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Piracuí, uma iguaria indígena

Convívio Slow Food São Paulo Realiza Degustação De Piracuí

piracui-a-farinha-2.jpgPiracuí. Foto: Neide Rigo

Em fevereiro deste ano o Convívio do Slow Food São Paulo se mobilizou a realização de um laboratório do piracuí, em que vários cozinheiros e chefes prepararam pratos com a farinha de peixe seco trazida do município de Prainha, no Pará, pelo associado Luca Fanelli.

O piracuí Tamuá é elaborado pelas mulheres da comunidade de pescadores de Vira-Sebo, com longa tradição no feitio desta farinha a partir de técnicas tradicionais, que envolve um meticuloso trabalho artesanal. Justamente por isto, o piracuí está sujeito a toda sorte de contaminações caso não seja feito com todo o cuidado higiênico necessário. Mas pescadores e pescadoras desta comunidade, além de fazê-lo com o maior capricho para manter a qualidade, ainda fazem uso de boas práticas de manejo para preservar o meio ambiente.

Naquela região, a farinha é feita normalmente com acari (Lipossarcus pardalis), mas pode ser feito com outros peixes como o tamuatá (Callichthys callichthys), por exemplo. O peixe, ainda fresco, é cozido ou assado, livre de sua carapaça (o acari e o tamuatá são tipos de cascudos), e a carne é desfiada, descartando partes não desejadas como restos de sangue, gorduras, que deixa o produto rançoso, e espinhas. Eventualmente pode apresentar ovas, mesmo respeitando o período de defeso dos peixes. Só então vai para tachos de barro ou fornos abertos para secar sem queimar, sempre mexendo, até ficar tudo bem seco. Passa-se, finalmente, por peneira, resfria e já pode ser guardado por meses a fio.

É uma ótima provisão protéica para os meses sem pesca e seu feitio evita qualquer desperdício de pesca excessiva na época de abundância. Enquanto 100 gramas de carne fresca de acari tem cerca de 18 gramas de proteína, a mesma quantidade de farinha de peixe tem por volta de 78 gramas de proteína, segundo dados da Tabela de Composição Química dos Alimentos, de Guilherme Franco. Isto significa que 23 gramas do produto seco é o mesmo que 100 gramas do peixe fresco em relação à proteínas. E trata-se de proteína de ótima qualidade biológica, com todos aminoácidos essenciais, pronta para substituir carnes e outros produtos protéicos. Sem contar que é uma delícia, com sabor de peixinhos secos japoneses, sem gosto de gordura ou ranço e sem muito sal. Todas estas características fazem dele um alimento que, além de nutritivo, é prático e versátil, afinal é leve, fácil de armazenar, dispensa geladeira e não precisa ser reidratado antes de usar. Uma excelente opção como complemento nutricional para crianças na merenda escolar, e se adapta a uma infinidade de preparos.

Atualmente o preparo está restrito principalmente àquela parte norte do país, mas já esteve presente entre os indígenas, em todo o Brasil, como se vê abaixo, nos relatos dos viajantes, extraídos do Arquivo Ernani Silva Bruno, Equipamentos da casa brasileira: usos e costumes, do Museu da Casa Brasileira.

Referindo-se à alimentação dos habitantes de certas partes do país:
"Nalguns lugares prepara-se com o peixe assado uma espécie de farinha alimentícia (Piracuí), para o que se tiram as espinhas de peixe assado, pisa-se num almofariz e põe-se a massa à secar em vaso de barro."
1868/1871 CANSTATT, Oscar. Brasil, a Terra e a Gente (1868). Rio de Janeiro, Irmãos Pengetti Editores, 1954. p. 126

Referindo-se às índias Apiacás:
"As mulheres […] põem o peixe a cozer, e quando o há em abundância assam-no em pratos de terracota; fazem-no secar e socam-no com as espinhas, o que constitui a farinha de peixe, com a qual enchem sacos, que guardam como mantimento."
1828 Rio Arinos, Mato Grosso FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829). São Paulo, EDUSP/ Cultrix, 1977. p. 235

Referindo-se aos índios Tupinambás:
"Preparam também uma sorte de farinha de peixe e carne, do seguinte modo: assam a carne, ou o peixe, na fumaça sobre o fogo, deixam-na secar de todo; desfiam-na, torram-na de novo depois, ao fogo, em vasilhas queimadas para tal fim e que chamam inhêpoã; esmagam-na após em um pilão de madeira e passando isto numa peneira, reduzem-na a farinha. Essa se conserva por muito tempo. O uso de salgar peixe e carne, nem o conhecem. Comem a tal farinha junto com a de mandioca, e isto tem muito bom gosto."
1554 Enseada de Mangaratiba, Rio de Janeiro
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil (1547-1554). São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia Editora, 1974. p. 163

Na panela

A proposta do Luca era de que os cozinheiros do Convívio se unissem na produção de receitas com piracuí, para incentivar seu uso não só localmente, mas Brasil afora. E o resultado surpreendeu. Cada um pensou receitas de acordo com suas referências e preferências e uma grande mesa com delícias foi montada no restaurante Júlia, que gentilmente nos cedeu o espaço.

