Simplesmente Martha

De Simplesmente Martha a Sem Reservas

o alimento como protagonista de transformações humanas

Simplesmente MarthaBella Martha, nome original do filme da diretora Sandra Nettelbeck, é uma produção alemã, lançada em 2001, que conta a história de Martha Klein, a obstinada e perfeccionista chef de cozinha de um refinado restaurante de Hamburgo.

Refilmado sob direção de Scott Hicks, No Reservations ou, em Português, Sem Reservas, recente produção de Hollywood, além de não ter o mesmo charme da versão original, não explora o alimento como tema central, como coadjuvante de profundas transformações nos personagens.

Sem Reservas Como é impossível não comparar as duas versões do filme, antes de fazermos considerações sobre aspectos simbólicos dos alimentos, tema explorado em maior profundidade em Simplesmente Martha, cabe alguns comentários a respeito de Sem Reservas.

Com pequenas modificações de roteiro, as histórias dos dois filmes são praticamente idênticas. As diferenças estão nas sutilezas e nos detalhes. A começar pela beleza perfeita dos atores da versão norte-americana, que ofusca e compromete a essência do filme alemão, em que as transformações proporcionadas principalmente pelos alimentos, no plano simbólico, refletem no modo de vida dos personagens.

Na versão alemã – e talvez por ser alemã – os personagens são mais intensos, contundentes, como evidenciado, por exemplo, pela relação entre Martha e a sobrinha Lina. Enquanto Kate Armstrong, a protagonista do filme norte-americano é, desde o início, carinhosa com a sobrinha, Martha transparece resistir emocionalmente até mesmo a acariciar Lina, demonstrando, sutilmente, dificuldades em se relacionar com qualquer pessoa. Na versão norte-americana, as transformações dos personagens e, principalmente de Kate, são menos intensas, talvez pela superficialidade das interpretações ou pela atuação "politicamente correta" dos atores. Por isso, não é tão simples perceber as transformações dos personagens e a relação de tais transformações com os alimentos. Ao que parece, o remake optou por colocar os aspectos simbólicos dos alimentos em segundo plano, ou seja, a essência do filme Simplesmente Martha – a transformação pelos alimentos – passa despercebida.

A adaptação à sociedade norte-americana altera também o clima da cozinha e o ambiente do restaurante. A cozinha de Manhattan não tem a mesma beleza, sofisticação e espaço que a cozinha de Hamburgo. Em virtude de tais mudanças, o puro prazer em saborear a comida não parece ser o principal motivo que leva as pessoas ao restaurante de Manhattan que, por ser barulhento e ter as mesas muito próximas, contrasta com o ambiente proporcionado pelo restaurante alemão.

Ao compararmos as duas versões, outro ponto interessante é o fato de Nick, o novo chef contratado pela dona do restaurante, não ser italiano, como na versão original. Ele é um norte-americano que morou por algum tempo em Toscana, na Itália, e trabalhou em um restaurante da cidade, onde aprendeu a cozinhar. Por isso, ao contrário do que ocorre na versão alemã, não há um choque cultural entre os protagonistas: eles pertencem à mesma cultura, apenas tiveram diferentes experiências. Esse pode ser mais um motivo para as transformações dos personagens serem mais tênues na nova versão.

Embora Sem Reservas não aprofunde reflexões acerca de aspectos simbólicos envolvidos nos alimentos, é preciso mencionar uma tímida tentativa nessa direção, através do personagem do terapeuta que, ao referir-se à relação entre gastronomia e vida, afirma que as melhores receitas são as receitas que criamos.

Apesar das diferenças em relação ao filme original, cabe aproveitarmos a inspiração do remake e focarmos a produção alemã para refletir a respeito do papel dos alimentos nas relações humanas. Assim, voltemos nossos olhares à vida e à cozinha de Martha, em que as transformações proporcionadas pelos alimentos são o tema principal do filme…

*

Logo nas primeiras cenas de Simplesmente Martha, encontramos Martha, no consultório de seu psicanalista, explicando minuciosamente uma de suas maravilhosas receitas. Embora o terapeuta a questione sobre os verdadeiros motivos que fazem com que ela o procure, Martha não percebe as razões pelas quais a dona do restaurante onde trabalha exige que ela faça terapia.

De fato, Martha dedica-se exclusivamente à arte de cozinhar e não percebe os extremos a que chega por exigir ou esperar o mesmo envolvimento e atitude de seus colegas de trabalho e até mesmo dos clientes do restaurante. Ela espera que os clientes apreciem os pratos com o mesmo rigor e perfeição com que ela se dedica a elaborá-los e, quando isso não acontece, Martha não se contém e extravasa toda sua insatisfação discutindo com quem não soube apreciar sua arte. Seu temperamento explosivo diante da crítica de alguns clientes cria situações embaraçosas no restaurante e por isso é que a dona do restaurante exige as sessões de terapia.

A vida de Martha é dedicada unicamente à sua paixão por cozinhar. E somente cozinhar. Martha sequer é capaz de saborear os pratos que prepara ou mesmo de se alimentar com prazer. Ela é uma mulher contida em sua vida pessoal e extravasa toda a sua emoção na cozinha do restaurante.

