Açúcar Purgado

Arca do Gosto // Doces // Ervas aromáticas, especiarias e condimentos

açúcar de forma, açúcar colonial // Região Sudeste e Nordeste do Brasil. // Comunidade do Rio Vermelho. Jaboticatubas, Minas Gerais

Por um longo período da história do Brasil Colonial, especialmente durante o século XVII, o açúcar era o principal produto da economia de exportação instaurada pela Coroa para gerar riquezas para a Europa. No auge desta economia, o açúcar rendeu enormes fortunas para os portugueses e permitiu consolidar a ocupação da costa brasileira. Construíram-se engenhos (unidades de produção de açúcar) em boa parte do litoral nordestino, comandados por senhores donatários e tocados à mão-de-obra escrava africana.

O primeiros engenhos eram movidos à tração humana (engenho “bangüê”), tração animal (engenho trapiche) ou rodas d’água (engenho real) e produziam açúcar mascavo e açúcar purgado, destinado à exportação. Alguns engenhos (denominados de engenhocas) também produziam rapadura, vendida no mercado local e cachaça feita com o melaço (líquido que escorre na “purga” da açúcar) ou com a espuma que sobe no tacho durante o cozimento da garapa.

Os escravos eram responsáveis por todo o processo de produção do açúcar, desde o plantio da cana, o corte, o transporte nos carros de boi, a extração do caldo (feito nas moendas), a fervura (processo de concentração da garapa, evaporando a água) e a purga, que consiste no branqueamento do açúcar integral (mascavo).

No local do engenho conhecido como “Casa de Purgar”, processava-se a massa ainda pouco sólido (obtido na etapa anterior), colocando-o fôrmas cônicas de barro ou metal, com um pequeno furo na base. As formas eram deixadas de ponta para baixo para permitir o escorrimento do “mel” (melaço), que se separava dos cristais de açúcar por gravidade.

Para que a purga aconteça é preciso manter o açúcar um pouco úmido e, para isso, depois de alguns dias do início do processo (cerca de 15 dias), coloca-se uma ou mais camadas de barro (massapê) na parte superior da fôrma, cuidadosamente umedecidas a cada cinco ou seis dias.

Uma vez escoado todo o mel, após um período que pode durar até um mês, dependendo do clima, os cristais de açúcar compactados são retirados de dentro das fôrmas, formando grandes “torrões” no formato dos moldes, que receberam o nome de “pães de açúcar” (daqui o nome do famoso morro da cidade do Rio de Janeiro).

Após a retirada dos cones, o açúcar se apresenta bastante branco na base (o que consiste na maior parte do torrão, devido ao seu formato), um pouco “sujo” na metade (ainda com um pouco de melaço) e bem escuro na ponta. Utilizando um facão, num processo que era chamado de “mascavar” (origem do termo mascavo), retira-se a parte mais escura do açúcar, sendo que a ponta retorna ao processo de purga e o restante vira açúcar mascavo (antigamente considerado como um açúcar inferior. A parte branca do bloco é então quebrada com o auxílio de toletes (bastões de ferro ou madeira) e, custumava ser colocada em caixas de madeira cuidadosamente fechadas e barreadas (coberta de barros nas nas juntas), para evitar a entrada da humidade.

Com a base do cone se produziam também outros tipo de açúcares especiais, cortando cuidadosamente a parte mais branca na forma de discos ou cubos, embalados em palha ou couro e usados para se presentear.

O “mel” que escorre da purga podia ser levado novamente aos tachos, para ser fervido e batido com o auxílio de uma escumadeira, formando o açúcar “batido” (processo que também clareia o açúcar, como nos doces de “puxa”, tipo o alfenim), ou então destinado à produção de aguardente (originalmente, esta era a matéria prima para a produção da cachaça, que podia ser feita no próprio engenho ou em outras estruturas).

No livro “Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas”, publicado em 1711, o jesuíta italiano André João Antonil relata o trabalho das escravas nas “casas de purga” e a dura lida na produção do açúcar:

“Trabalham na casa de purgar quatro escravas, e são as que entaipam e botam barro nas formas do açúcar e lhe dão suas lavagens. No balcão de mascavar assistem duas negras das mais experimentadas, que chamam mães do balcão, e com outras o mascavam e apartam o inferior do melhor uns negros que trazem e aventam as formas, e tiram delas os pães de açúcar, e o amassador do barro de purgar, que é também outro negro.

(…)

No balcão de secar trabalham as mesmas duas mães com as suas companheiras, que são até dez, estendendo os toldos e quebrando com toletes as lascas e os torrões grandes em outros menores atrás dos quebradores dos pães. E na caixaria ajudam ao caixeiro no peso e encaixamento do açúcar as negras e negros que são necessários, como também no pilar, igualar, pregar e marcar.”

(…)

“Cavam primeiro as quatro escravas purgadeiras com cavadores de ferro no meio da cara da forma (que é a parte superior) o açúcar já seco, e logo o tornam a igualar e entaipar muito bem com macetes; botam-lhe então o primeiro barro, tirando-o com um reminhol dos tachos, que vieram cheios dele do seu cocho, estando já amassado em sua conta, e com a palma da mão o estendem sobre toda a cara da forma, alto dois dedos. Ao segundo ou terceiro dia botam em riba do mesmo barro meio reminhol ou uma cuia e meia de água, e para que não caia no barro de pancada, e caindo faça covas no açúcar, recebem sobre a mão esquerda, chegada ao barro, a água, que botam com a direita igualmente sobre toda a superfície, e logo com a palma da mão direita mexem levemente o barro, de sorte que com os dedos não cheguem a bulir na cara do açúcar.”

Depois disso o açúcar era desenformado, separando-se a parte branca da mascavada:

“Ao pé do balcão, que chamam de mascavar, se aventam as formas sobre um couro, que vem a ser bulir nelas devagar com as bocas viradas para o dito couro, para que saiam bem os pães, os quais postos sucessivamente por um negro sobre um toldo, que está estendido neste balcão, por mão de uma negra (à qual chamam mãe do balcão), se lhes tira com um facão todo aquele açúcar mal purgado e de cor parda que têm na parte inferior, e isto se diz mascavar, e ao tal açúcar chamam depois mascavado. E, entretanto, outra sua companheira, que é das mais práticas, tira com um machadinho do mesmo mascavado o mais úmido, que chamam pé da forma ou cabucho, e este torna para a casa de purgar em outras formas, até acabar de se enxugar; e logo outras negras quebram com toletes os torrões do mascavado sobre um toldo, que também há de ir ao balcão de secar.”

Os métodos descritos foram utilizados por centenas de anos, desde o advento da produção de açúcar. A qualidade do açúcar dependia do cuidado com o qual eram feitas estas operações e, portanto, também o seu valor de mercado. Por isso, era grande a responsabilidade dos escravos e dos “supervisores” deste trabalho.

Já no século XIX, com a invenção das técnicas de centrifugação para separação dos cristais de açúcar, esta técnica de purga (junto com os instrumentos e os vocábulos utilizados) foi rapidamente abandonada, dando lugar aos processos cada vez mais industriais e químicos de refinamento do açúcar.

No entanto, algumas comunidades rurais ainda produzem este açúcar de sabor e características especiais, mantendo a tradição e a autonomia na produção deste insumo, utilizado na alimentação e na culinária.

Usos gastronômicos:

O açúcar purgado pode ser usado para adoçar bebidas, sobremesas, biscoitos, pães, quitandas e diversas outras preparações. À diferença do açúcar mascavo, mais escuro e de sabor intenso, este açúcar branqueado pode ser usado na preparação de doces finos, compotas e doces em caldas, onde tradicionalmente procura-se manter a cor das frutas inalterada. Também pode servir de base para molhos condimentados, como molhos de pimenta, catchups, marinadas e outras preparações com gosto agridoce.


Referências Bibliográficas:

ANTONIL, André João. Edição original de 1711, (pg. 79-87). Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/

Internet:

A Engenharia Química desde os tempos do Brasil Colonial – A. Zakon – Julho de 2004. http://www.ambientesquimicos.eq.ufrj.br/Nosso_ambito_1_files/2004AZ-SNCTPR5-UFRJT-OEngenhoRealdeAcucardoBrasilColonial.pdf [acessado em 28/01/2017]

Engenhos. Museu do Una.
http://www.museudouna.com.br/engenho.htm
[acessado em 28/01/2017]

O Trabalho das Escravas nos Engenhos de Açúcar: Parte 4 – Na Casa de Purgar
https://martaiansen.blogspot.com.br/2011/05/o-trabalho-das-escravas-nos-engenhos-de_24.html
[Acessado em: 28/01/2017]

Resgatando Memórias: Pão de Açúcar. Autor Desconhecido.
http://www.udop.com.br/index.php?item=noticias&cod=26007
[acessado em 28/01/2017]

SILVA, José Luiz Gomes da: Formas de purgar açúcar. Pesquisa Escolar do Nordeste.
http://pesquisaescolardonordeste.blogspot.com
[Acessado em: 28/01/2017]

Leandro Vilar, Seguindo os passos da História (blog).
http://seguindopassoshistoria.blogspot.com/2013/12/o-engenho-e-o-fabrico-do-acucar-no.html

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Marcelo Aragão de Podestá

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