Tem que ter canela e noz-moscada, senão não é cuca!
A caloria pro pão puro de milho é como a da rosca de polvilho, tem que ser bem alta. Agora, pra cuca tem que cuidar: coloca uma palha de milho, se queimar ta muito quente… passa folha de bananeira ou uma vassoura molhada pra tirar caloria, senão vai queimar as cucas!
Eram três doceiras me relatando as receitas de cuca, pão de milho, rosquete e rosca de polvilho. Se as outras que eu havia convidado também tivessem vindo, não sei dizer qual seria o resultado de nossa reunião. Discutir receitas entre agricultoras exige muita atenção! Principalmente de quem não é tão familiarizado com esse cotidiano de roça, cozinha e forno.
"Duas pra cinco", "tira quatro" – a discussão das receitas seguia, agora tratando da quantidade de claras e gemas nas preparações, que, segundo elas, é muito diferente caso usem ovos de casa ou não. Cada doceira demonstrava seu próprio jeito! Talvez por isso pareciam tão cuidadosas com a forma como discutiam suas receitas (sabe como é…). Melhor para mim, que intermediava a reunião e tomava notas, para preencher o formulário que poderia proporcionar que participassem do Terra Madre Brasil – Encontro Nacional de Comunidades do Alimento, que aconteceria em Brasília, dentro de alguns meses.
Naquela época, eu havia há pouco concluído minha dissertação de mestrado, pesquisa que me proporcionou conhecer algumas famílias rurais de Maquiné e, a partir da qual, percebi a permanência e a importância do forno de barro na alimentação cotidiana e festiva das comunidades rurais do município. Foi também a partir da vivência acadêmica que conheci o Movimento Slow Food. Para mim, esse era o início de uma caminhada e de um convencimento, sobre a necessidade de articular o rural e o urbano, como estratégia de desenvolvimento e qualidade de vida, em ambos os espaços.
Para as doceiras – agricultoras, mães e avós -, a possibilidade da viagem para o Terra Madre despertou um processo de valorização de seu trabalho: "às vezes o pessoal de fora vê as coisas de um jeito que a gente não vê mais… não valoriza mais, sabe?".
Depois de muitos acertos, idas e vindas, partimos em três para Brasília, no início de outubro de 2007. Viagem longa, de ônibus, junto com outros agricultores do Rio Grande do Sul, que seguiam para a IV Feira Nacional da Agricultura Familiar, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, que aconteceria simultaneamente ao evento em que estávamos indo participar.
Foram quatro dias de encontros e trocas. Afinal, dentre os quase 300 participantes do Terra Madre Brasil, havia pescadores, agricultores familiares, indígenas e quilombolas de todo o País, trazendo produtos dos mais diversos: arroz vermelho, mel de abelhas nativas, feijões, doces de licuri, castanha de baru do cerrado, castanha do Brasil, berbigão de Santa Catarina, ostra de Cananéia, diferentes tipos de farinha de mandioca, diversas sementes de milho crioulo… Dentre outros 70 grupos de pequenos produtores, estavam as doceiras de Maquiné, com suas cucas, broas, bolachas e rosquetes.
Maquiné é um município essencialmente agrícola, localizado no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Situa-se no limite sul do que restou de Mata Atlântica no Brasil, congregando hoje mata, agricultura e comunidades com diferentes culturas. Nesse contexto, temos realizado – Universidade, Ong, comunidades locais e movimento Slow Food – trabalhos e projetos: envolvendo a comida, a cultura, a saúde e o desenvolvimento.
Grande parte das agricultoras de Maquiné tem, entre suas tarefas semanais, a prática de assar uma fornada de pães para a família. Às vezes, capricham também em outras receitas feitas no forno de barro: bolachas, rosquetes, broas, cuca, merengue… que costumam deixar preparadas, para as visitas.
A passagem do tempo em Maquiné é marcada pela realização de festas aos Santos e Santas padroeiros(as), realizadas pelas comunidades rurais. Nessas festas, o trabalho das doceiras é de grande importância: os produtos que fabricam são parte fundamental da festa, muito procurados pelos visitantes.
Mas, segundo Dona Sílvia, uma das doceiras mais antigas do município, corre-se o risco de não haver mais quem faça esse trabalho daqui a alguns anos, "pois ninguém mais quer aprender… se valoriza muito pouco… e o forno judia muito da gente". Ela está se referindo a problemas de saúde advindos de um ritmo de trabalho muito intenso com o forno, que combinou, para a maioria das doceiras até então, temperaturas extremas e pouca estrutura para um trabalho mais seguro.
O saber-fazer envolvido no uso do forno de barro envolve desde a escolha da melhor lenha para a produção de boas brasas, o ponto certo da temperatura para cada doce, a quantidade limite de formas por fornada e o tempo ideal para que assem de modo a atingir as características de cor, sabor e textura estabelecidas pela tradição.
Os doces do forno de barro são tão conhecidos em Maquiné que construíram padrões de identidade e qualidade que devem ser atingidos por quem os produz, e que normalmente são conhecidos e apreciados (ou exigidos) por quem os consome. É assim que toda cuca para ser cuca precisa ter canela e noz-moscada, "senão não é cuca!". Além disso, ela deve ser doce, com "sal e açúcar no ponto", e a cor uniforme, marrom claro. O consumo de cuca, pão de milho, rosquete, broa, faz parte de um passeio pelo município, compõe a identidade de seus moradores e agricultores e integra as lembranças do lugar, tanto para seus filhos como para os visitantes.