É nesta conjuntura, trabalhando muito, exigindo a mesma perfeição de si mesma, dos pratos que elabora e das pessoas com quem convive, que a inesperada morte da irmã transforma rapidamente a vida de Martha. Em função disto, Lina, a sobrinha de oito anos, passa a morar em sua casa. A menina, com o trauma sofrido pela morte da mãe, não quer se alimentar e Martha sente-se desafiada a fazer com que ela passe a comer. Apesar de preparar deliciosos pratos, Martha não é capaz de convencer a sobrinha a se alimentar.

A nova situação, desconfortável tanto para Lina como para Martha, exige certas adaptações e, assim, a menina passa a acompanhar a tia em seu trabalho e a conviver na rotina da cozinha do restaurante.

Por trás deste contexto, o filme gradativamente explicita a idéia de que Martha, ainda que exímia chef de cozinha, mas incapaz de se alimentar por prazer é, na mesma medida, incapaz de instigar Lina a se alimentar. Ao mesmo tempo, é possível perceber uma tímida correlação entre o prazer em saborear a vida e o prazer em saborear as refeições. Aqui, nos deparamos com a idéia de que, mais que nutrir o corpo, os alimentos nutrem a alma e relacionam-se com o modo de viver. Neste sentido, Garine (1987) lembra a frase de Brillat-Savarin: "dize-me o que comes e eu te direi quem és", ou seja, o modo como as pessoas se alimentam, o que é alimento, quando e com quem se alimentam, está relacionado com a forma com que os indivíduos vivem. E, entendendo que estas características são partilhadas, o desinteresse de Martha pela vida e pela comida se reflete na sua incapacidade de convencer a sobrinha a se alimentar e também de superar o trauma sofrido.

Ao negar o alimento, Martha nega não apenas o material, ou seja, as propriedades nutricionais, mas também, e, no contexto do filme, principalmente, as características imateriais dos alimentos, ou seja, nega a si mesma o prazer que oferece aos comensais do restaurante de saborear a vida através de requintados e saborosos pratos. Não sendo capaz de dar a si mesma tal prazer, tampouco pode estendê-lo a sua sobrinha. No plano simbólico, ao negar o alimento, nega-se também a vida. E é essa a questão central que o filme procura gradativamente explicitar.

Partilhando as reflexões de Fischler (1995), temos que o ato de alimentar-se segue o "princípio da incorporação", ou seja, o movimento através do qual os alimentos ultrapassam a fronteira entre o mundo, o externo, e o nosso corpo, o interno. Ao incorporar os alimentos, são incorporadas tanto as propriedades nutricionais como as simbólicas, o imaginário. No sentido biológico, incorporamos os nutrientes, a energia do alimento e, assim, mantém-se a estrutura bioquímica que organiza e dá continuidade ao corpo físico. No sentido simbólico, o alimento ingerido modifica o interior, já que no plano imaginário o alimento constrói o espírito humano e assim, pode modificar o estado do organismo, sua natureza e sua identidade. Nesse sentido, o autor, inspirado em Lévi-Strauss, afirma que chegamos a ser o que comemos.

Ao longo do filme, a relação entre saborear a vida e os alimentos vai se tornando cada vez mais clara. Diante dos problemas pessoais e das ausências que a nova situação acarreta para a vida de Martha, a proprietária do restaurante, contrata outro chef, Mario, um extrovertido italiano. Mário, ao contrário de Martha, leva a vida de uma forma tranqüila, leve. Na ausência de Martha, o novo chef transforma o sóbrio clima de trabalho da cozinha em um local divertido e agradável. Vale ressaltar: Mário não apenas cozinha, mas também saboreia os pratos que prepara.

A partir do antagonismo estabelecido entre as personalidades de Martha e Mário, é possível perceber a relação direta que o filme estabelece entre saborear a vida e saborear a comida. As atitudes e o modo de vida de Mário vão, aos poucos, transformando Lina, que continua a freqüentar a rotina do restaurante. Instigada ao ver Mário saboreando um apetitoso prato de espaguete, a menina passa a se alimentar. A partir desse momento, ela passa por transformações e demonstra estar superando a dor da perda de sua mãe. Martha, por sua vez, inspirada na leveza com que Mário vive e nas mudanças que percebe no comportamento da sobrinha, aos poucos abandona seu aspecto sombrio e fastidioso e passa também a se alimentar com prazer.

À medida que Lina e Martha degustam os alimentos, passam também a saborear a vida. Lina começa a se envolver na preparação dos pratos e a gostar de estar no trabalho de Martha. A menina triste e apática aos poucos se transforma em uma criança feliz. O mesmo ocorre com Martha que, embora continue exigente, passa a saborear os alimentos e torna-se mais feliz. Nesse ponto, evidenciam-se as propriedades não apenas nutricionais dos alimentos, mas também e, nesse caso, principalmente, as simbólicas. Os alimentos assumem aí a condição de nutrir o corpo e o espírito.

 

Referências

FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995.

GARINE, Igor de. Alimentação, culturas e sociedades. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, 15(7), p.4-7, 1987.

 


* Fabiana Thomé da Cruz é Engenheira de Alimentos, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Mestre em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected]



Nota da autora: Este texto foi elaborado a partir das sessões de cinema e das reflexões proporcionadas pela disciplina Alimentação, cultura e campesinato, ministrada pela Professora Renata Menasche no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS).

 

 

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