Pode ser que se perceba ao dobrar a esquina e avistar ao longe uma cortina escapando da janela, ou então ao ouvir o tocar de um sino que preenche a rua vazia. Pode ser que se perceba ao caminhar por uma calçada estreita feita de pedras irregulares, ao escutar a mistura de conversas entre as barracas de uma feira, ao ser hipnotizado pelos perfumes que saem da porta entreaberta de uma cozinha alheia.
Momentos em que se reconhece a presença forte da memória coletiva, a soma dos anos que passaram e das histórias que ficaram, o acúmulo de saberes e experiências. Algo que não tem forma nem pode ser capturado por uma fotografia: a alma, o talento, a vocação de cada território. O genius loci, essa expressão latina que quer dizer "o espírito do lugar".
O conceito de território está na base da filosofia do Slow Food: a valorização das culturas locais é uma resposta à homologação causada pelo "modelo fast food". E se os alimentos são vistos como um produto do território, como o resultado da tradição, da cultura e da identidade local, está na hora de prestar mais atenção no genius loci. Não só no espírito do lugar onde moramos ou visitamos, mas também no "espírito" daquilo que comemos.
E, para isso, é preciso olhar além do prato, além do copo. A qualidade de um queijo ou de um vinho não depende apenas do leite ou da uva. Depende do solo, do clima e também das pessoas, da manualidade, da personalidade do lugar. Coisas que determinam que o vinho que está dentro da taça seja "aquele" vinho ou que o queijo de certo lugar não seja igual a nenhum outro. Eles têm proveniência, eles carregam consigo a essência do território.
Os produtos que têm genius loci como ingrediente são fundamentais na luta contra a comida padronizada. Enquanto as indústrias "despejam" alimentos homogêneos e baratos, as mãos de pequenos produtores oferecem produtos únicos, diferentes, artesanais, que não podem ser repetidos nem multiplicados ao infinito porque feitos de gestos precisos, de saberes antigos e tradições locais, de truques secretos passados ao pé do ouvido.
Produtos que podem até ser feitos em outro lugar, mas jamais terão a mesma aura, a alma que só o território pode dar. Comer barreado num restaurante de Brasília pode ser bom, mas não é a mesma coisa que comer em Morretes, no Paraná. Dá para comprar uma tapioca em Porto Alegre, mas não dá para comparar com a tapioca alagoana comprada na beira da praia da Pajuçara, em Maceió. Porque a água não é a mesma, nem a umidade é igual. Porque os dias não têm o mesmo ritmo, as partículas do ar não estão impregnadas das mesmas histórias, porque não se respira a mesma cultura popular.
Escolher "produtos da terra" é um jeito de experimentar a energia do território e de recuperar os saberes tradicionais e as culturas locais. Dar preferência a esses produtos é um modo de defender a permanência do genius loci em um mundo feito, cada vez mais, de não-lugares que não criam "nem identidade singular, nem relação, mas solidão e semelhança", como disse o antropólogo francês Marc Augè. Não-lugares como os restaurantes fast food, os hipermercados, as lojas de departamentos.
Descobrir os sabores do território também ajuda a redescobrir os sentidos, que andam atrofiados pela pobreza das nossas experiências olfativas e gustativas. Não reconhecemos mais os aromas da cozinha regional nem os gostos do passado, a textura dos alimentos, o verdadeiro sabor das frutas e legumes, a sutileza dos temperos.
É por isso que vou usar esta coluna, Genius loci, para trazer textos que se ocupem não só de produtos e receitas locais, mas também daquilo que está "além do prato". Histórias de pessoas e cidades, de antigos artesãos e pequenos produtores, jeitos de fazer e de comer. Convido você a fazer o mesmo: ir atrás do espírito do lugar, não importa se nas viagens que faz ou na cidade onde mora. Andar a passos mais lentos, visitar as feiras de rua e o mercado central, prestar atenção nos perfumes que escapam das janelas. Conversar com quem está sentado na calçada ou atrás de um balcão, perguntar de onde veio a receita do prato típico e fazer compras no velho armazém da esquina. Deixar que a essência do território entre em você. E permaneça.
Elisa Corrêa é jornalista e colaboradora da revista Vida Simples. Mestre em Comunicação pela Universidade de Florença, estuda a aplicação da "filosofia slow" ao jornalismo. [email protected]