“Trabalhar de graça, só monjolo”
(expressão popular)
A farinha de milho de monjolo é uma farinha obtida a partir do milho fermentado e pilado, separado em peneiras para ser levado ao fogo, onde forma os “bijus” (ou beijus) que caracterizam sua textura e seu sabor. É um alimento de origem indígena, amplamente utilizado no período colonial entre tropeiros e por grande parte da população em algumas regiões.
Quando eu era moça, eu fazia muito dessa farinha, de monjolo. Põe o milho no monjolo, aí faz a canjica, que sai o miolo e sai a pele. Aí banha, escolhe e põe de molho. Deixa 8 a 10, 12 dias de molho. Todos os dias troca a água. E no fim de 12 dias lava ele bem lavado, sova mesmo ele e põe de molho num jacázinho pra escorrer toda a água. Aí torna no monjolo e a gente vai coando com a peneirinha, enche a bacia de fubá, aí vai no fogo. Nisso vai crescendo aqueles biju e a gente aperta assim com um pano de prato e quando ele seca bem, coloca na vasilha de guardá. Agora num tem mais monjolo por aqui, e a gente tem de comprá da outra farinha. De primeira nem tinha moinho, era só monjolo… (Dona Lurdes, bairro da Paciência – Pouso Alto – MG)1.
Todas as casas nas zonas rurais brasileiras usavam algum tipo de pilão no dia-a-dia da preparação de alimentos. Os pilões pequenos, médios ou grandes, eram ferramentas indispensáveis para triturar sementes, temperos e ervas, moer o café, descascar o arroz, fazer a paçoca, a canjica de milho, o fubá, a farinha de milho, entre outros.
A técnica de construção e utilização do monjolo foi difundida no Brasil pelos colonizadores portugueses. Este instrumento rudimentar é usado para descascar, triturar e amassar grãos e cereais, aproveitando a energia de córregos e outras fontes de água. O monjolo é formado por uma haste de madeira suspensa (como se fosse uma gangorra) que tem, em uma das suas extremidades, um pau de pilão e, na outra, um cocho para acumular a água. Quando o cocho se enche de água, fica mais pesado e a haste se levanta. Com esse movimento, o líquido é derramado e a haste cai novamente sobre o seu peso. Assim, o pilão amassa com força o conteúdo colocado na cuia (recipiente que fica abaixo do pilão)2.
Para a preparação da farinha, o milho inteiro em grãos é triturado com a ajuda do monjolo, separado da casca e do “miolo” (o gérmen) e colocado de molho em água, por um período que pode variar (geralmente de 5 a 12 dias). Durante esse período, a água pode ser trocada algumas vezes e o grão fermenta (azeda). Depois disso, é escorrido e levado novamente para o monjolo, para ser socado. Em seguida, a massa (que, se necessário, pode ser hidratada) vai para a peneira e a parte fina (que passa pela peneira) é levada ao tacho para a produção do beiju. O restante (a parte grossa), passa por uma primeira torra, para então ser moído no moinho de pedra, peneirado e torrado novamente. Algumas produções destinam essa parte peneirada e grossa para a alimentação dos animais, permanecendo dessa forma, somente com a parte do beiju flocado para o consumo.
Beiju e farinha são misturados, sendo que o beiju (que, quando pronto, tem formato de grandes “folhas” quebradiças) passa por uma peneira grossa (chamada de sururuca em algumas regiões) para ser quebrado em pedaços menores. Algumas máquinas e engenhocas possuem uma espécie de rolo que quebra os beijus em pedaços menores depois de torrados. O processo é bastante laborioso, mas o resultado é um produto pronto para o consumo, saboroso e nutritivo.
Entre os grupos indígenas brasileiros era comum o hábito de colocar de molho a mandioca e o milho em cestos na água corrente (ou também no charco), para fermentá-los e amolecê-los (assim como para intensificar o seu sabor). A mandioca fermentada (mandioca puba) e o milho, eram transformados em beijus e em farinha, usando peneiras de diferentes tramas (urupema) e levando aos tachos para cozinhar. De acordo com Câmara Cascudo, a difusão desta técnica e deste produto se intensificou com a exploração e ocupação do território pelos bandeirantes, que construíram monjolos, plantaram o milho e transformaram a farinha em um produto essencial para a alimentação:
… os antigos paulistas eram comedores de farinha de milho e angu, e até onde eles foram encontram-se o monjolo e roda de fubá. (…) não me recordo de farinha de milho fora da região da mineração. (…) ricos e pobres preparam farinha de milho socando no monjolo, depois de macerados (e frequentemente apodrecidos, especialmente em São Paulo), os grãos, assando depois a massa num forno como o de mandioca3.
