Texto originalmente publicado no site da Articulação Nacional de Agroecologia
Em carta, PDL 177/2021, que tramita na Câmara, é criticado por entidades científicas, organizações e movimentos sociais. Documento será enviado a deputadas e deputados federais
O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, que tramita na Câmara, quer autorizar o presidente da República a denunciar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um dos principais instrumentos de luta de povos e comunidades tradicionais no mundo. Diante dessa ameaça, o Grupo de Trabalho (GT) Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE) lançam Carta contra o Projeto e em apoio às lutas de povos e comunidades tradicionais¹. O documento recebeu a adesão de mais de 240 entidades científicas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
ACarta, que será enviada a deputadas e deputados que debatem o tema em Brasília, critica a visão dos que atacam a Convenção 169, colocando povos e comunidades tradicionais como entraves para o “crescimento do Brasil”. “O discurso desenvolvimentista é a marca histórica do genocídio desses segmentos. Tem como único objetivo o acúmulo e a concentração de renda à custa da degradação ambiental e do ataque aos direitos fundamentais da população historicamente marginalizada”, pontua trecho.
Gustavo Soldati, que integra o GT Biodiversidade da ANA e a SBEE, explica que a Convenção 169 reconhece a indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais o direito à consulta livre, prévia e informada sobre questões que impactam diretamente seus modos de vida, como a construção de portos, empreendimentos petroleiros, de mineração, do agronegócio e hidrelétricas. Nesta entrevista, o pesquisador também fala sobre os perigos e contradições envolvendo o PL 177/2021.
Qual é a importância histórica e política da Convenção 169?
A Convenção 169 da OIT é o primeiro instrumento jurídico internacional que reconhece os povos originários, os povos tribais, os povos indígenas, os povos e comunidades tradicionais como sujeitos de direitos. Ela rompe com a doutrina da tutela do Estado e, ao mesmo tempo, com aquela ideia do que é civilizado e do que não é civilizado. Antes dela, a proposta explícita em documentos internacionais era a de que esses segmentos precisavam ser integralizados via trabalho aos processos de “desenvolvimento da nação”. Além disso, a Convenção 169 define a autodeterminação, o direito desses segmentos em vivenciarem suas próprias culturas. Então, ela permite a gente vislumbrar o Estado Plurinacional, um Estado com diversas nações. O Brasil ratificou esse documento em 2002 e, dessa forma, se comprometeu perante o mundo a proteger os povos e comunidades tradicionais.
Como está a tramitação do PDL 177, que ameaça tanto esse instrumento?
O deputado Alceu Moreira (MDB), do Rio Grande do Sul, apresentou esse PDL no final de abril. O projeto nasceu na Câmara, foi recebido pela mesa diretora e foi despachado para três comissões. Está agora na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Depois, deverá passar pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias. E, por último, pela Comissão de Constituição e Justiça. Existem diversas falhas no seu texto. Em uma nota técnica apresentada pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental, há o entendimento de que não estamos no prazo de denúncia da Convenção 169, que se iniciaria em 2023. Segundo o ordenamento jurídico nacional, essa proposta só poderia nascer pelo presidente, não pela Câmara. Além disso, o projeto destrói a lógica do direito nacional e internacional, que é a de não retrocesso, sobretudo em relação aos direitos humanos.
Quais justificativas são usadas pelos que atacam a Convenção 169?
A principal é a de que legislação brasileira já seria suficientemente protetiva aos povos indígenas. Então, nessa visão, a Convenção 169 se tornaria supérflua. Mas não é assim. A Constituição Federal é fundamental para trazer direitos, inclusive aos povos e comunidades tradicionais. A Convenção 169, entretanto, deixa de forma mais explícita a questão da necessidade de consulta prévia, livre e informada como um instrumento de negociação, um instrumento de diálogo entre o governo, o Estado e os povos. É essencial, é um complemento à Constituição. Quando ela foi construída, uma comissão estudou as legislações dos países. Sobretudo na América Latina, percebeu-se que, ainda que houvesse instrumentos legais domésticos, sempre quando havia ameaças dos territórios tradicionais, relativos às hidroelétricas, à mineração, à extração de madeiras e biodiversidade, como exemplos, esses povos e comunidades tradicionais tinham suas terras roubadas, eram deslocados dos seus territórios. Isso em nome do “crescimento nacional”, como mais uma vez justificam os que defendem o PDL 177.
O perigo de o Brasil sair da Convenção 169 existe. Mas o país andava respeitando o que ratificou há quase 20 anos?
A consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais é uma exceção no Brasil. São muitos os exemplos, mas vou citar o Projeto de Lei 490/2007, que visa alterar a legislação da demarcação de terras indígenas. O acampamento Levante pela Terra, realizado por mais de 800 indígenas de diferentes etnias, disse não a esse e a outros retrocessos. A mobilização foi fortemente reprimida e merece todo nosso apoio e solidariedade. Também são exemplos o próprio PDL 177, a construção da Lei 13123/2015 e a ratificação do Protocolo de Nagoia, que tratam do acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. Os povos e comunidades tradicionais não foram ouvidos sobre esses projetos. Ou seja, temos um enquadramento jurídico forte, mas ele não é respeitado. Então, mais que barrar a possibilidade de denúncia contra a Convenção 169, a questão principal é seguir lutando por sua real implementação.