Todo sábado pela manhã, em frente ao Salão Paroquial do centro da cidade, ocorre a feira do produtor. Lá, na banca da família de Eronita e Lauro Bonho, pode-se encontrar os doces feitos pela família. Eronita, ou melhor, a "Nita", coordena a produção de quase mil cucas por semana, fora todos os outros produtos: pães, bolachas, rosquetes, broas, roscas, dentre outros. Assim como muitas agricultoras de Maquiné, Nita é descendente de imigrantes de origem italiana, nasceu e foi criada em uma comunidade rural, distante do centro da cidade, sempre trabalhando com uma produção agropecuária bem diversificada – vaca de leite, porcos, roças de aipim, milho, feijão, moranga, além do pomar e da horta -, capaz de atender, em primeiro lugar, às necessidades alimentares de sua família.
O encontro com o movimento Slow Food, em 2007, através da participação no Terra Madre Brasil, iniciou um processo de valorização do trabalho da agricultora/doceira, assim como o convívio com outras agricultoras e técnicas-pesquisadoras, em reuniões e encontros preparatórios, agora, para uma segunda e mais longa viagem – o terceiro Terra Madre – Encontro Mundial das Comunidades do Alimento, que aconteceria em outubro de 2008, na Itália.
Para essa viagem, um grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS que atua em Maquiné (em que me incluo) promoveu momentos de convívio e de engajamento com a proposta do Slow Food e do Terra Madre, com a participação de diferentes atores sociais do município. Um deles foi a visita feita por algumas jovens do Ensino Médio para a propriedade da família Bonho.
Foi uma visita legal. Dona Eronita nos recebeu muito bem. Conversamos sobre a sua ida junto com a Mari para a Itália, para "expor" nossa maravilhosa culinária. D. Eronita comentou que faz tudo com amor, e ela gosta muito de cozinhar, e até pensa em fazer algumas receitas diferentes (pão de milho puro, receitas com menos açúcar…). E para encerrar a reunião, ela fez um café com cuca, bolacha, rosquete (feito na hora), tudo feito por ela mesma e com a ajuda de três moças. Tudo estava uma delícia! Foi uma tarde diferente, e com muito aproveitamento para nosso conhecimento.
O relato acima, escrito por Natália (16 anos), demonstra um pouco do potencial mobilizador que a valorização de saberes e práticas locais oportuniza. As ações, desenvolvidas com o objetivo de aglutinar as pessoas em um processo de valorização da cultura local, têm contribuído para a construção e fortalecimento de identidades, para a participação social e para o exercício da cidadania.
Nita representou as agricultoras/doceiras de Maquiné no encontro internacional, sempre demonstrando grande alegria em conhecer o país de onde vieram seus ancestrais. Lembro de uma situação, durante o encontro na Itália, em que diferentes participantes do Brasil jantavam juntos. Conversávamos à mesa com agricultoras/quebradeiras de coco de babaçu do Maranhão, e Nita falava, com orgulho, que era italiana, causando grande estranhamento por parte de Dona Zezé, agricultora maranhense que a ouvia. Nos momentos seguintes, presenciei uma bela conversa: mulheres extraordinárias, de origem e vida simples, nascidas no mesmo País, agricultoras e moradoras do meio rural, dando-se conta de suas diferenças, mas, também de sua identidade em comum – todas ali, independente se do Norte ou do Sul, brasileiras e sul-americanas. O confronto com o diferente, com pessoas de todo o mundo, servia para fortalecer identidades e, quem sabe, reforçar o que havia de comum entre nós, brasileiras(os).
Voltando a Maquiné, a mobilização segue. Recentemente, em agosto de 2009, a Comunidade de Doceiras de Maquiné, em parceria com pesquisadoras da UFRGS, promoveu o II Encontro de Doceiras de Maquiné. Passamos um sábado juntas, modificando receitas já testadas em um primeiro encontro: pães (agora também integrais), bolachas (agora também de milho) e rosca de polvilho.
Hoje, o uso do forno de barro permanece parte do cotidiano de algumas famílias que estão no meio rural. Para elas, os saberes para a produção dos doces continuam próximos e vivos: desde a construção e curtição do forno, a seleção das lenhas, a preparação do fogo e da temperatura certa, as receitas, as formas de preparo de cada doce, a produção da matéria-prima. Apesar de grande parte dos descendentes mais jovens desta tradição alimentar não demonstrarem interesse na continuidade do ofício de doceira, o "retorno ao rural" simboliza um movimento de valorização dos produtos do forno de barro, assim como de outros alimentos e comidas com a cara do rural. Nesse movimento, participam novos moradores da região (alguns de origem urbana), assim como famílias locais, que prezam pela defesa da tradição e da qualidade alimentar, investindo também no trabalho com o turismo para permanecer na colônia.
Ao valorizar um produto que é feito por gerações e gerações, resgatamos o valor que as próprias famílias rurais viram enfraquecer ao longo dos anos de disseminação de uma ideologia que valoriza o moderno e prático e que fez (e faz) com que os jovens desejem sair do campo…
Não temos respostas imediatas para questãos tão antigas e complexas. O que percebemos, após cinco anos de envolvimento, é a consolidação de uma grande e bela rede, especialmente protagonizada por mulheres.
Agricultoras, doceiras, professoras, técnicas, pesquisadoras, jovens, viveiristas, militantes, artesãs… uma grande rede de mulheres. "A gente pega amor pelas pessoas", me dizia uma professora, de uma escola municipal. Hoje, os abraços, os encontros e as conversas parecem cada vez mais desejados. E a distância começa a revelar uma saudade. Independentemente de respostas, esta rede (afetiva e efetiva) é, certamente, um dos resultados que viemos colhendo.
* Mariana Oliveira Ramos é Nutricionista, Mestre em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS, pesquisadora do DESMA, técnica da ong ANAMA e aprendiz de doceira. Participa do Convivium Produtos da Terra – Rio Grande do Sul, do Slow Food.