Pandemia Covid-19 na Itália: efeitos e reações locais em um sistema agroalimentar globalizado

Foto: Claudio Furlan/LaPresse

Faz pouco mais de dois meses desde que o primeiro caso de corona vírus foi registrado aqui na Itália. Entre as manifestações que aconteceram em diversos países conforme o vírus ia se espalhando por eles, uma imagem que ficou fixada na minha mente durante a quarentena foi a de uma projeção em um prédio em Santiago do Chile com uma frase que pode ser traduzida como “não voltaremos a normalidade, pois a normalidade era o problema”. É claro que não teremos, pelo menos dentro de um futuro próximo, nem a possibilidade de retornar aos mesmos modos de vida que possuíamos antes da pandemia. No entanto, devemos utilizar esse tempo para refletir sobre as questões existentes e tentar melhorar como sociedade, pois o modo como estamos estruturados se mostrou explicitamente ineficiente.

Aqui, estamos quase completando um mês de quarentena, a qual inclui a proibição de sair da cidade em que residimos (a não ser com justificativas), a interdição de todos os parques públicos, o fechamento de todo o comércio (exceto mercados, farmácias e alguns poucos outros serviços essenciais) e a possibilidade de poder sair nas ruas somente sozinho e apenas para ir ao mercado. Todas essas restrições estão modificando drasticamente os hábitos das pessoas: muitos trabalhos passaram a ser remotos, pais que só viam seus filhos de manhã e de noite estão passando 24h por dia com a família, pessoas com o hábito diário de comer fora de casa estão sendo obrigados a cozinhar e, caso queiram comer uma comida distinta da dos supermercados, a mobilizar-se para conseguir esses alimentos. Nesse sentido, se antes os consumidores estavam atuando, em sua maioria, de forma individual e desorganizada, agora a pandemia os está forçando a buscar um nível mínimo de organização e cooperação. Diversos grupos de consumo e ações de comercialização de alimentos e advindos diretamente dos produtores estão surgindo.

Em meio a tudo isso, a centralização da alimentação restrita a poucas cadeias mundiais de supermercados está se mostrando insustentável e limitada. Ela incentiva a desintegração e difusão geográfica dos sistemas de abastecimento. Ou seja, além de ambientalmente danosa, em um cenário como este que estamos vivendo, não podemos continuar perpetuando um sistema que, para garantir uma maior margem de lucro, nos faz sermos dependentes de alimentos que necessitam viajar por países e/ou continentes antes de chegar às nossas mesas. É necessário, então, incentivar de forma prioritária a produção local dos alimentos como uma questão de segurança e sobrevivência, já que, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), essas cadeias já estão reportando grande diminuição de abastecimento devido ao fechamento dos portos e novos obstáculos logísticos na importação de produtos. Com isso, não tenho a pretensão de dizer que é possível e/ou desejável substituir completamente uma economia globalizada por uma economia localizada. Porém parto da noção de alteridade, na qual novos modelos de produção coexistem com o sistema convencional e tentam modificá-lo.

Dentro da Itália, o movimento Slow Food tem organizado campanhas em todas as regiões italianas para promover os alimentos de agricultores e produtores artesanais que estão com sua comercialização de produtos muito prejudicada devido ao fechamento das feiras no país. Esse movimento entende a relação de consumo entre produtores e consumidores a partir da ideia de que os consumidores podem influenciar diretamente na produção de alimentos a partir do que compram e do modo como o fazem. Ou seja, compreende que o consumidor norteia tanto o mercado quanto a produção dos alimentos, e, assim, seu consumo se torna parte de um ato produtivo. As ações localizadas incluem desde mapas e logísticas de entrega com alto engajamento dos ativistas, até campanhas de conscientização sobre a importância de valorizar esses produtores. O Slow Food, a partir de seus núcleos espalhados pelo mundo, também tem se articulado com ações similares em diversos outros países como Estados Unidos, Peru, Alemanha, Chile e Brasil.

Fonte da imagem: Slow Food Itália

Para fora desse movimento, campanhas para incentivar consumo de alimentos italianos (como a #MangiaItaliano) e, assim, salvaguardar a produção de nacional têm surgido de articulações feitas pelos consumidores. Segundo a pesquisa da maior associação de representação e assistência agrícola italiana, 82% dos consumidores italianos entendem que comprar produtos locais é essencial para salvaguardar a indústria alimentar nacional. Para suprir a ausência das feiras, Grupos de Consumo Responsável (CSAs) têm sido amplamente procurados. O governo italiano também tem tomado algumas, porém insuficientes, medidas: o decreto “Cura Italia” aloca 100 milhões de euros para o cobrir juros de empréstimos e hipotecas relacionados à agricultura, pesca e aquicultura; 50 milhões euros estão sendo destinados para apoiar a distribuição de alimentos para a população mais vulnerável; no lugar dos 50% já disponibilizados pela Política Agrícola Comum, os agricultores poderão solicitar um adiamento de 70% para as contribuições anuais não reembolsáveis; e o Estado italiano assegurou uma compensação de 600 euros no mês de março para trabalhadores agrícolas que possuíam contratos de curta duração.

As fragilidades de um sistema globalizado estão expostas, principalmente sua ineficiência em lidar com o inesperado. Também está explicita a importância de possuirmos eficientes sistemas de saúde, moradia, abastecimento, educação e de trabalho. Ao contrário do que aconteceu na crise financeira de 2008, em que, apesar de tudo, retornamos à mesma lógica de funcionamento, precisamos repensar e reformular o modelo que se mostrou ineficiente desde o ponto social até o ponto ambiental. Neste cenário, o engajamento dos consumidores tem um papel importante na reformulação desse sistema já institucionalizado e movimentos como o Slow Food podem contribuir por meio da orientação desses consumidores. Por fim, é importante expor que esse processo dificilmente se torna independente da atuação do Estado e de políticas públicas. Pelo contrário, os governos devem apoiar e incentivar essa mudança como modo de gestão de crise. No entanto, creio que o tamanho do nível de conscientização, engajamento e organização da sociedade civil será determinante para definir e construir o futuro em que viveremos.

Sobre o Autor: Caio Bonamigo Dorigon é coordenador de área no escritório para América Latina e Caribe do Slow Food Internacional e mestre em desenvolvimento rural pela UFRGS/RS.

Texto publicado originalmente no Grupo de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul GEPAD: Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento

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