Marmelada Santa Luzia. Foto: Jaime Gesisky

A mão da doçura

Quilombolas de Goiás preservam tradição secular da Marmelada Santa Luzia

Marmelada Santa Luzia. Foto: Jaime Gesisky A receita para se fazer a marmelada Santa Luzia é simples: água, açúcar, marmelo maduro e fogo. O difícil mesmo é conseguir juntar 200 anos de tradição local no feitio dessa iguaria brasileira. Mas quem esteve na 6ª Festa do Marmelo – nos dias 12 e 13 de janeiro de 2008 em Cidade Ocidental (GO) a 48 quilômetros de Brasília – viu de perto a fabricação artesanal do doce que esteve por um triz para desaparecer do mapa gastronômico do país.

Doceiros. Foto: Jaime Gesisky

Seu Mauro Melo, 80 anos; seu César Alves Rodrigues, 77 e seu Sinval Pereira Braga, 57 deram um show. Eles têm nas mãos o condão de manter viva a história da Marmelada Santa Luzia. Juntos, eles somam quase cem anos de experiência na feitura da marmelada e mostraram que, se depender deles, a tradição vai prosseguir. O doce feito por eles ali, aos olhos de milhares de pessoas, ficou um primor – como era de se esperar. Estava reafirmada a tradição.

Marmelos. Foto: Jaime Gesisky

A cultura da marmelada entre os moradores da comunidade Mesquita, na  área rural do município, vem do século XVIII, quando as primeiras mudas do marmelo (Cydonia oblonga) chegaram à região, vindas de Portugal, trazidas ao interior de Goiás pelos boiadeiros que cruzavam os sertões. 

A história de como a marmelada virou um patrimônio cultural da comunidade ainda está sendo levantada pelos historiadores que passaram a se interessar recentemente pelo assunto. O que se sabe é que matriz da tradição vem de três escravas negras libertas, vindas de Portugal trazendo a receita que agradava tanto ao paladar lusitano. Agraciadas com milhares de hectares de terra na região, as ex-escravas semearam descendentes e eles seguiram à risca os passos das matriarcas na fabricação artesanal da marmelada.

O conhecimento atravessou os séculos. Fez a fama do lugar que já foi domínio do município vizinho de Luziânia (daí provavelmente a origem do nome da marmelada). O auge da produção foi na década de 1960, quando a marmelada ajudou a sustentar a economia local.

Mudança climática

No relato dos moradores mais antigos, na década de 1970, o clima da região começou a mudar. "Antigamente era mais frio aqui no Cerrado", confirma César Rodrigues, um dos mais antigos moradores de Mesquita. Enquanto o clima se aquecia, os ânimos da comunidade esfriavam. Pouco a pouco, os plantadores tradicionais de marmelo foram deixando a cultura de lado. A lavoura tornou-se atividade de final de semana para a maioria deles. A falta de tratos no cultivo afetou a produção da fruta.

Atualmente, das 224 famílias que vivem na comunidade Mesquita, apenas dez produzem o marmelo.  É o caso de Sinval Pereira Braga, que tem hoje cerca de cem pés de marmelos plantados em sua pequena propriedade. Quem planta, tem de arcar com as despesas de correção do solo, já que falta assistência técnica especializada.

A falta de incentivos aliada à inexistência de arranjos produtivos eficientes, tiram a marmelada Santa Luzia do alcance do consumidor. Nem mesmo os mercados da Cidade Ocidental oferecem o produto.

Hoje, a marmelada Santa Luzia está na Arca do Gosto do Slow Food, mas ainda inspira cuidados para que não se transforme apenas em memória, o que significaria uma perda irreparável ao cardápio popular do Brasil.

Para o coordenador da comunidade de produtores da Marmelada e chefe da Divisão de Agricultura e Pecuária da prefeitura de Cidade Ocidental, João Antonino de Araújo, os contatos feitos com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) poderão ajudar na implantação de tecnologias que possam estimular a comunidade a retomar a produção. "Se não agirmos agora, essa tradição pode se acabar", alerta Araújo.

Invenção do sabor

Severiano mostrando a marmelada. Foto: Jaime Gesisky O mais antigo fabricante da marmelada é um inventor de sabores. Do alto de seus 92 anos, seu Severiano Pereira Braga é daqueles homens típicos do sertão. Magro, alto e com sua inseparável faca atada à cintura, ele nos recebe com ternura em sua casa, um exemplar autêntico da arquitetura rural do Brasil.

Além de fazer uma das mais deliciosas marmeladas de toda a região – e confeccionar artesanalmente as embalagens de madeira uma a uma -, seu  Severiano também inventa outras modas para agradar o paladar dos visitantes.

É dele a receita do licor de marmelo, feito a partir  da calda que se forma com a água do primeiro cozimento do marmelo ao ser preparado para fazer o doce tradicional. Ele colhe o marmelo, limpa a fruta, tira a semente e põe para cozer. "É serviço para um dia inteiro", diz ele. A fruta cozida na água dá á calda um tom sépia e é essa a base da bebida à qual se misturam o açúcar e a aguardente de cana. O cozimento é em fogo brando, à lenha.

O repouso da bebida já fervida se dá em tonéis que ele abre exclusivamente para nos apresentar.  Com uma cabaça, ele retira o líquido que, de pronto, perfuma o ambiente. O sabor é levíssimo. Tem a doçura do seu criador e o gosto da tradição.


Reportagem e fotos: Jaime Gesisky – jornalista, especializado em meio ambiente e uso sustentável da biodiversidade.  [email protected]

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