sakura Matsuri, longas filas se formam para consumir a "Sakerinha", preparada com gelo, açúcar, abacaxi ou morango, tendo o saquê como ingrediente principal. O sucesso comercial da bebida, no dia da festa, sugere o quanto seu sabor é também aceito e apreciado por turistas e festeiros. A "Sakerinha", mais do que as muitas formas "abrasileiradas" de preparação do Yakisoba e de outros pratos oferecidos na festa, chama a refletir acerca dos encontros e resultados criativos das misturas.
Pode-se interpretar o turismo que a festa da floração da cerejeira promove a partir da busca dos citadinos e, consequentemente, alocação de recursos financeiros e consumo, de um rural repleto de "amenidades", representado como mais equilibrado, tranquilo, um momento de escape e inverso da vida agitada e conturbada das grandes cidades (JEAN, 2010). Ou seja, para além das grandes festas urbanas e étnicas que ocorrem principalmente no mês de outubro em Santa Catarina, a festa da floração da cerejeira pode representar o consumo de encenações no rural, do "diferente" e do "exótico oriente" pouco conhecido, mas imaginado e idealizado. Um consumo do que se pensa culturalmente como japonês, associado às paisagens, cores, odores e situações rurais.
Integrada e parte da sociabilidade em geral, a Colônia Ramos é um exemplo das conexões e redes em constante contato das pessoas dali com o Japão e com várias regiões do Brasil, inclusive com grandes centros urbanos. Japoneses trouxeram práticas e formas de vida do País de origem que, ao inserirem-nas no Brasil, sofreram modificações, foram re-significadas e alteradas com influência do local em que se fixaram. Na primavera, quando as flores das cerejeiras renascem, os nikkeis (descendentes de japoneses) se apresentam como se refletidos através delas: a fragilidade do mundo, a efemeridade da vida e as belezas fugazes, assim como a celebração do florir. É também essa uma festa que os torna um pouco mais japoneses. (MARTINELLO; CARVALHO, 2010).
Na festa da floração da cerejeira, também se celebra o recomeço e o caráter parcialmente cíclico da vida, das flores, das árvores e das pessoas que as contemplam. Da flor faz-se festa e da festa, colhem-se muitos frutos, tanto para quem a promove, como para quem a frequenta e passa a conhecer um pouquinho mais o que os japoneses de Frei Rogério apresentam sobre o Japão que criaram para si mesmos e para os de fora. Ao apreciar a celebração da flor, observam-se rituais e saboreiam-se gastronomia, cores, paisagens e sabores nem tão brasileiros assim, nem tão japoneses de fato.
Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O trabalho como festa: algumas imagens e palavras sobre o trabalho camponês acompanhado de canto e festa. In: GODOI, Emilia Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo (Org.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.
ECO, Umberto. Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 2009.
JEAN, Bruno. Do Desenvolvimento Regional ao Desenvolvimento Territorial Sustentável: Rumo a um Desenvolvimento Territorial Solidário para um bom Desenvolvimento dos Territórios. In: VEIRA, Paulo F. et al. (Org.). Desenvolvimento territorial sustentável no Brasil: subsídios para uma política de fomento. Florianópolis: APED, 2010.
MARTINELLO, André Souza; CARVALHO, Ely Bergo de. Japoneses em Santa Catarina: Etnicidade e Modernização Agrícola. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; TAKEUCHI, Márcia Yumi (Org.). Imigrantes Japoneses no Brasil: Trajetória, Imaginário e Memória. São Paulo: Edusp, 2010.
UEMURA, Karoline Kika. Entre a Floração das Cerejeiras e o Cair das Flores: memórias, invenções e fluxos migratórios entre Núcleo Celso Ramos e Japão (1990-2010). In: XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, USP, 2011.
* André Souza Martinello é Mestre em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP).