Narrativas em disputa, um começo

Já há algum tempo venho matutando a criação de uma coluna no site do Slow Food Brasil para abordar as disputas de narrativas dentro dos sistemas alimentares. São vários os motivos, e acredito que o principal seja a necessidade de compartilhar as narrativas a partir dos diversos espaços em que represento o movimento Slow Food, potencializando a que adotamos internacionalmente. 

Mas antes, vale contextualizar de onde falo. Estou na coordenação de articulação de rede pelo Núcleo Gestor da Associação Slow Food do Brasil e represento o movimento em nível nacional em coletivos de organizações da sociedade civil e movimentos sociais como a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, o Grupo de Trabalho sobre Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia e do coletivo que mobilizou a Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional durante os anos de hiato do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Atualmente ainda integro o conselho editorial d’O Joio e o Trigo e também represento o Cone Sul no Conselho do Slow Food Internacional e componho o Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural de São Roque, onde resido. Também estive nos primórdios do Banquetaço, e nos tempos em que mobilizava o GT Sementes Livres e a campanha Festa Junina Livre de Transgênicos há uns 10 anos atrás, também me engajei na Marcha contra a Monsanto em São Paulo. Tais oportunidades acabam por trazer um amadurecimento das ideias para compreender a conjuntura nacional e a partir disso me permite trazer relevantes contribuições para o movimento como um todo, incluindo importantes divergências narrativas que o Slow Food Brasil por vezes adota comparado ao movimento internacional. 

Os sistemas alimentares são entremeados por infindáveis disputas de narrativas que facilmente passam despercebidos por olhos desatentos. Muito disso se dá pela permanente captura corporativa promovida pelos interesses hegemônicos que detém não apenas o poder econômico, mas também político, e impõem suas narrativas por meios de comunicação em massa, pela publicidade e por diversos conflitos de interesses que atingem virtualmente todos os setores estratégicos, como as instituições de ensino e pesquisa, os formadores de opinião, influenciadores, tomadores de decisão, nos poderes público e privado. Desta forma promovem mudanças aparentes que apenas aprofunda as correlações de forças ao longo do tempo. Assim foi com a Revolução Verde, que no período pós-II Guerra Mundial determinou os pilares técnico e tecnológico do agronegócio como o uso massivo de derivados de petróleo na produção agrícola, e que até os dias de hoje despejam no que comemos toneladas de petróleo principalmente na forma de agrotóxicos, fertilizantes sintéticos e combustíveis fósseis para o transporte da produção. 

E toda inovação como o capitalismo verde, a bioeconomia, a transição energética e ecológica, a digitalização vêm disfarçados sob a resolução de grandes problemas históricos como a fome, quando na verdade apenas a intensifica.

Questões chaves como a questão agrária que garanta o acesso a terra a quem nela trabalha, a soberania alimentar e tantas outras narrativas, sempre esbarram em (des)informação publicitária e midiática que incutem ideias avessas ao avanços dessas questões cruciais.

E disso, acabar com a fome de comida da população vulnerável ou a fome por dinheiro e poder ocorre às custas da natureza e das pessoas, e ainda gera infindáveis problemas sociais, políticos, econômicos, ambientais, de saúde pública, que afetam diariamente a qualidade de vida de todas as pessoas.

As falsas soluções pipocam por aí o tempo todo desviando as atenções para as reais alternativas necessárias para sairmos do buraco que o capitalismo segue cavando, cerceando os povos, por meio da precarização, pela onipresença ou mesmo pela coação, perseguição, e na pior das hipóteses, o assassinato de lideranças que resistem e lutam.

Nem sempre essas disputas ocorrem na escala macro, mas dentro de setores que supostamente se alinham com a agroecologia, com a Segurança Alimentar e Nutricional, com a cultura alimentar. O que dizemos e como o fazemos são importantes para a narrativa, que pode ser um elemento unificador, respeitoso a diversas epistemes.

Espero aqui conseguir trazer elementos na construção de um mundo onde caibam outros mundos, em que possamos sonhar que alimentos bons, limpos e justos sejam realidade para todes.


Coluna escrita por Glenn Makuta, biólogo e ativista alimentar, integrante do Slow Food desde 2009.

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