O milho é uma cultura amplamente disseminada em várias regiões do Brasil, devido a sua multiplicidade de usos e a forte tradição de cultivo pelos agricultores brasileiros. Nas últimas décadas, seu cultivo se intensificou enormemente, aliado ao desenvolvimento da indústria de rações, da criação intensiva de animais e da engenharia genética.
A produção industrial da farinha adotou a utilização do milho transgênico e o monjolo foi amplamente substituído por maquinários mais modernos, mesmo em algumas das produções de menor escala. Certamente, o monjolo contribui com a textura e o resultado final de maneira diferente dos cilindros e discos de metal, mais utilizados atualmente. Mas, definitivamente, junto com a qualidade do milho (antes crioulo, livre de agrotóxicos), a fermentação é o elemento distintivo e o “divisor de águas” da qualidade e caracterização desse alimento. A fermentação transforma o sabor (em mais ou menos “azedo” de acordo com a intensidade e a duração), o aroma (produz compostos aromáticos, como o ácido lático), a textura e o valor nutricional (tornam substâncias como a niacina, vitamina do complexo B, mais assimiláveis e melhora o equilíbrio protéico). Com isso, constitui uma etapa fundamental do processo artesanal e uma característica importante desse alimento4.
A fermentação foi, porém, abandonada na maioria das grandes produções, substituída por outros processos ou tratamentos, inclusive químicos. Devido ao caráter “inconstante” dessa prática (por se tratar de microrganismos selvagens, depende da intuição e da experiência de quem prepara para conduzir o processo e identificar o “ponto” correto) e o longo tempo necessário (que pode variar de 3, 5 até 10 ou mais dias, dependendo da temperatura e de outros fatores) se tornou inviável para a produção padronizada em larga escala. Também pode ter sido abandonada, em parte, devido uma mudança nos hábitos alimentares da população, talvez menos “predisposta” aos sabores ácidos e mais intensos.
A farinha de milho é produzida por comunidades rurais da região do Sul e Sudoeste de Minas Gerais, além de algumas regiões em São Paulo e no Paraná, que ainda mantém as práticas tradicionais utilizando, em alguns casos, instrumentos artesanais e de baixo impacto ecológico, como o monjolo e outros maquinários movidos à roda d’água.
Defender a farinha de milho tradicional, representa a valorização de um alimento importante para a cultura rural e caipira brasileira, de alto valor nutricional e sabor inigualável. Representa também valorizar utensílios e técnicas que compõem a cultura material e imaterial do nosso povo, que costumavam fazer parte das nossas paisagens e que sempre representaram uma forma econômica e ecológica de se produzir.
Usos gastronômicos:
A farinha de milho é um produto pronto para o consumo, geralmente utilizada nas refeições para acompanhar o feijão e outros pratos com caldo, para absorver o líquido formando uma espécie de “papa”, que pode ser comida com as mãos com a técnica tradicional do “capitão”. A farinha também é a base de pratos típicos como o virado à paulista e vários tipos de farofas temperadas. Era comum misturar a farinha com café e rapadura, ou mesmo água e rapadura para o desjejum matutino dos trabalhadores rurais. Sua textura crocante e sabor levemente fermentado (que pode ser mais ou menos intenso dependendo do tempo das condições de fermentação do milho e do gosto de cada produtor) fazem dessa farinha um produto único, saboroso, nutritivo e versátil, que pode servir de base para preparações diversas (para empanar, para compor granolas, para engrossar caldos, e vários outros).
Notas:
1) Registrado por Cavallini (2001, p.27).
2) Haviam variações nos modelos de monjolos, maiores e menores, movidos à água ou à tração animal e humana, como registra o historiador Carlos Eugênio Marcondes de Moura: “Para socar o milho apareceram, fora o monjolo tradicional de água e o menor, de pé, duas formas de monjolo ou engenho movendo quatro mãos. Uma, com o eixo horizontal provido de quatro aspas que vão abaixando as pontas das hastes de quatro monjolinhos. Outro, com o eixo vertical ladeado de duas como que cambotas de carro de bois que, em diagonal, com o giro suspendem cada uma das mãos. Uma almanjarra como de cana se fixa no eixo e é movida por um ou dois cavalos. O de eixo horizontal move a roda de água.” (MOURA, 1999, p.22).
3) Cascudo, Luís da Câmara. Antologia da Alimentação no Brasil; p.213.
4) “As estratégias para suprir a deficiência protéica foram encontradas nos processos de fermentação, que representa sem dúvida a parte mais complexa dos preparos gastronômicos.(…) O que ocorre de fato na fermentação é que as proteínas podem ser reelaboradas pelas bactérias e tornadas mais assimiláveis. Como resultado final, os produtos fermentados não apresentam um aumento do teor protéico, mas maior equilíbrio protéico. No caso do milho, uma série de processos não completamente conhecidos tornam mais assimiláveis as proteínas” (BARGHINI, 2004, p.59).
Referências bibliográficas
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