Os fiapinhos de peixe lembram de imediato um bacalhau seco finamente desfiado. E suspeito que o bolinho de bacalhau tenha sido a inspiração para o tradicional bolinho de piracuí, que parece ser o prato que melhor representa o produto Brasil afora. Como o único prato que eu já tinha comido com piracuí era o bolinho, comecei por ele. Mas, mesmo que não soubesse nada do produto, certamente seria a primeira coisa que me viria em mente. Assim como o bolinho de bacalhau, o de piracuí também costuma ser feito com batatas. Mas achei por bem usar a raiz do Brasil e fiz com mandioca, usando, porém, a técnica portuguesa de fazer uma massa mais mole e aerada e ir pingando na gordura quente. 

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Bolinhos de mandioca com piracuí. Foto: Neide Rigo

 

Como usei mais mandioca que piracuí, achei mais honesto chamar minha versão de bolinho de mandioca com piracuí e não o contrário. Ficou tão bom e fofinho que com ele a gente nem sente muita falta da iguaria portuguesa.
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Sopa de piracuí com leite de coco. Foto: Neide Rigo

E a sopa foi nascendo já no fogão. Coloquei temperinhos usados comumente no Norte, alho, pimenta de cheiro doce, cebola, pimentão, tomate, coentro-de-peixe (chicória-do-pará), alfavaca, além de água, farinha d´água e piracuí. Aí provei e achei que ficaria bom ali um pouco de leite de coco e umas gotas de suco de limão. E, pronto, ficou assim, meio amazônica, meio tailandesa, com ingredientes comuns para todos nós. Para ver as receitas do bolinho e da sopa, clique aqui.

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Casquinho de Piracuí. Foto: Neide Rigo

Com inspiração no prato de caranguejo da Ilha do Marajó, decidi ainda fazer uns casquinhos de piracuí, cobertos com farinha de mandioca amarela marajoara. A receita está aqui.

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Pastel de forno recheado com piracuí. Foto: Cênia Salles

Aproximando-se do piracuí, Anayde Lima também pensou no bacalhau: "fiz uma pequena brandade de piracuí, usando batata e um temperinho". Como no cardápio da Gastronomia Júlia, comandado pela Anayde, um dos petiscos mais apreciados é um pastelzinho redondo feito no forno de lenha, com variados recheios, ela o experimentou com este novo ingrediente, com um ótimo resultado.

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Sobá com piracuí. Foto: Cênia Salles 

Já o Gustavo Rocha Ramalho de Azevedo, o Guga, associou logo o piracuí com o Oriente. Explica: "como no oriente se usa muito peixe em flocos, eu tentei fazer uma brincadeira mostrando como os chefes poderiam usar este ingrediente em São Paulo". E assim apresenta o rolinho tailandês: "fiz um rolinho de papel de arroz com manga e piracuí e uns legumes, aí fiz um molho agridoce tailandês". Guga também realizou uma versão brasileira e amazônica do sobá, colocando o piracuí no lugar do peixe.
Clique e veja a Receita do sobá

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Marli Bolognini e seu purê de pupunha com piracuí.
Foto: Cenia Salles

Outra que topou o desafio foi Marli Bolognini, da AngraParaty: "resolvi fazer um purê que leva pupunha processada (não o palmito, mas a fruta cozida e descascada) com um pouco de leite, e um pouco de purê de batata, passada na manteiga… e daí jogamos um pouco de piracuí puro em cima do purê". Assim a pupunha, tipicamente amazônica, apesar neste caso de ser produzida organicamente pela Marli no estado do Rio de Janeiro, voltou às raízes, encontrando o piracuí.

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Cuscuz de farinha ovinha com piracuí. Foto: Cenia Salles

O intuito de abraçar o imenso Brasil está também na base do prato elaborado pela Cênia Salles, líder do Convívio de São Paulo, que explica: "eu fiz um prato aproveitando que tinha uma farinha d´água de Uarini, tipo ovinha, que é uma farinha de mandioca amazônica. Hidratei esta farinha com um caldo de legumes (cenoura, alho, etc.) e um pouco de leite de coco, aí fiz um refogadinho com cebola, tomate, alho, louro, cebolinha e palmito. Cozinhei o piracuí neste molho e juntei uma "caponata" de coração de banana. A idéia deste prato é que tudo é brasileiro, ou de origem ou de adoção: coco, casca de banana, farinha, piracuí".

O que se concluiu deste laboratório de preparo e degustação do piracuí é que esta farinha de peixe é um ingrediente extremamente rico e inovador que pode ser tratado como uma versão brasileira de matérias primas já consolidadas nos cardápios e em outro, despertador de novas idéias e associações.

 


Texto de Neide Rigo, nutricionista e autora do blog Come-se, é membro do Convívio Slow Food São Paulo e faz parte da Comissão Nacional da Arca do Gosto.

Colaborou: Luca Fanelli, consultor em desenvolvimento sustentável; está atuando no Vale do Ribeira pelo Instituto Socioambiental e no Baixo-Amazonas (Pará), junto à ONG italiana Fratelli dell’Uomo. Site: www.lucafanelli.net

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